sábado, 22 de dezembro de 2012

Franz Kafka- O Processo


Através da janela aberta, ainda se avistava a velha senhora que, com uma curiosidade deveras senil, se havia aproximado da janela, agora mesmo em frente, para continuar a observar tudo.

O que interessa não é a maior oferta mas a maquia com que untam as mãos de quem vende.

A segurança com que falam de coisas de que não percebem absolutamente nada é apenas possível devido à sua estupidez.

(…) beijando-a na boca e depois no rosto todo, como um animal sedento que desordenadamente lambe a água da fonte finalmente encontrada.

A justiça é atraída pela culpa.

(…)seguiu-se uma salva de palmas… “Gente que se deixa conquistar com facilidade” -pensou.

O seu comportamento tranquilo conferia-lhes uma importância maior.

Como é que numa conjuntura tão absurda se pode evitar que os funcionários fiquem corruptos? É impossível; nem sequer o mais eminente juiz conseguiria escapar à acção dissolvente do meio.

Não me torne a falar de perigos, pois só os temo quando quero.

Estou convencido que o processo, devido à preguiça, esquecimento ou talvez mesmo ao medo dos funcionários, já está interrompido ou sê-lo-á em breve. No entanto, também é possível que na esperança de me apanharem dinheiro finjam continuar o processo; mas isso será absolutamente inútil, posso afirmá-lo agora, pois eu não unto as mãos seja a quem for. Sempre poderia prestar-me um favor se dissesse ao juiz de instrução, ou a qualquer outra pessoa que goste de espalhar notícias importantes, que eu nunca recorrerei ao suborno, embora esses cavalheiros usem todas as habilidades do seu vasto repertório. Isso seria completamente inútil, pode dizer-lhes sem rodeios.

(…) classes mais elevadas levantaram-se para o cumprimentar; No entanto, ninguém se levantou completamente; ficaram curvados, os joelhos flectidos, como mendigos.

Talvez nenhum de nós seja desapiedado; queríamos talvez ajudar de boa vontade toda a gente, mas, como somos funcionários da justiça, ganhamos facilmente uma aparência de pessoas duras de coração, que se recusam a auxiliar seja quem for.

Até a mínima incerteza na mais insignificante das coisas é sempre motivo de preocupação.

A infra-estrutura da justiça não era muito perfeita e que nela existiam empregados corruptos e descuidados dos seus deveres que constituíam outras tantas brechas no rigoroso círculo fechado da justiça. Por elas é que os advogados se intrometiam, pois ali faziam-se os subornos e as sondagens e até se haviam dado, pelo menos antigamente, casos de furtos de autos. Não se podia negar que dessa maneira se obtinham momentaneamente para o acusado alguns resultados surpreendentemente vantajosos, dos quais os advogados sem categoria se serviam para se pavonear e atrair novos clientes.

O que não devia era ficar no meio do caminho; esse era o procedimento mais disparatado não só nos negócios mas em tudo e em toda a parte.

A minha inocência não torna a coisa mais simples. (…) Depende das inúmeras subtilezas em que a justiça se perde. No fim extrai uma grande culpa dum sítio onde nunca houve nada.

Trata-se de duas coisas diferentes: uma o que a Lei diz, a outra o que eu aprendi por experiência própria. É preciso que não as confunda. Na Lei, embora eu nunca a tenha lido, diz-se, por um lado, que o inocente é absolvido, mas, por outro, não se diz que os juízes podem ser influenciados. Mas o que eu aprendi foi precisamente o contrário.

O processo não pode permanecer parado sem que para tal existam pelo menos razões aparentes. Por conseguinte, é necessário criá-las. Assim, de vez em quando, tem de se tomar diversas disposições, interrogar o acusado, realizar investigações, etc. O processo é pois obrigado a girar no mesmo pequeno círculo a que artificialmente o limitaram. Isso, naturalmente, acarreta certos inconvenientes para o acusado; não obstante, o senhor não os deve ter na conta de demasiado graves. De facto, é tudo apenas aparência, os interrogatórios, por exemplo, são muito breves; além disso, se uma pessoa não tem tempo ou vontade de lá ir, pode dar qualquer desculpa; com certos juízes, podem-se mesmo estabelecer de antemão as disposições a tomar durante um longo espaço de tempo.

A regra fundamental em que devia assentar o comportamento de um acusado era estar sempre preparado, nunca se deixar surpreender, não olhar nesciamente para a direita quando o juiz se encontrava à esquerda.

Experimentava aquela sensação de à-vontade que só a conversa no estrangeiro com pessoas sem importância proporciona, pois, nessa altura, nada se diz de pessoal e apenas se fala serenamente daquilo que interessa ao interlocutor, o que permite não só elevar este mas também deixá-lo quando se quer.

Tenho de lançar mão de tudo quanto me possa ser útil; mesmo quando a esperança que deposito na utilidade de qualquer iniciativa é extremamente reduzida, não me posso permitir não a tomar.

- Os grandes advogados? Quem são? Como se chega até eles?
-  Então o senhor nunca ouviu falar neles? Talvez não haja um só acusado que, depois de ter ouvido coisas a seu respeito, não tenha sonhado com eles durante uns tempos. Mas o melhor é o senhor não ceder à tentação. Não sei quem são os grandes advogados, mas sei que até eles ninguém chega. Não conheço nenhum caso em que se possa afirmar com segurança que eles intervieram. (…)Aliás, é melhor não pensar neles, pois de contrário começa-se a achar as conversas com os outros advogados, os seus conselhos e as suas ajudas tão desprezíveis e inúteis, falo por experiência própria, que só o que apetece é uma pessoa mandar tudo para o diabo, deitar-se na cama e não querer ouvir falar de mais coisa nenhuma. Mas isso seria, naturalmente, a atitude mais estúpida, pois até mesmo na cama o sossego seria de pouca dura. (…) mas infelizmente é impossível esquecê-los por completo; especialmente as noites são propícias a tais pensamentos. Mas naquele tempo o que queria era resultados rápidos, e por isso fui ter com os zângãos.

Devia então esperar-se que, para mim, o problema ficaria menos complicado do que anteriormente, pois quando uma pessoa contrata um advogado é para se aliviar um pouco do peso do seu processo. Porém, foi precisamente o contrário o que aconteceu. Nunca o processo me inspirou tantos cuidados como desde que o senhor doutor passou a ser o meu patrono. Quando estava sozinho não fazia nada no meu caso, mas também mal me apercebia da sua existência; pelo contrário, agora que tinha um defensor, tudo estava preparado para que acontecesse qualquer coisa; assim, sem cessar e cada vez mais ansioso, aguardei uma intervenção qualquer da parte do senhor doutor, mas em vão.

