terça-feira, 30 de outubro de 2012

Fernando Pessoa- Livro Do Desassossego (III)


Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.

É que a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.

É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a Lua como se houvesse maneira de a obter.

Se é; foi isso mesmo. Se não é, passe por o que poderia ser, e a intenção valha pala metáfora que falhou.

À porta da cabana que não tive sentei-me ao sol que nunca houve, a gozar a velhice futura da minha realidade cansada (com o prazer de a não ter ainda).

Dormir! Adormecer! Sossegar! Ser uma consciência abstrata de respirar sossegadamente; sem muno, sem astros, sem alma – mar morto de emoção refletindo uma ausência de estrelas.

O peso de sentir! O peso de ter que sentir!

Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos.

As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo Deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como forma criadas.

Se viajasse, encontrava a cópia débil do que já vira sem viajar.

 Escrevo como quem dorme, e toda a minha vida é um recibo por assinar.

Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.

O que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui.

Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde se não está…

Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho e faltam a esse também.

O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; O homem perfeito do budista a perfeição de não haver o homem.

A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente.

Muito mais longe está o homem superior do homem vulgar que o homem vulgar do macaco.

Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pai, não o irmão.

Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender.

Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida.

Há metáforas que são mais reais do que a gente anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana.

Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou os ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta que aquilo é real.

São sempre cataclismos do cosmos as grandes angústias na nossa alma.

O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória, nem ilusão, o não ter passado nem futuro.

A violência foi sempre uma forma esbugalhada de estupidez humana.

Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível.

O que eu quero deveras, com toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é ver o azul começar a surgir de entre elas, verdade certa e clara porque nada é nem querer.

Em tudo sou o que não sente, para que sinta.

Os homens de acção são os escravos involuntários dos homens de entendimento.

A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.



domingo, 28 de outubro de 2012

Fernando Pessoa- Livro Do Desassossego (II)


Nos primeiros dias de Outono subitamente entrado, quando escurecer toma a evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardámos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso é que a noite é noite e a noite é sono, lares, livramento.

Somos todos escravos das circunstâncias extremas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café da viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abriga-nos mal na case sem portas de nós mesmos; um chegar de noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque que se abre lento, a consciência íntima de dever-se repousar.

Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão, é somente ser mudado de cela.
E, perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior me sabe a frívolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais vivos e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais.

E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, é uma espécie de engano e loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quando fui e que vejo que afinal não sou.

E a minha sensação de mim é a de quem acordo depois de um sono cheio de sonhos reias, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós.

A morte disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.

A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida o cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa – não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio para nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado não se afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que não se afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência.
E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia – um dia sem tempo nem substância – se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós nos deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não ser.

Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.

Compreender é esquecer de amar.

Os meus hábitos são de solidão, que não dos homens.

Falar com gente dá-me vontade de dormir.

O artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho.

A beleza de um corpo nu só a sente as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia.

Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido.

Não se pode comer um bolo sem o perder.

Leio como quem abdica. Leio como quem passa.

Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora.

Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.

É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.

Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em que construía.

Benditos os que não confiam a vida a ninguém.

Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser.

Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma iguais.

Se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida.

Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entra matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.

Para um homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

Quanto mais deferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjectividade.

Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.

Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio.

Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.

Sei só que o tédio que sofro se me ajusta melhor, um momento como uma veste que deixa de roçar numa chaga.

Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estranho.

A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada de loucura latente.

Onde está Deus, mesmo que não exista?

A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se sente ser nula.

Por mais que meditemos qualquer coisa, e meditando-a, a transformemos, nunca a transformamos em qualquer coisa que não seja substância da meditação.

A superioridade do sonhar consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasta e muito mais variado do que o homem de ação.

Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixa-se de ser um sonho longínquo.

Não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram.

O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente.

Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os factos, e através das quais os factos, alterados para de acordo com elas chegam

Há momentos em que tudo cansa, até o que nos repousaria. O que nos cansa porque nos cansa; o que nos repousaria porque a ideia de o obter nos cansa.

Vivo sempre no presente. O futuro não o conheço. O passado não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada.

A vida é para nós o que concebemos dela.

Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido.

Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um facto significa não haver um facto. Pensar é não saber existir.

A vida pode ser sentida como uma náusea no estômago, a existência da própria alma como incómodo dos músculos. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz marés, de longe no corpo e dói por delegação.

Nunca amamos alguém. Amamos tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.

O onanista é abjecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.

Reina quem não está entre os vulgares.

Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente.

Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fetal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido.

Já vi tudo que nunca tinha visto. Já vi tudo que ainda não vi.

A vida é uma sonolência que não chega ao cérebro.

Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê como o olhar.

Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes.

Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da lama todos os que merecem.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fernando Pessoa- Livro do Desassossego (I)


Pertenço, porém àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços em que há ao lado.

O espírito humano tende a criticar porque sente e não porque pensa.

A decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida.

Alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezados do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.

Sabemos bem que toda a obra tem de ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos.

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.

Tenho que escolher o que detesto – ou o sonho, que a minha inteligência odeia, ou a ação que a minha sensibilidade repugna; ou a ação, para que não nasci, ou o sonho, para que ninguém nasceu.

Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas – uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.

A glória nocturna de ser grande não sendo nada!

Pedi tão puco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou.
…não me pesar muito o conhecimento que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim.

Vivo mais porque vivo maior.

Tenho amor a isto, talvez porque não tenho mais nada para amar – ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspeto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

A arte que mora na mesma rua que a vida, porém num lugar diferente, a arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só num lugar diferente.

Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu.

Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de manhã ter pena de ter tido pena de hoje – grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos.

O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios.

Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma.

Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido.

Um hálito de música ou sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.

Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.

Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quando me debrucei na janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.

Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.

Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhece!

O absurdo, a confusão, o apagamento – tudo que não fosse a vida…

Oiço cair o tempo. Gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.

Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio.

A renúncia é a libertação. Não querer é poder.



quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Almada Negreiros- Manifesto Anti-Dantas


Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d'Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair... Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!

(…)Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do “Século” a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta “Júlio Dantas” e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.
Mas julgais que nisto se resume literatura portuguesa? Não Mil vezes não!

Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores(…) conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Alves Redol- Constantino Guardador De Vacas E De Sonhos


Tem doze anos, mas não deitou muito corpo à idade.

Um homem cresce até ao fim da vida, senão em altura, pelo menos em obras e ambições.

Foi desgosto sofrido a fogo lento.

A teimar ninguém o dobra.

Ser ele muito senhor do seu nariz.

Se quem arrisca não petisca, não é menos verdade que cabe aos tolos dar gozos aos outros.

…já os dentes batem castanholas.

Mas já é sorte ter amigos…

Banho de água e de aventura.

Almirante de um barco de cana.

Se a inveja fosse tinha, muita gente era tinhosa.

O verdadeiro tamanho de um homem mede-se pela coragem e pelas obras.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Miguel Torga- Bichos


Os outros apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino tivesse cão quando chegasse… mas amizades cerimoniosas não se davam com o seu feitio.

…com dois olhos como dois faróis.

… a vida sabia-lhe à maior das venturas.

Enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade.

…não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem...

Os mimos da D. Saneia tinham-no desgraçado.

Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isto de gado fêmeo quer assistência...

Mas quê! O vício pode muito...

Amizade sincera não é com gatos.

A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía.

Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão…

Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a sanha dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa...

… relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes… Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...

E à procura de quê? Da paz podre dum conforto castrador... Que abjecção! Que náusea!

Era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse.

Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!... Servir-lhe apenas de estrumeira, consentir que se utilizasse dela como de uma reca, não.

… falinhas mansas, repenicadas, que a levaram à desgraça!

Calada como um testamento…

As dores pareciam cadelas a mordê-la.

A gente também vive de boas palavras.

Criou-se ao deus-dará, como tudo o que é bom.

Cada um de nós é um enigma, que a maior parte das vezes fica por decifrar.

Com os anos é que verificou como eram enganadoras as primeiras impressões…Há sessenta anos no mundo, e ceguinho como uma toupeira. E os outros na mesma conformidade. Para todos os habitantes de Vilarinho, sem excepção, as noites eram noites - escuridão apenas. E os dias pior ainda, apesar da claridade.
    Ricos e pobres nem no brilho do sol reparavam. Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa resignação de condenados.