Nos escritos que servem de introdução à Lei fala-se desta ilusão: “Em frente da Lei está um porteiro; um homem que vem do campo acerca-se dele e pede-lhe que o deixe entrar na Lei. O porteiro, porém, responde que nesse momento não pode deixá-lo entrar. O homem medita e pergunta então se mais tarde terá autorização para entrar. “É possível”, responde o porteiro, “mas agora não pode ser”. Como o portão que dá acesso à Lei se encontra, como sempre, aberto, e o porteiro se afasta um pouco para o lado, o homem inclina-se a fim de olhar para o interior. Assim que o porteiro repara nisso diz-lhe, rindo-se: “se te sentes tão atraído, procura entrar a despeito da minha proibição. Todavia, repara: sou forte e não passo do mais ínfimo dos porteiros. De sala para sala, porém., há outros porteiros, cada um deles mais forte do que o anterior. Até o aspecto do terceiro guarda é para mim insuportável”. O homem do campo não esperara encontrar tais dificuldades, “a Lei devia ser sempre acessível a toda a gente”, pensa ele; porém, ao observar melhor o porteiro envolto no seu capote de peles, o seu grande nariz afilado, a longa barba rala e negra a moda tártara, acha que é melhor esperar até lhe darem autorização para entrar. O porteiro dá-lhe um escabelo e diz-lhe que se sente ao lado da porta. Durante anos ele permanece sentado. Faz numerosas tentativas para ser admitido e fatiga o porteiro com os seus pedidos. Aquele, de vez em quando, faz-lhe perguntas sobre a sua terra e sobre muitas outras coisas, mas duma maneira indiferente, como fazem os grandes senhores, e no fim diz-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que se proveu de amplos meios para a sua viagem, emprega tudo, por mais valioso, para subornar o porteiro. Este, com efeito, aceita tudo, mas diz: “só aceito o que me dás para que não julgues que descuraste alguma coisa”. Durante todos aqueles longos anos o homem olha quase ininterruptamente para o porteiro. Esquece-se dos outros porteiros; parece-lhe que o porteiro é o único obstáculo que se opõe à sua entrada na Lei. Amaldiçoa em voz alta o infeliz acaso dos primeiros anos; mais tarde, à medida que envelhece, já não faz outra coisa senão resmungar. Torna-se acriançado e, como durante anos a fio estudou o porteiro, acaba também por conhecer as pulgas da gola do seu capote; assim, pede-lhes que o ajudem a modificar a atitude do porteiro. Por fim, a sua vista torna-se tão fraca que já nem sabe se escurece realmente à sua volta ou se é apenas ilusão dos seus olhos. Agora, porém, lobriga, no escuro, um fulgor que, inextinguível, brilha através da porta da Lei. Mas ele já não tem muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências por que passara durante esse tempo convergem para uma pergunta que, até essa altura, ainda não formulara. Faz um sinal ao porteiro para que se aproxime, pois o entorpecimento que o domina já não o deixa levantar-se. O porteiro tem de curvar-se profundamente, visto que a diferença das estaturas se modificara bastante. “Que queres tu ainda saber?”, pergunta o porteiro. “És insaciável.” “Se todos aspiram a conhecer a Lei”, diz o homem, “como se explica que durante estes anos todos ninguém, a não ser eu, pedisse para entrar?” O porteiro reconhece que o homem já está perto do fim e, para alcançar o seu ouvido moribundo, berra: “Aqui, ninguém, a não ser tu, podia entrar, pois esta entrada era apenas destinada a ti. Agora vou-me embora e fecho-a.”

Não aceites a opinião alheia sem reflectires


A compreensão duma coisa e a má interpretação da mesma coisa não se excluem completamente.

As interpretações são muitas vezes apenas a expressão do desespero que os comentadores sentem perante os escritos.

A lógica é na verdade inabalável, mas não resiste a um homem que quer viver.

domingo, 16 de dezembro de 2012

William Shakespeare- Hamlet


Sentai-vos um pouco, para que uma vez mais vos assediemos o ouvido, que tão fortificado está contra esta nossa história…

É como cisco ferindo o olhar da mente.

É como o ar, invulnerável, e estes golpes vãos, mero mimo de violência.

(…) a manhã no seu hábito de ouro velho desce pela geada daquele monte a oriente.

É a lei da vida que tudo pereça e da natureza passe à eternidade.

Mas em mim há qualquer coisa dentro, muito para além do parecer; o resto é simulacro.

Tal dor, por inumana, ofende até a Deus e brada aos céus.

Oh! Pudesse eu livrar-me desta deusa carne em que nasci! Pudesse ela fundir-se, solver-se em um orvalho… Não fora o mandamento Eterno contra os que a si próprios assassinam!...

Deus, oh Deus, como tudo o que serve neste mundo me parece inútil, cediço e sem razão! Fora, fora com tudo isto, jardim de joio inculto sempre a crescer com novas e daninhas ervas a afoga-lo!

Como ela o abraçava como se, mal saciada, novos desejos e apetites crescessem (…) Como seguiu o cadáver do meu pobre pai, como Níobe em choros (…) Um mês apenas e já o sal das lágrimas mais vis deixou de lhe picar os felinos olhos! Casou! Oh que mais traiçoeira pressa tão lesta a correr com tanta ligeireza para os lençóis do incesto!

Fragilidade, teu nome é mulher!

Os manjares preparados para a refeição fúnebre foram servidos frios nas mesas do casamento.

Era um homem em tudo e por tudo.

Hei-de falar-lhe nem que o inferno se abra e me peça em troca o meu repouso eterno!

A natureza, ao fazer-nos crescer, não só nos favorece em forças e tamanho, mas, à medida que o tempo vai passando, dilata com ele o espaço interno da inteligência e da alma.

Talvez te ame agora, e nem mancha nem cálculo, poluam agora a virtude da sua vontade; mas deverás temer (…) Se diz amar-te, deverá o teu bom-senso só nisso crer. (…) Pondera o que a honra há-de sofrer se com crédulo ouvido lhe fores na cantiga, doares o coração, ou o casto tesouro abrires a uma importunidade, que não saibas rejeitar.(…) E mantêm-te na retaguarda do teu afecto, abrigada dos projécteis e afrontas do desejo.

A donzela mais modesta mais prudente é pródiga de mais se ao aço do luar a beleza desvelar. A virtude mesma não escapa aos golpes da calúnia.

O pulgão rói os botões primaveris, antes mesmo de desabrocharem e nos alvores e orvalhos juvenis mais ofendem os ventos daninhos.

Sem lume ao lado contra si se inflama quem é novo. (A mocidade é inimiga de si própria.)

Toma a minha bênção e grava na memória estes preceitos: Conhece-te a ti próprio. Não dês ouvidos a rumores nem ajas ou fales sem pensar primeiro; Sê acessível, simples mas sem vulgaridade; Aos amigos, após experimentados, aceita-os, cinge-os à alma com aduelas de aço, mas não dês primeiro a mão em demasia a qualquer estoirado camarada. Cuida antes de entrares numa briga, mas, entrado, faz com que o teu opositor se cuide de ti. Empresta o ouvido a todos, mas a poucos dá a voz; Aceita o aviso de cada um, mas guarda para ti julgar. Luxuoso seja o trajo quando a bolsa to permita, mas, nada de fantasia, antes rico e não vistoso, por muitas vezes o hábito anuncia o homem; Não sejas prestamista nem peças emprestado; Quem empresta perde por si e pelo amigo e o que pede emprestado em economia é fraco. Acima de tudo sê sincero para contigo mesmo, donde virá, como a noite segue o dia, que para ninguém falso serás.

Ficou fechado na memória. E tu próprio levas contigo a chave.

Sei bem que ao aquecer o sangue ardente a alma nos prodigaliza vozes e votos para a boca. Tais fogachos, dão mais luz que calor e vão a cinzas mais depressa que tempo leva a prometer. Não tomes luz por fogueira.

Uma gotícula de mal muitas vezes dissolve toda a nobre substância para escândalo próprio.

E nós bobos d a natureza, nos horrorizamos de pensar que para além da nossa alma algo mais consegue ainda perturbar-nos?

Algo está podre no reino da Dinamarca!...

Com o encanto da fala mansa, com traiçoeiras ofertas (…)Ó dons da malícia que tal poder de seduzir possuem!

Mas, tal como a virtude não se deixa mover, acoste-a mesmo a luxúria num vulto divino, também o cio, preso a um anjo brilhante, depois de saciar-se nessa cama celeste, há-de refocilar no lixo.

Mas, de qualquer modo que realizares tua vingança, não contamines teu espírito, nem deixes que tua alma trame qualquer dano contra tua mãe; deixa que o Céu e os espinhos que no peito alberga a firam e destrocem.

É conveniente anotar aqui que pode sorrir-se, e sorrir de novo, e ser-se infame.

Que no isco do falso morda a carpa da verdade.

Maldita desconfiança! Que é tão natural em idade avançada lançarmos suspeitas muito ao de largo, tal como é corrente aos de menor idade faltar discrição.

A brevidade é a essência do espírito, e a tardança seus membros e confeitos exteriores (…)
Mais substância e menos arte!

Ao celestial ídolo de minha alma, Ofélia, a bela sem par (…) sou inábil no verso. Não tenho arte de metrificar suspiros. Mas que acima de tudo te amo, oh, a ti, a melhor de todos, peço-te que acredites. Adeus. Para sempre teu, senhora minha tão querida, enquanto esta máquina for sua, Hamlet.

(…) é príncipe fora do teu céu natal (que da tua estrela exorbita)

Sempre acharei a vontade onde quer que ela se esconda, mesmo que ocultada se feche no centro da terra.

Como vai o mundo ser-se honesto é ser homem só pescado entre dez mil.

Palavras, palavras, só palavras sempre.

 A loucura, que alcance tem, tantas vezes acerta onde a sanidade e o juízo não saberiam tão felizmente atingir!

Felizes em não sermos demasiado felizes.

A Fortuna é leviana.

Nada há de bom ou de mau que o não seja por só pensarmos que é. ( Nada é bom ou mau senão no pensamento de quem julga)

Podia ver-me confinado ao interior de uma noz e considerar-me rei dos espaços infinitos.

A verdadeira substância dos ambiciosos é tão-só a sombra de um sonho.

Em si um sonho não passa de uma sombra.

A ambição é de uma textura tão leve e aérea que não passa de uma sombra de uma sombra.

É o que são nossos corpos mendigos, os nossos monarcas e nossos dilatados heróis: ilustres sombras de mendigos.

Que obra-prima o homem! Que nobre é a sua razão! Que infinitas faculdades e que admiráveis e expressivos seus sentimentos quer pela forma quer pela sua marcha! Age como um anjo; entende como um deus! Maravilha do mundo! O supra-sumo do mundo animal! E, todavia, porquê? Porquê para mim não passa de quintessência deste pó da terra? E a mulher não é melhor também.

Afinal nada é de admirar! Pois se até meu tio é Rei da Dinamarca e os que lhe faziam caretas de desdém quando meu pai [Rei] vivia dão agora vinte, trinta ou cem ducados por um retrato seu em miniatura!

Duas vezes criança é o velho.

Era uma espécie de caviar para a populaça.

Melhor é terdes um mau epitáfio depois da morte que retrato adverso enquanto vivo.

Se tratássemos cada qual como merece quem escaparia sem açoites?

Trata-os conforme a tua honra e dignidade; e quanto menos eles merecerem mais tu mereces por tua benevolência.

Seria preciso ser pomba sem fel para suportar tal insulto amargo e poder continuar a engordar todos os abutres do País sem lhes dar os restos sangrentos desse vilão infame, traidor sem remorsos, sanguessugador, vilão sem par!

O assassínio, embora sem língua, fala.

Quantas vezes - está provado! - é de lamentar como por uma carinha de beata, por um gesto devoto, por açúcar tomamos o Diabo!

(…) Que duras chicotadas me deu na consciência! A embonecada face de uma prostituta sob o gesso da pintura não é mais horrorosa do que o meu crime por mais que o doirem e disfarcem palavras e só palavras!

Ser ou não ser, eis a questão: Se é mais nobre no espírito sofrer as fundas flechas da fortuna ultrajante, ou brandir armas contra um mar de agravos, e, opondo-os, fazê-los cessar.

Pois quem aceitaria a férula e açoites do tempo, o dolo do opressor, a contumélia de insolentes, a dor de um amor repelido, a lei tardia, a insolência das repartições e o coice destinado pelos inúteis aos meritórios pacientes?

Para nobre espirito presentes caros são miséria quando sem amor.

Se és séria e bela a tua honestidade não aceitaria louvores à tua beleza.

Pode a beleza ter melhor comércio do que com a honestidade? (…) Na verdade pode, pois mais facilmente torna o poder da beleza a honestidade chula do que pode a honestidade fazer da beleza algo de si parecido.

Não pode a virtude inocular-nos a casta que dela não guarde travo.

Velhacos rematados é o que nós somos. J
Fechem-lhe bem as portas. Basta que faça de parvo em sua casa.

Se queres casar por força, casa com um louco porque os sensatos sabem bem em que monstros os transformam…

Já ouvi falar que chegue das vossas pinturas. Dá-vos Deus uma cara e vós trocai-la por outra.

Eu, que suguei o mel da música das suas promessas, agora a ver a mais soberana e nobre razão tinindo como sinos fendidos e desafinados, apenas sonhos que macios foram, sombras apenas.

(… ) expulsar-lhe-ão do coração o mal oculto que o cérebro ofende e o põe assim tão fora de si.

(…) até na corrente, na tempestade e, pode-se dizer, no próprio ciclone da paixão é possível temperança.

Tudo o que é excessivo se afasta da finalidade da arte de representar(…) exageros ou expressão que chega tarde podem fazer rir o ignorante mas apenas ofende o gosto do conhecedor cuja critica vale mais do que o aplauso duma sala cheia de burros.

Não penses que é lisonja. Que fora de esperar que me emprestasses, se só tens como renda a tua alma grande, que te veste e alimenta? Por quê a um pobre lisonjear?

Deixa as linguinhas de açúcar lamberem absurdas pompas e dobrarem as gordas juntas dos joelhos onde a prosperidade mana da lisonja.

E bem-aventurados são os que a vida vai ajuizando.

Vivo de ar e empanturrado de promessas. Não se alimentam capões assim.

Na mulher medo e amor, iguais em quantidade, podem anular-se em grande extremidade.

O grande amor de ninharias faz terrores. Receiozinhos crescem com os grandes amores…
Ninguém casa com outro sem o marido matar (…) Duas vezes o mataria sem respeito se um segundo esposo me beijasse no leito!

Intenção é mera escrava da memória, nasce forte mas viver é outra história; verde o fruto na árvore mal estremece, mas cai sem lhe tocarmos quando amadurece.

Creio no que dizes porque nos amamos, mas quantas vezes as juras quebramos? Intenção é mera escrava da memória, nasce forte mas viver é outra história; verde o fruto na árvore mal estremece, mas cai sem lhe tocarmos quando amadurece. Mais que natural é nos esquecermos de pagar o que nós próprios devemos; bens que pela paixão a nós próprios damos finde ela e logo os deixamos; a violência do que nos alegra ou dói seus próprios actos com ela destrói; Onde a alegria cante deve haver quem se lamente; dar é alegria e alegria dar ao mínimo acidente. Não há mundo para sempre nem sorte importuna: até nossos amores mudam com a Fortuna pois é questão que está para aclarar dar o Amor Fortuna ou esta o Amor dar. Cai o poderoso, vão-se-lhe os amigos enriquece o pobre que não tem inimigos; Parece que ao Amor pertence Fortuna indivisa pois tem sempre amigos quem nada precisa e quem aflito recorre à amizade logo encontra inimigos de verdade. Mas, para ordenadamente acabar onde comecei, - Sorte e desejos tão contrários – sempre encontrei destroçados nossos planos sem valor: o pensar é nosso, o que sucede é de quem for… Podes pensar não tomar novo marido, mas morre esse pensar mal eu tenha morrido.

A Terra me mate à fome, o céu me tire a luz, dia e noite não me alegre nem repouse, por fé e esperança tome o desespero (…) agora e sempre até à final luta se eu enviuvando volte a ser mulher!

Trema a besta que tem mataduras que a nossa pele não tem assaduras!

Deixai do veado ferido o alongado pranto fluir, e que o gamo brinque impune; Que uns hão-de velar e outros dormir, e assim nos foge o mundo.

 Queres tocar qualquer coisa nesta flauta?
Não posso (…) Acreditai-me, príncipe, não posso (…) Não conheço uma só posição.
 É tão fácil quanto mentir. Com os quatro dedos e o polegar regulais estes orifícios; depois, bastará soprar, para que saia música muito agradável. Vede: aqui estão as chaves.
Mas não está em mim tirar a menor harmonia, príncipe; não possuo essa habilidade.
 Ora vede que coisa desprezível fazeis de mim. Pretendíeis que eu fosse um instrumento em que poderíeis tocar à vontade, por presumirdes que conhecíeis minhas chaves. Tínheis a intenção de penetrar no coração do meu segredo, para experimentar toda a escala dos meus sentimentos, da nota mais grave à mais aguda. No entanto, apesar de conter este instrumento bastante música e de ser dotado de excelente voz, não conseguis fazê-lo falar. Com a breca! Imaginais, então, que eu sou mais fácil de tocar do que esta flauta? Dai-me o nome do instrumento que quiserdes; conquanto voz seja fácil escalavrar-me, jamais me fareis produzir som.


Vou já é fácil de dizer…

Que eu seja cruel, mas não polua o natural. Dir-lhe-ei punhais, mas não usarei nenhum.

Se a própria vida singular precisa, com toda a força e as armas do intelecto, defender-se de danos, que dizer-se da alma de que depende sempre a vida de tanta gente? Nunca a majestade morre sozinha; qual voragem, chupa quanto está perto; é roda gigantesca que nos raios contêm dez mil coisinhas encaixadas, e cuja queda implica a ruína fragorosa das menores peças que se lhe prendem. Nunca suspira um rei sem que o povo inteiro gema.