A vida, como um fruto, estava cheia de doçura. Mas fora preciso, para o saber, que Bambo lhe aparecesse...

Mas, fora esse, ninguém na aldeia sabia abrir a boca. Por isso, mais valia seguir o exemplo do amigo, que era de mudez completa. E a verdade é que nunca encontrara tanto sentido e beleza às coisas que o rodeavam, como naquelas horas silenciosas. Nelas, até as próprias sombras faziam confidências ao entendimento...                                              

É certo que matava vida. Mas unicamente aquela que, errada e parasitária, estava desde a nascença a soldo da morte.

Baboseiras, todos as sabiam dizer. Do esforço de descer ao coração das coisas, é que nenhum era capaz.

…a simples certeza de viver lhe enchesse a alma duma confiança cega no porvir.

Nenhuma vontade conseguia açaimar o grito irreprimível que o sufocava… Qual medo, qual pudor, qual nada!

Bicho mulher é assim. Não há que fiar.

É feio servir-se a gente dos seus dons naturais para desinquietar lares alheios…De mais a mais não tendo necessidade. Quinze mulheres no harém... Que diabo! Mas um homem não se manda fazer. Natureza desgraçada, a sua! Não se fartava! E, quando em casa já tudo se desviava do seu andar de lado, não havia outro remédio senão fazer chegar lá fora um grito de fome. De resto, também gostava de variar... Sabia-lhe pela vida uma extravagância!

Quem é que não gosta que lhe louvem as valentias?...

Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser.

Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.

O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados.

O estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno.

Como se trabalhar fosse um destino!

Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.

Não saía, nem por um decreto. E, de olho pisco, ali ficava no quente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem tinha de lho meter no bico...

A vergonha é a mãe de todos os vícios.

O destino fazemo-lo nós...

No Março, a torga floria. Mas não chegava esse alarido de cor para acordar as fragas.

Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!

Arca de Noé… Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa.

O corvo Vicente…Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar. A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados…

Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito ... de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco – a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. (...) ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.

 Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas ... se tornou evidente que o Senhor ia ceder. (...) nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.                                                                                                                   


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Vergílio Ferreira- Manhã Submersa


Lentamente, o casarão foi rodando com a curva da estrada, espiando-nos do alto da sua quietude lôbrega pelos cem olhos das janelas. Até que, chegados à larga boca do portão, nos tragou a todos imediatamente, cerrando as mandíbulas logo atrás. Enrolado na multidão silenciosa, fui subindo a larga escadaria em cujo topo um padre quieto, de mãos escondidas nas mangas do viatório, ia separando as divisões para as respectivas camaratas. Mudos e quedos, ao pé dos muros, aparecerem-me ainda, ao longo do corredor, vários padres de sentinela. E na pura ameaça do seu olhar de sombra eu sentia, mais escura, a grandeza ilimitada de um pavor abstracto


Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto- me que destino atravessou a minha vida além desse pavor, que outra voz mensageira lhe chamou ao futuro além da voz de uma noite sem fim.


Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isto a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta e que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia a voz por sobre mim e me esquecia.


Dói-me o que sofri e recordo, não o que sofri e evoco.


Porque o peso da dor nada tem a ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente.


… que a descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada.







segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Aquilino Ribeiro- O Malhadinhas


A pata do rico sobre o cachaço do pobre.

Há momentos na vida e pendências que um homem honrado não provoca nem espera, e que só se resolvem de pulso rijo e botando as unhas a uma arma…nunca saía da bainha sem causa nem entrava na bainha sem honra.

Sabes o que te vale? É ter-me já sentado à tua mesa.

Até de boca fechada mentia.

Mas saber ler não basta para ser fino, ser cavaleiro e muito menos ser feliz.

Vê se lhe espreitas a alma.

Vinho e aguardente é tudo a mesma família.

Cria o corvo, tirar-te-á o olho.

Ora, ora ronca o mar e mijo nele.

… dona de casa de primeira ordem; os seus seios, levantados como pães das boas fornadas, eram a melhor fronha para um homem encostar a cabeça.

Respondi eu a chorar, que os olhos dum homem não foram feitos só para ver.