Que possui a oração senão o duplo poder se sermos sustidos antes de nos vermos cair, ou perdoados, se caídos já?

Pelas vias inquinadas deste mundo, a mão doirada do crime pode mover a Justiça e premiar até o criminoso. Compra-se a Lei mas não a dos Céus. Para ela não há subterfúgios. Corre o processo em toda a verdade e somos forçados a testemunhar as nossas faltas todas nuas como os dentes ou a testa…

As palavras sobem, os pensamentos ficam. Palavras sem pensamentos nunca ao céu hão-de chegar.

A RAINHA: Que fiz eu para que ouses flagelar-me?
HAMLET: Uma ação que mancha a graça e o rubor da modéstia, que a virtude transforma em falsidade, muda as rosas da fronte prazenteira do amor puro em chaga repugnante, e os juramentos dos cônjuges em pragas de viciados. Uma ação que do corpo dos contratos tira a própria alma e muda em palavrório a doce religião; a própria face do céu cora de pejo; sim, o mundo compacto, nas feições mostra a tristeza do juízo final, diante desse ato.

HAMLET: Olhai este retrato e mais este outro, que dois irmãos fielmente representam; vede a graça que encima esta cabeça, cachos de Apolo, a fronte alta de Júpiter, o olhar de Marte, ao mando e à ameaça afeito, o porte de Mercúrio, o mensageiro, quando pousa nos cumes altanados; uma forma, em resumo, perfeitíssima, em que os deuses seus selos imprimiram para que o mundo visse o que era um homem: esse, foi vosso esposo. Agora o resto: eis vosso esposo, espiga definhada que o irmão sadio empesta. Tendes olhos? Como deixaste a alta montanha para ancorardes no lamaçal? Ah! tendes olhos? Não chameis a isso amor, que em vossa idade o sangue se arrefece, fica humilde e obedece à razão. E que razão passa deste para este? Sois sensível, pois vos moveis; mas tendes os sentidos paralisados. A loucura acerta; nunca os sentidos ficam subjugados pela paixão, a ponto de falharem totalmente na escolha. Que demónio vos logrou de uma vez na cabra-cega? O olho sem tacto, o tacto sem visão, o ouvido só por si, o olfacto apenas, a menor parte, em suma, de um sentido verdadeiro, jamais se estontearia desse feitio. Vergonha, por que não coras? Se nos ossos de uma matrona, inferno, te rebelas, que a continência fique, para os moços ardentes, como a cera, que amolece no próprio fogo; nem de mancha fales, quando no ataque se atirar o instinto, uma vez que é tão quente a própria geada e a razão é alcoveta da vontade.
A RAINHA: Não fales mais, Hamlet; a olhar me forças no mais íntimo da alma, onde acho manchas profundas e tão negras, que não perdem jamais a cor.
HAMLET: Viver num leito infecto que tresanda a suor rançoso, prostituída pelo deboche, melando e fornicando num chiqueiro asqueroso!
 A RAINHA: Oh! Não prossigas! Apunhalam-me o ouvido essas palavras. Basta, querido Hamlet!
HAMLET: Um assassino, um vil escravo, que não é um vigésimo do outro marido, um rei-bufão, um simples gatuno do governo desta terra, que a coroa empalmou da prateleira e a pôs no bolso.
 A RAINHA: Basta!
 HAMLET: Um rei-palhaço, em trajes de mendigo...
(…)
Espectro: (…) Para o mais fraco corpo seja a mão mais forte.

(…)
A RAINHA: Isso é fruto, somente, de teu cérebro. É sempre muito fértil o delírio no inventar essas coisas.
 HAMLET: Delírio? Meu pulso, como o vosso, é compassado; toca música sã. Não foi loucura quanto falei; ponde-me à prova: posso dizer tudo de novo. Um desvairado divagaria. Mãe, por vossa graça, não lisonjeis vossa alma, acreditando que ouvis um louco e não vosso delito. A úlcera externa, assim, se fecharia, enquanto a corrupção minará tudo por dentro, sem ser vista. Ao céu volvei-vos; mostrai-vos do passado arrependida; evitai o futuro, sem que a má semente adubeis e lhe deis, assim, mais viço. Perdoai-me esta virtude, que nesta época bem cevada e de fôlego cortado necessita a virtude rebaixar-se ao próprio vício e apresentar-lhe escusas por tudo o que de bem possa fazer-lhe.
(…)

RAINHA: Hamlet, o coração em dois me partes.
HAMLET: Jogai fora a metade que não presta, para com a outra parte serdes pura. Mas evitai a cama do meu tio; fazei-vos de virtuosa, se o não fordes. O hábito, esse demónio que devora todos os sentimentos, nisso é um anjo, pois para o uso de ações boas e belas empresta vestimenta ou capa externa que lhes vão bem. Abstende-vos por hoje, que isso há-de conferir facilidade à próxima abstinência; a outra, mais fácil vos há-de parecer, os costumes mudam o cariz a natureza, doiram o demónio e até expulsá-lo com poder prodigioso…
A RAINHA: Que é preciso que eu faça?
 HAMLET: Nada do que vos disse neste instante. Que outra vez para o leito o rei balofo, vos conduza e no rosto vos belisque vos chame de ratinha, e que dois beijos infectos e carícias com as mãos grossas em vossas costas pronto vos induzam a revelar-lhe que estou bom do juízo, mas que finjo loucura. Dizei-lhe isso. Que rainha sensata, bela e honesta esconderia coisas tão preciosas de um sapo, de um morcego? É concebível? Apesar do bom senso, abri a gaiola no telhado e deixai fugir o pássaro; depois, como o macaco famoso, entrai nela e fazei logo a experiência para em baixo, com ela partirdes o pescoço.
A RAINHA: Garanto-te, se o falar consiste em respirar, e o fôlego for vida, não terei vida alguma que respire quanto me revelaste.
(…)
HAMLET: Selaram cartas (vou para Inglaterra); meus dois companheiros de escola, em quem me fio como em dentes de víbora, encontram-se com a incumbência de aplanar-me o caminho e conduzir-me direto ao cativeiro. Pois trabalhem! Há de ser engraçado ver a bomba fazer saltar o autor. Por mais difícil que seja, hei de cavar mais fundo ainda, para jogá-los no alto. Como é belo ver a astúcia vencer a própria astúcia!

Insano como o mar e o ar quando ambos disputam quem é o mais forte.

(…) mas era tanto o nosso amor, que não pudemos perceber o que convinha, como o atacado de mal vergonhoso que se deixa devorar até aos ossos, sem divulgar o que o corrói.

A sua loucura é filão de oiro puro entre os minérios de inferior metal, brilhando intacto…

(…) e o boato vai correr mundo, tão rápido como bala de canhão ao alvo desfecha o tiro envenenado.

ROSENCRANTZ: Tomais-me por uma esponja, príncipe?
HAMLET: Sim, senhor, que sugas os favores, as recompensas e a autoridade reais. Aliás, semelhantes cortesãos [esponjas] prestam ótimo serviço ao rei, que procede com eles como o macaco, conservando-os por algum tempo no canto da boca, antes de engoli-los. Quando tem necessidade do que acumulastes, basta espremer-vos, para que, esponjas, fiqueis novamente enxutos.

As subtilezas dormem nos ouvidos dos parvos.

O corpo está com o rei, mas o rei não está com o corpo. O rei é uma coisa...

O povo irresponsável adora-o, seus olhos não vêem outra coisa; não pensam. Assim se pesa a pena do culpado, mas nunca a sua culpa.


O REI: Então, Hamlet, onde está o cadáver de Polónio?
HAMLET: Está ceando.
O REI: Ceando! Onde?
HAMLET: Não onde ele come, mas onde é comido. Certa assembleia de vermes políticos ocupa-se justamente dele. Quanto a comida o verme  é o vosso imperador. Engordamos as criaturas, para que nos engordem, e engordamo-nos para dar de comer aos gusanos. Um rei gordo e um mendigo magro são iguanas diferentes; dois pratos, mas para a mesma mesa: eis tudo.
(…)
HAMLET: Pode-se pescar com um verme que haja comido de um rei, e comer o peixe que se alimentou desse verme.
 O REI: Que queres dizer com isso? HAMLET: Nada; apenas mostrar-vos como um rei pode fazer um passeio pelas tripas de um mendigo.



HAMLET: Marchais contra toda a Polônia, ou porventura um ponto da fronteira?
O CAPITÃO: Para falar verdade, sem acréscimo, vamos lutar por uma nesgazinha que outro lucro não deixa além da glória. Cinco ducados, cinco, eu não daria para arrendá-la, nem mais obteriam a Noruega e a Polónia, se a vendessem.
HAMLET: Nesse caso, o Polaco a não defende.
O CAPITÃO: Isso é que sim! Já se encontra guarnecida.
 HAMLET: Não chegarão duas mil almas e vinte mil ducados para remir questão que não vale uma palha… é o tumor nascido da longa paz e da riqueza, que rebenta para dentro, sem mostra exterior. Mas mata homens!
(…)

HAMLET: Como tudo me acusa, espicaçando-me à vingança! Que é o homem, se sua máxima ocupação e o bem maior não passam de comer e dormir? Um simples bruto. Decerto, quem nos criou com a faculdade que ao passado e ao futuro nos transporta, não nos deu a razão divina, para que fique inútil. Seja esquecimento bestial, ou mesmo escrúpulo covarde que me leva a pensar demais nas coisas - pensamento com um quarto de bom senso e três de covardia - ignoro a causa de ficar a dizer: Devo fazê-lo, se para tal me sobram meios, força, causa e disposição. Exemplos grandes como a terra me exortam: este exército de tal poder e número, chefiado por um príncipe moço e delicado, cuja coragem a ambição divina faz exaltar, levando-o a defrontar-se com os factos invisíveis e a sua parte mortal e pouco firme a pôr em risco contra o que ousa a fortuna, o acaso e a morte, por uma casca de ovo. O ser, de facto, grande não é empenhar-se em grandes discursos; grande é quem luta até por uma palha, quando a honra está em jogo. E eu, deste modo, com o pai assassinado, a mãe poluída - razões de estimular o sangue e o brio - nada me esperta? Vejo, envergonhado, vinte mil homens próximos da morte, que por simples capricho da vaidade caminham para o túmulo tal como se fossem para o leito, e lutam pela conquista de um terreno em que não cabem, e que como sepulcro ainda é pequeno para esconder sequer os que aí tombarem. Doravante terei só pensamentos de sangue ou sem valor, soltos aos ventos.


Tão assediada é a culpa de apreensões sem jeito que, temendo derramar-se, se derrama a eito.

Nós sabemos o que somos, mas não o que podemos vir a ser.

LAERTES: Que significa esse barulho? (Entra Ofélia.) Febre. seca-me o cérebro! Corroei-me, lágrimas sete vezes salgadas, a virtude dos olhos! Pelo céu! tua loucura será pesada até que desça o prato da balança. Rosa de maio, irmã, doce menina, querida Ofélia! Ó céu! É então possível que a razão de uma jovem seja frágil como o alento de um velho?


Vem ter comigo com a velocidade de quem foge à morte!

Sei que o Amor nasceu com o Tempo, e vi através de provações que o Tempo lhe modera o fogo e a luz. Na própria chama do Amor há pavio e morrão que o abatem, e nada mantem a sua excelência, pois esta ao crescer excessiva, morre desse mesmo excesso.
    Devemos actuar quando a vontade chama pelo desejo, poi este muda e tanto sofre de atrasos e fraquezas como línguas, mãos e acidentes se apresentam, fazendo do dever um simples suspiro, ainda que custoso de exalar.

Quando se forem estas lágrimas com ela irá a mulher que em mim chora…

HAMLET: Esse sujeito não terá o sentimento da profissão, para cantar, quando está abrindo uma sepultura?
 HORÁCIO: O hábito tudo torna igual e fácil…
 HAMLET: É isso; as mãos que trabalham pouco são mais sensíveis.
(…)
HAMLET: Tempo houve em que aquele crânio teve língua e podia cantar; agora, esse velhaco atira-o ao solo, como se se tratasse da mandíbula de Caim, o primeiro homicida. É bem possível que a cabeça que esse asno maltrata desse jeito seja de algum político que enganava ao próprio Deus, não te parece?
(…)
HAMLET: E agora, depois de pertencer a lorde Verme, que lhe comeu as carnes, este sujeito lhe bate com a enxada no maxilar. Se pudéssemos acompanhá-lo em todas as fases, surpreenderíamos nisso uma bela revolução. Levarem tanto tempo esses ossos para se formarem, só para virem a servir de bola [jogar à péla]! Só de pensar em tal coisa, sinto doer os meus.

(…)

HAMLET: Mais um crânio. Por que não há-de ser o de um jurista? Onde foram parar as subtilezas, os equívocos, os casos, as enfiteuses, todas as suas chicanas? Por que consente que este maroto rústico lhe bata com a enxada suja, e não lhe arma um processo por lesões pessoais? Hum! É bem possível que esse sujeito tivesse sido um grande comprador de terras, com suas escrituras, hipotecas, multas, endossos e recuperações. Consistirá a multa das multas e a recuperação das recuperações em ficarmos com a bela cabeça assim cheia de tão bonito lodo? Não lhe arranjaram seus fiadores, com as fianças duplas, mais espaço do que o de seus contratos? Os títulos de suas propriedades não caberiam em seu caixão; não obterão os herdeiros mais do que isso?

Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre tornou-se pó. O pó é terra; da terra faz-se argila; por que, então, não se poderá tapar um barril de cerveja com a argila em que ele se converteu? O grande César morto e em pó tornado, pode a fenda vedar ao vento irado. O que outrora foi do mundo pesadelo, calafeta muros, poupa-nos do gelo.

É perigoso, para espíritos mesquinhos, quando intervém a baixa natureza e têm de passar por entre dados ardentes, lançados entre inimigos poderosos.


Horácio: Mas que raio de Rei é esse?
Hamlet: (…) Ele que matou meu pai e minha mãe prostituiu, intrometeu-se na sucessão e minhas esperanças. Com o seu anzol pescou-me a vida até- e com que imposturas! Não será maldito quem deixe tal cancro da humana natureza fazer ainda males maiores?


(…) é pecado conhecê-lo. Possui muitas terras e todas férteis. Se fosse animal, o rei dos animais, a manjedoura deste ficaria sempre ao lado da mesa do rei. É um fala-barato, mas, como disse, dono de grandes extensões de lama.

(…) considero-o uma alma de grandeza exepcional, com dotes tão preciosos e raros, que, igual a ele, só poderá encontrar em seu próprio espelho. Qualquer outra tentativa para retratá-lo redundaria em sua simples sombra.

Conhecer bem um homem é estar-lhe na pele…

Já cumprimentava as tetas antes de mamar… como os muitos do mesmo rebanho, que constituem o encanto de nossa época superficial, adquiriu apenas o tom da moda e o verniz da sociedade, que, como espuma fina, o fazem passar através das opiniões mais joeiradas e batidas. Mas bastará soprar, para que as bolhas rebentem e não ficará nada.

Ao futuro que a ele pertence!

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Voltaire- Cândido


Quem afirma que tudo está bem diz apenas uma asneira. É preciso afirmar que tudo vai pelo melhor. J

Não havia nada mais belo, mais ágil, mais brilhante, mais bem ordenado, do que aqueles dois exércitos. As trombetas, os pífaros, os clarinetes, os tambores, os canhões, formavam tal harmonia como nunca houve outra igual no inferno.

(…) creis que o Papa seja o Anticristo?

(…) estou infinitamente mais comovido pela vossa generosidade do que indignado pela dureza desse senhor.

(…) o amor, o consolador do género humano, o conservador do Universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor.

Decerto que os homens corromperam um pouco a Natureza, porque não nasceram lobos e tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhões nem baionetas, e eles imaginaram os canhões e as baionetas para se destruírem.

As desgraças particulares fazem o bem geral. De modo que quanto mais houver desgraças particulares, mais tudo irá bem.

(…) corre em socorro do marinheiro em perigo, ajuda-o a subir, e desses trabalhos resulta-lhe cair ao mar mesmo à vista do marinheiro, que o deixa morrer sem sequer o olhar.

Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um segredo infalível para impedir a terra de tremer.

A queda do homem e a maldição divina são partes necessárias no melhor dos mundos possíveis.

Uma mulher honesta pode ser violada uma vez, mas a sua virtude fortalece-se.