A palavra como a lança, longe alcança.

Falas de santo, unhadas de gato.

A fruta mais saborosa tem o caroço no meio.

Não te queixes da injustiça dos homens, queixa-te do génio, que é assomadiço e falho de humanidade.

Não há grande geração sem santo nem ladrão.

Isto de fêmeas são todas as mesmas. Mãe, casai-me logo, que se me arruga o rosto.

… negá-lo seria negar a luz do sol.

A viúva rica com um olho chora, com o outro repica.

Tanto ladras que trincas a língua.

A noite de negra, tão bem esconde o justo como o pecador.

… focinho por terra, como pessoa não-te-rales que vão ao teu destino.

Milagre! Milagre! Aos parvos aparecem os santos.

Nem para calço de panela tinha préstimo.

O bicho homem, quem quer que seja e o que quer que faça, tem sempre consigo a mesma peçonha. E esta peçonha sabes o que é? É o nunca estar contente com a sua sorte. Quanto mais tem mais apetece, deseja e torna a desejar para logo ou amanhã aborrecer.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Almeida Garrett- Viagens Na Minha Terra


Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
   O homem – não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando, em seus moldes de ferro, aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade – o homem, assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.


A História é uma tola. Eu não posso abrir um livro de História, que não me ria. Sobretudo as ponderações e adivinhações dos historiadores acho-as de um cómico irresistível. O que sabem eles das causas, dos motivos, do valor e importância de quase todos os factos que recontam?


Quantas almas é preciso dar ao diabo e quantos corpos se têm de entregar no cemitério para fazer um rico neste mundo?


A modéstia quando é excessiva e se aproxima do acanhamento, pode ser num homem quase defeito inteiro. Na mulher é sempre virtude, realce de beleza às formos as disfarce de fealdade às que o não são.


Poeta em anos de prosa.


Idade madura, idade da experiência, idade prosaica em que as mais belas criações do espírito parecem macaquices diante das realidades do mundo.


O coração humano é como o estômago humano, não pode estar vazio.


É um nobre e grande coração, mas… não te deixes dominar por ele, se o queres segurar.

És mulher, e as mulheres não entendem os homens. Sempre o entrevi; hoje sei-o perfeitamente. A mulher não pode nem deve compreender o homem. Triste da que chega a sabê-lo!


Admirável condição da natureza humana que tudo nos parece melhor e menos feio, quando visto ao longe.


O povo está são; os corruptos somos nós, os que cuidamos saber e ignoramos tudo.


Há três espécies de mulher neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja e a mulher que se ama… A beleza, o espírito, a graça, os dotes de alma e do corpo geram a admiração; certas formas, certo ar voluptuoso criam o desejo. O que produz o amor não se sabe; é tudo isto; às vezes é mais do que isto; não é nada disto.
   Não sei o que é; mas sei que se pode admirar uma mulher, sem a desejar; que se pode desejar, sem a amar. O amor não está definido, nem o pode ser nunca. O amor verdadeiro; que as outras coisas não são isso.



São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada: veem, sentem, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala. Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não é poeta, entra sempre o seu tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino de seu ouro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia; e não há dor física, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica.


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Eça de Queiroz- O Primo Basílio


Namorou-a solteira, agora quere-a casada!
   Mas é sempre assim… quer o prazer sem responsabilidade!
   É de graça! É de graça!
   Há um marido que a veste, que a calça, que a alimenta, que a engoma, que vela se está doente, que a atura se ela está nervosa,
que tem todos os encargos, todos os tédios… por consequência o outro não tem mais que chegar, bater ao ferrolho, encontra-a asseada, fresca, apetitosa à custa do marido, e…


Agora, trocado o último beijo, acendia o charuto, como num restaurante ao fim do jantar.

domingo, 7 de outubro de 2012

Camilo Castelo Branco- Amor De Perdição


O amor aos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas.


Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão-de desmentir umas às outras.


Os nossos corações estão unidos; agora é preciso que as nossas casas se unam.


O amor é a primeira condição da felicidade do homem.


A rosa da profunda amizade não se colhe sem ferir a mão em muitos espinhos da contradição. No abnegar é que está o vencer de muitas resistências invencíveis ao império da vontade.