Quando se está enamorado, ciumento, (e se foi chicoteado pela Inquisição), um homem não responde por si.

Os nossos soldados defenderam-se como autênticos soldados do Papa! Puseram-se todos de joelhos, vertendo lágrimas, e pediram ao capitão dos corsários uma absolvição.

Que pode haver de mais idiota do que carregar sem descanso um fardo que se pensa continuamente em atirar para o chão, que ter horror de si próprio, apegar-se ao seu ser e acariciar a serpente que nos ameaça até ao momento de nos devorar o coração?

(…) vos aconselho a que vos distraias, convidai cada passageiro a contar a sua história; mas se encontrar um só que nunca tenho amaldiçoado a vida e que nunca tenha dito para si mesmo que era o mais infeliz dos homens, deitem-me ao mar de cabeça para baixo.

As mulheres resolvem sempre os seus problemas com a ajuda de Deus.

Não há prazer comparável ao de ver e fazer coisas novas.

É uma coisa admirável, esse governo. O seu reino já tem trezentas léguas de diâmetro e foi dividido em trinta províncias. Os Padres são donos de tudo e o povo de nada, tudo aquilo é uma obra-prima da razão e da justiça. Quanto a mim, não sei que exista na terra coisa mais divina do que os tais Padres, que aqui fazem a guerra ao rei de Espanha e ao rei de Portugal, mas que na Europa confessam esses mesmos reis; que aqui matam os espanhóis e em Madrid os despacham para o céu.

O direito natural ensina-nos a matar o nosso próximo, e tanto assim é que se não faz outra coisa em toda a terra. Se nós não usamos do direito de o comer, é porque temos outros géneros em abundância.

Nós não fazemos preces- disse o bom e respeitável sábio, nós não temos nada a pedir, porque Deus nos deu tudo o que necessitamos; apenas lhe rendemos incessantes graças.

Gosta-se tanto de correr o mundo e fazer valer-se no regresso a casa, fazendo assim ostentação do que se viu nessas viagens…

- Meu amigo, vede como as riquezas deste mundo são falíveis; só é sólida a virtude e a felicidade de rever a menina Cunegundes.

-Quando minha mãe me vendeu na costa da Guiné, recomendou-me: “ Meu querido filho, bendiz os nossos fétiches holandeses, e adora-os sempre; por eles viverás feliz. Tens a honra de ser escravo dos nossos senhores brancos e por esse facto fazes a fortuna do teu pai e de tua mãe”
-Ai ! Não sei se fiz a fortuna deles, mas sei que eles não fizeram a minha.

-Que é isso de optimismo?
-É o furor de insistir que tudo está bem quando está mal.

O diabo intervém de tal forma nas coisas deste mundo, que tanto pode estar no meu corpo como em qualquer outra parte; (…) Ainda não vi cidade que não desejasse a ruína da cidade vizinha, nem família que não quisesse exterminar alguma outra família. Por toda parte, os fracos execram os poderosos perante os quais se arrastam, e os poderosos tratam os fracos como rebanhos de que vendem a lã e a carne. Um milhão de assassinos arregimentados, correndo a Europa, exerce o assassínio e a pilhagem disciplinadamente, porque não têm profissão mais honesta; e, nas cidades que aparentemente vivem em paz, nas cidades onde as artes florescem, os homens consomem-se com mais inveja, cuidados e inquietações do que uma fortaleza sitiada sofre tais flagelos. Os desgostos secretos são ainda mais cruéis do que as misérias públicas.

Discutiram quinze dias a fio, e ao fim dessa quinzena estavam tão avançados como no primeiro dia. Mas, enfim, falavam, comunicavam ideias, consolavam-se.

- Mas então com que fim foi o mundo criado?
- Para nos enfurecer.

- Julgais possível que os homens sempre se hajam mutuamente massacrado, como fazem agora, e que sempre tenham sido mentirosos, velhacos, pérfidos, ingratos, salteadores, avaros, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, debochados, fanáticos, hipócritas e idiotas?
- Julgais possível que os gaviões sempre hajam comido os pombos que apanham ao seu alcance? Se os gaviões tiveram sempre o mesmo carácter, por que razão teriam os homens mudado o seu?

-É verdade que em Paris se ri sempre?
-Sim, mas é de furor; porque aqui queixam-se de tudo às gargalhadas e ainda a rir fazem as mais detestáveis ações.

- Quem é o idiota que me disse tanto mal da peça?
- É um falhado que ganha a vida a dizer mal de todas as peças e de todos os livros; odeia todos os que triunfam, como os eunucos odeiam todos os que gostam de prazer; é uma destas serpentes da literatura, que se alimentam de imundície e veneno.

Como ele discute a fundo aquilo que não vale a pena ser examinado ligeiramente! Como ele se apropria sem vergonha da graça alheia! Como ele estraga o que rapina! Como ele me repugna!

- Um sábio ensinou-me que tudo vai às mil maravilhas; o resto são sombras num belo quadro.
- Esse sábio troçava do mundo, essas sombras são manchas horríveis.

- O que é este mundo?
- Algo de muito louco e bem abominável (…) tudo não é senão ilusão e calamidade.

Os tolos admiram tudo num autor consagrado.

Como digo o que penso, cuido pouco de que os outros pensem como eu.

-Não é um prazer criticar tudo, e ver defeitos onde os outros homens crêem ver beleza?
-O mesmo será dizer que há prazer em não ter prazer.

O homem é nado e criado para viver na inquietação, ou na letargia do aborrecimento.

-Porque foi criado um animal tão exótico como o Homem? (…) o mal que cobre a terra é tão medonho!
-E que nos importa que haja mal ou bem? Quando sua Alteza envia um navio ao Egipto importa-se acaso em saber se os ratos que andam por lá estão ou não à sua vontade?

O trabalho liberta-nos de três calamidades: o aborrecimento, o vício e a necessidade.

Trabalhemos sem filosofar, porque é o único meio de tornar a vida saudável.

É preciso cultivar o nosso jardim.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Jonathan Swift- As Viagens de Gulliver




(…) belo como a Primavera, agradável como o Verão, pródigo como o Outono e terrível como o Inverno.

Quão pouco valor têm os maiores serviços prestados aos poderosos quando, depois, se lhes nega o apoio nas suas paixões.

Consideram a fraude um crime mais grave que o roubo. Alegam que, com cuidado, vigilância e uma inteligência comum, os bens de uma pessoa podem salvaguardar-se dos ladrões; mas que a honestidade não tem defesa possível perante uma astúcia superior.

A ausência de virtudes morais não pode ser recompensada pelas superiores capacidades do intelecto, é até perigoso certos cargos a pessoas só assim qualificadas.

Os erros cometidos por ignorância, mas com boa intenção, nunca são tão nefastos ao bem público como as acções praticadas por um homem cujas inclinações o levam à corrupção e dispondo de capacidades para manobrar, multiplicar e encobrir as suas desonestidades.

Aquele que retribui ao seu benfeitor com o mal, tem de ser, necessariamente, inimigo do resto da humanidade, à qual não deve favores.

A boa esposa deve ser sempre uma companheira interessante e agradável, porque não se é eternamente jovem.

Nada há de mais injusto que pessoas, na subserviência de todos os seus apetites, ponham as crianças neste mundo e abandonem aos outros o encargo de as sustentar.

Não existe grande ou pequeno, senão em comparação.

(…) a parte menos honrosa do meu corpo.

(…) desejando saber se senhores tão zelosos não teriam,  antes, em vista a possibilidade de se reembolsarem dos trabalhos e incómodos por que passavam, sacrificando o bem público aos desígnios de um príncipe fraco e vicioso, assistido por um ministro corrompido.

(… ) como é que um reino suportava a administração dos seus bens como se tratasse de um empreendimento particular?

A ignorância, a frivolidade e o vício, são os ingredientes mais adequados para a qualificação do legislador.

As leis são melhor explicadas, interpretadas e aplicadas por aqueles cujo interesse e habilidade está em pervertê-las, confundi-las e iludi-las.

(…) se nós eramos governados pelos nossos representantes e com o nosso consentimento, não compreendia quem nós receávamos ou contra quem nos queríamos bater (…) não posso deixar de concluir que os teus compatriotas constituem a mais perniciosa raça de vermes odiosos que a natureza  jamais permitiu que rastejassem na superfície da Terra.

Declarou ter abominação e desprezo por todo o “mistério”, “subtileza” e “intriga”, tanto num príncipe como num ministro. Não percebia o que eu queria dizer com “segredos de Estado”, quando não se tratava de um inimigo ou alguma nação rival.

Quem quer que conseguisse fazer nascer duas espigas de trigo onde antes apenas nascia um era mais digno de humanidade e teria prestado um serviço mais essencial ao seu país que toda a raça de políticos juntos.

Quão diminuto, desprezível e indefeso animal é o homem na sua natureza própria (…). Acrescentava que a natureza degenerara nestas últimas épocas de decadência do mundo, conseguindo agora apenas produzir pequenos abortos, comparados com os seres dos tempos primitivos.

Não podia deixar de reflectir acerca desta moral universal que conduz toda a gente a queixar-se das forças da natureza, exagerando as fraquezas próprias.

(…) durante muitas eras foram atormentados pelo mesmo mal a que toda a raça humana é atreita: a nobreza que luta pelo poder, o povo pela liberdade e o rei por um domínio absoluto.

A verdade sempre impressionou espíritos racionais.

Há que considerar que os caprichos das mulheres não são limitados pelo clima ou nação e que elas são muito mais parecidas umas às outras do que vulgarmente se crê.

(…) e sabem bem quão instável é a posição de favorito.

Propunham (…) que se ensinasse os ministros a terem sempre em vista o bem comum; para que se recompensasse o mérito, o talento e os serviços eminentes; para que se instruísse os príncipes a reconhecerem o seu verdadeiro interesse, identificando-o com o do seu povo; para que vários lugares públicos se escolhessem as pessoas verdadeiramente capazes de os exercer; e muitas outras quimeras impossíveis, que jamais inspiraram os homens.

Não existe nada, por mais absurdo e irracional, que não tenha sido tomado como verdadeiro.

Havia um doutor de espírito muito engenhoso, que parecia possuir a fundo o conhecimento de toda a natureza e arte de governar. Esta ilustre pessoa dedicara ultimamente os seus estudos na descoberta dos remédios eficazes para todas as doenças e corrupções a que as várias repartições de administração pública estão sujeitas, graças aos vícios e enfermidades daqueles que governam, assim como à libertinagem daqueles que é suposto obedecerem. E assim, uma vez que todos os escritores e filósofos estão de acordo em como existe uma estreita  semelhança universal entre o corpo natural e o corpo político, não se tornará por de mais evidente que a saúde de ambos deva ser preservada e as suas maleitas tratadas segundo os mesmos métodos? É um facto admitido por todos que os senados e conselhos de Estado são efervescentes e outros igualmente mórbidos; por doenças de cabeça e, sobretudo, de coração; por fortes convulsões e atrozes contracções dos nervos e tendões em ambas as mãos, especialmente na direita; por má disposição, flato, vertigens, delírios; por tumores escrofulosos inchados de matéria purulenta e fétida; por apetites caninos e indigestões… Perante isto, esse tal médico propunha que, cada vez que um senado se reunisse, fosse permitida, durante as três primeiras sessões de trabalho, a presença de determinados médicos, que no fim de cada uma tomariam o pulso aos senadores, para, depois de maduramente terem considerado e estudado a natureza dos vários males e os seus métodos de cura, numa quarta sessão voltarem acompanhados dos seus farmacêuticos com os remédios adequados, e, antes que os membros do senado retomassem os seus lugares, administrar-lhes-iam os respectivos lenitivos, aperitivos, abstersivos, corrosivos, restringentes, paliativos, laxativos, cefalálgicos, ictéricos, apoflegmáticos e acústicos, conforme as várias doenças a debelar. E, segundo os resultados obtidos, estes remédios seriam repetidos, alterados, ou omitidos na reunião seguinte do senado.
    A execução deste projecto (….) teria grande utilidade na resolução dos assuntos prementes naqueles países em que os senados partilham do poder legislativo, pois condicionaria a unanimidade, abreviaria as polémicas, abriria algumas bocas que agora se mantêm fechadas e fecharia muitas outras que estão permanentemente abertas, refrearia a petulância dos jovens e corrigiria a teimosia dos velhos, despertaria os estúpidos e desanimaria os insolentes.
    E porque todos se queixam de pouca e fraca memória (…) propunha que quem quer que fosse recebido por um primeiro-ministro fizesse da forma mais breve possível a exposição do assunto que vinha a tratar e, quando fosse a sair, desse ao dito ministro um piparote no nariz ou um murro na barriga, lhe pisasse os calos ou puxasse repetidas vezes as orelhas, lhe espetasse um alfinete no fundo das costas ou lhe beliscasse os braços, para evitar esquecimentos. E, caso fosse necessário, aconselhava que em cada audiência concedida repetisse a mesma operação, até o seu pedido ser satisfeito ou definitivamente recusado.
    (…) todo o senador importante, depois de ter emitido a sua opinião e alegado a sua defesa devia ser obrigado a dar o seu voto contra, pois, se procedesse assim, o resultado contribuiria infalivelmente para o bem público.

Assisti a uma discussão deveras acesa, entre dois professores, sobre quais os métodos mais úteis e eficazes de extorquir dinheiro sem que a pessoa o sinta:
O primeiro sustentava que o método mais justo consistia em fazer incidir determinado imposto sobre vícios e disparates cometidos pelos homens, devendo a taxa individual ser determinada com justiça por um júri composto pelos vizinhos de cada um;
O segundo defendia uma opinião literalmente oposta, de que deviam estar sujeitas a imposto aquelas qualidades físicas e intelectuais, pelas quais os homens se avaliam a eles próprios, sendo o montante determinado segundo os vários graus de superioridade, decisão esta que era inteiramente deixada ao livre arbítrio de cada um. O imposto mais elevado incidiria nos homens que se destacassem como favoritos do belo sexo, devendo o seu montante ser determinado pelo número e natureza dos favores que lhes eram concedidos, os quais eles estavam autorizados a testemunhar. O talento, o valor e a cortesia estariam de igual modo sujeitos a contribuições elevadas, sendo aqui também o próprio indivíduo quem apresentaria uma relação das suas posses neste capítulo. Enquanto isso, a honra, a justiça, a sabedoria e a cultura seriam isentas de qualquer taxa, pois são elas qualidades  de espécie tão rara que ninguém as atribuiria ao seu vizinho ou encontrava em si próprio.
    Quanto às mulheres, as contribuições a pagar recairiam sobre a sua beleza e arte no vestir, que gozavam o mesmo privilégio dos homens, pois seriam elas próprias quem as determinariam. Porém, a constância, a castidade, o bom senso e o carácter não eram apreçados sequer, pois não compensariam o incómodo de os cobrar.

Um outro professor (…) aconselhava os grandes homens de Estado a indagarem sobre o alimento de todas as pessoas suspeitas de possíveis tramas e conspirações contra o Governo; as suas horas das refeições, para que lado se deitavam e a mão de que se serviam para limpar o traseiro. Em seguida após um exame minucioso dos seus excrementos, da sua cor, cheiro, gosto e consistência, se apresentava restos de alimento ingerido ou se a digestão tinha sido perfeita, formar-se-ia uma ideia sobre os seus pensamentos e desígnios, pois em nenhum outro lugar se está mais concentrado, pensativo e decidido que na retrete.

Enchi a vista com as imagens dos justiceiros derrubando os tiranos e usurpadores e a dos libertadores das nações oprimidas e injuriadas.