O amor é uma luz que não deixa escurecer a vida.


Paixões… que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há-de um homem perder. Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona da água.


Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia…


O amor só vive pelo sofrimento e cessa com a felicidade; porque o amor feliz é a perfeição dos mais belos sonhos, e tudo que é perfeito, ou aperfeiçoado, toca o seu fim.


Só o receio de perder-te me mata!

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

José Cardoso Pires- A República dos Corvos


Está com uma diarreia de língua que não há milagre que a estanque.


Cada homem transporta dentro de si o seu bestiário privado.


O Afecto e o Amor ocupam muitas vezes lugares que o dever não consente.

                                                                                                     
Deus criou o cão que nunca mais o largou e para se ver livre dele criou então o Homem.


As pessoas ainda estão longe de avaliar a importância das palavras na construção da ordem e da consciência.


Enterro de cão, gato não chora.


O amor dos pais só dá meças ao perdão.


Padres, cisco dos céus. Caiam em chuva peneirada sobre os campos à desgraça e em menos de um ámen já eram um extenso prado de hastes negras com as coroas-corolas das cabeleiras a dar a dar.


Fome para eles era o pão de cada dia


Faziam como o mexilhão: Pé na rocha e força contra a maré.


…palavreado para tapar o olho cego. (Ele próprio limpava o rabo aos jornais).


Perder a tempo, é meia vitória ganha.


Burro que aprende línguas, esquece o coice e perde o dono.


O surdo que muito canta acredita que tem boa voz.


Sempre que a mentira bate à porta de um infeliz traz uma enfiada de desgraças na cauda.


Atirava-se ao discurso com aberturas de largos cumprimentos, mas ao entrar no propriamente da matéria punha-se com sustenidos, muitos sins e mais que também e retirava-se às arrecuas, todo vénias.


Fingir de cego é virtude de quem vê de mais.


A presa quando é de respeito mete muitas voltas pelo meio.


… criou então os espelhos da formusura, maldita hora!
     Colocou-os, não em barracões de gargalhadas, como os outros…           
     Foi mal compreendido, para seu grande espanto. Cuspido a seguir; apedrejado depois; e só mais tarde percebeu que aqueles espelhos eram um insulto à natureza defeituosa dos visitantes.
      Éramos felizes, Satanás, gritou-lhe um dos clientes mais fiéis dos espelhos grotescos. Éramos felizes e escorreitos quando nos punhas aquelas carantonhas à nossa frente e agora atiras- nos com a imagem do impossível. Some-te, Satanás dos olhos de anjo!


Não há nada como o tempo para mudar a cor à vida.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

António Lobo Antunes- Auto dos Danados





Vende borrões nas galerias de arte de Lisboa, e cujo nome descubro de quando em quando nos jornais, com elogios hiperbólicos assinados por compinchas do Bairro Alto que o elevam aos píncaros do génio, como se fosse capaz de melhor do que três ou quatro riscos ao acaso, perante os quais entendidos de barba se extasiam.


Os moucos nunca compreendem o que a gente lhes diz, ou se o compreendem, compreendem mal e ofendem-se.


Lisboa aparenta-se a um mendigo ao sol, com os piolhos dos pardais a escarafuncharem livremente as farripas das árvores.


… e te deposito na vagina dois centímetros cúbicos de paixão


O Paraíso é uma espécie de clínica para anjos deprimidos, 
e os bigodes dos apóstolos o mata-borrões das suas lágrimas.


A procissão coxeava nas varizes das ruas tortas da vila, atacada por pandeiretas, clarinetes e trombones, numa pompa miserável e trágica.


… cheguei ao Porto de comboio, uma cidade maior do que Évora mas sem sol, castanha e preta como um dente estragado, onde chovia interminavelmente a água melancólica de um Outono antigo, um desses Novembros em segunda mão que se compram barato no ferro-velho.


Todos se consideravam com direito a nada num país onde nada é o que geralmente se possui... 


Paciência é o género de palavra que irrita até às tripas qualquer infeliz com vinte e três anos de casado.


Que falta o ódio faz, para nos sentirmos saudáveis. Acharmo-nos em harmonia com o mundo é uma infecção mortal.