Fiquei, sobretudo, desconsolado com a história moderna, pois (…) vim a descobrir como o mundo fora enganado por escritores prostituídos, que atribuíram os maiores empreendimentos guerreiros a cobardes, as decisões mais sensatas a idiotas, a sinceridade a lisonjeiros, a virtude a traidores, a piedade aos ateus, a castidade aos corruptos e imorais e a verdade aos denunciantes. Quantas não foram as pessoas de carácter e inocentes condenadas à morte e ao exílio pela influência funesta dos ministros importantes sobre depravados juízes e pela maldade dos partidos. Quantos não foram os vilãos chamados a ocupar os cargos mais elevados de confiança, poder, dignidade e benefício. Até que ponto alcoviteiras, prostitutas, proxenetas, parasitas e bobos não influíram nos destinos das cortes e decisões dos senados e conselhos.
    Que opinião tão reles eu não formei da sabedoria e integridades humanas, depois de ficar perfeitamente elucidado sobre as origens  e motivos das grandes iniciativas e revoluções no mundo e sobre os desprezíveis acidentes a que devem o seu sucesso.
   (…) descobri também a patifaria e a ignorância daqueles que, almejando o sensacionalismo, pretendem escrever “anedotas” e história confidencial;  que enviam tantos reis para o outro mundo com uma pitada de veneno; que transcrevem a conversa entre um príncipe e o seu primeiro-ministro, a que ninguém assistiu; que desvendam os pensamentos e conteúdos das papelarias de embaixadores e secretários de Estado; e que têm a infelicidade de estar sempre enganados.
(…) descobri as causas verdadeiras de muitos dos grandes acontecimentos que surpreenderam o mundo, de como uma prostituta consegue manobrar alguém nos bastidores, como esse alguém vai influenciar um conselho e como um conselho interfere num senado. Um general confessou na minha presença que alcançara uma vitória puramente por cobardia e má orientação, enquanto outro, um almirante, por estupidez, derrotara o inimigo a quem pretendia entregar traiçoeiramente a sua armada. Três reis, pelo menos, afirmaram perante mim que durante os seus reinados nunca concederam privilégios especiais a alguém de merecimento, a não ser por erro ou traição de algum ministro em quem confiavam; e que nunca o fariam, pois, que o trono não poderia sobreviver sem a corrupção e que aquele temperamento positivo, confiante e empreendedor que a virtude infunde no homem constituía um entrave constante na administração pública.

Todos os novos sistemas da natureza não passam de novas modas, que, como tal, variam de época para época; e que mesmo aqueles que os pretendem demonstrar por meio de princípios matemáticos apenas causam sensação durante um certo período de tempo, sendo regalados ao esquecimento quando assim se decide.

A vida eterna era um desejo universal, inerente à humanidade (…), mas como  suportar essa mesmo eternidade sob as condições desvantajosas que a idade habitualmente acarreta (…) as doenças, tornarem-se rabugentos, avarentos, taciturnos, vãos,  (…) invejosos e desejosos de paixões impossíveis. Os principais alvos da inveja, os jovens e os que morrem de velhice. Quanto aos primeiros, por exclusão de toda a possibilidade de prazer; quanto aos segundos, por não se poder, finalmente, descansar em repouso.

(…) quais as causas ou motivos habituais que levam um país a declarar guerra a outro. Respondi-lhe que eram inumeráveis e lhe apontaria, apenas as principais. Provinham, por vezes, da ambição dos príncipes, que não se contentavam com as terras e o povo que tinham para governar; e outras vezes de corrupção dos ministros, que, provocando a guerra, procuravam por este meio abafar o descontentamento dos súbditos pela sua perniciosa administração. A diferença de opiniões causara, também, milhões de vidas; como, por exemplo, se a “carne” era “pão” , ou o “pão” a “carne”; se “assobiar” construía “vício” ou “virtude”; se a cor mais adequada para um casaco seria o “preto”, o “branco”, o “vermelho” ou o “cinzento” (…) e muitas outras divergências do género. Disse-lhe, ainda, serem as guerras mais terríveis e sanguinolentas, e de maior duração, exactamente aquelas que tinham por base uma diferença de opinião, geralmente sobre coisas sem importância.
   Acontece, por vezes, dois príncipes guerrearem-se para decidir qual dos dois se há-de apoderar dos domínios de um terceiro, a que nem um nem outro tem direito. Outras vezes é um príncipe que declara guerra a outro com receio que o outro lhe declare a ele. Entra-se, também, em guerra ou porque o inimigo é “forte” ou porque é “fraco” de mais. Do mesmo modo , vizinhos nossos “querem” coisas que nós “temos”, ou “têm” coisas que nós “queremos”, e ambos lutamos, até que eles nos tirem o que é nosso ou nos dêem o que é deles. Outro motivo importante para levar a guerra a um país estrangeiro é vê-lo assolado pela fome, devastado pela peste, ou enfraquecido pelas lutas internas. Justifica-se , também, entrar em guerra com o nosso vizinho mais próximo quando uma das suas cidades tenha boa situação estratégica ou porque uma faixa do seu território traria mais consolidação aos nossos domínios. Se um príncipe volta as suas forças contra a nação, cujo povo é pobre e ignorante, ele pode, de modo a civiliza-los e a tirá-los da barbárie em que vivem. É prática muito real, distinta e frequente, quando um príncipe requer a ajuda de outro contra um invasão, esse outro, após ter posto em fuga o invasor, apoderar-se ele próprio dos domínios, matando, encarcerando ou banindo o príncipe que ele veio ajudar. Os laços de sangue, ou por casamento, são causa suficiente para a guerra entre príncipes; e quanto mais chegado é o parentesco maior é a sua disposição para se guerrearem. As nações “pobres” é porque têm “fome”, as “ricas”, porque são “orgulhosas”; e, se há pessoas quezilentas, é a esfomeada ou a orgulhosa. Por tudo isto, o ofício de “guerreiro” é o mais considerado de todos os outros; e ser “guerreiro” é matar, por contrato, a sangue-frio, o maior número possível da sua espécie.   


(…) mas ele continuava sem perceber como a lei, que fora instituída para o bem de todos os homens, poderia trazer ruina a algum. (…) Contei-lhe que havia entre nós uma determinada classe de homens, instruídos desde jovens na arte de provar  por palavras que “branco” era “preto” e “preto” era “branco”, consoante o que se lhes paga; (…) o que, se for feito com habilidade, convencerá os juízes.
Estes juízes são pessoas designadas para decidir (…) são já idosos e anseiam acima de tudo pelo seu sossego. E vêem-se numa fatal necessidade de favorecer a fraude, o perjúrio e a opressão.
Faz esta sociedade uso de uma linguagem muito peculiar, tanto no fraseado como no modo de expressão, de compreensão impossível para o profano. Nela estão escritas todas as suas leis, que eles têm tido um cuidado especial em multiplicar, e com ela lançam a confusão entre a verdade e a mentira, o bem e o mal. Não é de estranhar que, passados dez, vinte ou trinta anos, chegarem finalmente a uma conclusão.

(…) não percebia que motivos levavam tal raça de advogados a esfalfar-se para a sua admissão numa confraria de injustiça, pela qual apenas iam causar dano aos seus semelhantes.

Os ricos gozavam do fruto do trabalho dos pobres, os quais existiam na proporção de um para mil. E a maioria do nosso povo vivia miseravelmente, trabalhando de sol a sol e ganhando um mínimo, para uns tantos privilegiados viverem abastados.

Um primeiro-ministro era uma criatura isenta de sentimentos (…) Nenhuma outra paixão o movia, senão um violento desejo pelas riquezas, poder e títulos. As suas palavras eram abundantes, não exprimindo, porém, o que verdadeiramente lhe ia no pensamento; dizia “verdades” disfarçadas de “mentiras” e “mentiras” a ser tomadas por verdade (…) E não há nada pior que receber uma “promessa”, especialmente quando esta é confirmada por juramento, depois do que a única solução sensata é uma pessoa retirar-se de vez e perder todas as esperanças (políticas).
(…) e por último, dispõem de um recurso designado por “acto de imunidade”, pelo qual se vêem livres de quaisquer ajustes de contas, retirando-se, em seguida, da vida pública, carregados dos frutos da sua pilhagem à nação.

O verdadeiro fidalgo, de sangue realmente nobre, distingue-se pelo seu corpo descarnado e doentio, a expressão tristonha e lânguida e a cor macilenta, pelo que, quando algum tem a desgraça de aparentar um rosto saudável e robusto, logo se suspeita de ser filho de um criado ou cocheiro.

Nos nossos “tribunais de justiça” não se dá por finda uma causa sem que um e outro tenham perdido tudo o que possuíam.

Colocava o entendimento humano num plano inferior ao da sagacidade no cão vulgar, que tem tino suficiente para distinguir e seguir o ladrar do “cão mais habilidoso da matilha”, sem nunca se enganar.

Os rudimentos da “lascívia”, “coquetismo”, “crítica” e “escândalo” existem por instinto na mulher.

Numa reunião de pessoas, uma pequena pausa de silêncio é salutar para a conversa que se mantém, pois durante este intervalo surgem no espírito novas ideias que vão estimular e dar seguimento ao que anteriormente se disse.