quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Gabriel Garcia Márquez- Memórias Das Minhas Putas Tristes




O sexo é o consolo de uma pessoa quando lhe falta o amor.


A moral também é uma questão de tempo.


Como os factos reais se esquecem, também alguns que nunca existiram podem estar nas recordações como se tivessem existido.


Sempre tinha julgado que morrer de amor não passava de uma liberdade poética. Naquela tarde, de regresso a casa outra vez sem o gato e sem ela, verifiquei que não só era possível morrer, mas que eu próprio, velho e sem ninguém, estava a morrer de amor. Mas também me apercebi de que era válida a verdade contrária: não teria trocado por nada do mundo as delícias do meu pesar.


O sangue circulava pelas suas veias com a fluidez de uma canção que se ramificava até aos pontos recônditos do seu corpo e voltava ao coração purificado pelo amor.


Parece-me contranatura que um homem se entenda melhor com o seu cão do que com a sua mulher, que o ensine a comer e a descomer às suas horas, a responder a perguntas e a partilhar as suas mágoas


Tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não são os amores felizes, mas os contrariados.


A fama é uma senhora muito gorda que não dorme connosco, mas quando acordamos está sempre a olhar para nós em frente da cama.


A idade não é a que temos mas a que sentimos.


Os ciúmes sabem mais do que a verdade.


Não há pior desgraça do que morrer só.


É impossível não acabar sendo como os outros julgam que somos- Júlio Cezar.

domingo, 25 de novembro de 2012

Machado de Assis- As Memórias Póstumas De Brás Cubas



Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adoptar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.


O amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, consequentemente, a sua mais genuína feição.


Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho


O menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.


Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.


Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem.


Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, húmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em arredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão


Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo.


Não se ama duas vezes a mesma mulher.


A adulação das mulheres não é a mesma coisa que a dos homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à acção lisonjeira da mulher uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a idade do adulado; a mulher há-de ter sempre para ele uns ares de mãe ou de irmã- ou ainda de enfermeira…


Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar.


Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos réis; nada menos.


 Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher entrega-se por amor, ou seja o amor paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapónias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem,-falo do homem de uma sociedade culta e elegante,-o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infracção e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto,- essa boa fatuidade, que é a transpiração luminosa do mérito.
    Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo "Não há cachorrinho tão adestrado, que ao fim lhe não ouçamos o latir”.

Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.


Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos.


Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...


Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do género humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude.


Suporta-se com paciência a cólica do próximo. Matamos o tempo; o tempo nos enterra. Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.


Trata de saborear a vida; e fica sabendo, que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la.

— Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incómodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos olhos de um filósofo.
— Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me explicasses este ponto.
— Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas acções; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas, chamou a atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação. Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simples irradiação de Humanitas, o benefício e seus efeitos são fenómenos perfeitamente admiráveis.


Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda.


E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anónima os alcança a eles mesmos.


Cada homem é uma errata pensante, cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até à edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.


As botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque fazendo doer os pés, desgraçado, desmortifica-os depois e aí tens a felicidade barata… Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenómenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas.


O essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Jorge Amado- Capitães da Areia



Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.


Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom (mas não tão justo também...) pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida.


A boa intenção não desculpa os maus actos.


A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo.


A greve é a festa dos pobres.


Um dia a gente muda o destino dos pobres…



segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ferreira de Castro- A Selva


Ferreira de Castro- A Selva

(…) a amazónia um ímã na terra brasileira e para ela convergiam copiosas ambições dos quatro  pontos cardeais, porque a riqueza se apresentava de fácil posse, desde que a audácia se antepusesse aos escrúpulos.

O caboclo não conhecia as ambições que agitavam os outros homens (…) . A mata era sua. A terra enorme pertencia-lhe, senão de direito, por moral, por ancestralidade, da foz dos grandes rios às cabeceiras longínquas. Mas ele não a cultivava e quase desconhecia o sentimento da posse. Generoso na sua pobreza, magnífico na humildade, entregava esse solo fecundo, pletórico de riquezas, à voracidade dos estranhos - e deixava-se ficar pachorrento e sempre paupérrimo, a ver decorrer, indiferentemente, o friso dos séculos.


Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida colectiva a beleza e a elevação que ela podia ter?

Só as selecções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade inquebrantável - um rei e os seus ministros a mandarem e todos os demais a obedecer. António Peneda, esgarrou!

(…) enervado, com lágrimas nos olhos a gritarem a sua impotência.

Árvore que pretendera desgrenhar a cabeceira mais acima da das irmãs, fora seguida por tão copiosa multidão de lianas e parasitas, que dentro em pouco o seu desejo se tornara vaidade inútil.

(…) estendiam, em homenagem à fome, os míseros pratos.

(…) a solidariedade egoísta e secreta dos viajantes de comboio, ao verem irromper no seu compartimento novos passageiros.

(…) tanto como aquele que cerceava a liberdade, indignava-o a alma submissa dos que acatavam, silenciosa e passivamente, a ordem iníqua.

Dum lado e outro, a selva. Até esse instante Alberto vira apenas as suas linhas marginais; surgia, agora, o coração.
    Surgia com um aglomerado exuberante, arbitrário e louco, de troncos e hastes, ramaria pegada e multiforme, por onde serpeava, em curvas imprevistas, todo um mundo de lianas e parasitas verdes, que faziam de alguns trechos uma rede intransponível. Não havia caule que subisse limpo de tentáculos a expor a crista ao sol; a luz descia muito dificilmente e vinha, esfarrapando-se entre folhas, galhos e palmas, morrer na densa multidão de arbustos, cujo verde intenso e fresco nunca esmorecia com os ardores do Estio. Primeiro a folhagem seca dos gigantes, que cobria o chão, putrefazendo-se em irmandade com troncos mortos e esfarelados, dos quais já brotavam folhitas como orelhas de coelho. Alastravam, depois, as largas palmas de tajás e de outra plantaria, de tudo quanto vinha nascendo e ocultava a terra onde as árvores sepultavam as raízes. Crescia a mata até à altura de dois homens, posto um sobre o outro, e só então os olhos podiam encontrar algum espaço em branco, riscado, ainda assim, pelos coleios dos cipós que iam de tronco a tronco, dando ponte a capijubas e demais macacaria pequena, que não quisesse saltar. De lá para cima abriam-se as umbelas seculares e constituíam série interminável os seus portentosos cabos. E era aí que a luz dava um ar da sua graça, branqueando e tornando luzidio o pescoço de algumas árvores mais altas e restituindo, pela transparência, às asas de milhares de borboletas, as suas verdadeiras cores de arco-íris fantástico.
    De longe a longe, uma palmeira muito esguia e clara subia para olhar a selva por cima do ondeado em que terminava todo o arvoredo …



E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam no murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em extâse.

Somente a colectividade imperava ali, o indivíduo vegetal despersonalizava-se e era amesquinhado pelos vizinhos.

Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada. Estava de sentinela, silencioso, encapotado, a vedar-lhe todos os passos, a fechar-lhe todos os caminhos, a subjugá-lo no cativeiro. Era a grande muralha verde e era a guarda avançada dos arbustos que vinham crescer em redor da cacimba e, degolados pelo terçado de Firmino, brotavam de novo, numa teima absurda e alucinante. A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quantos anos - mas um dia! ... A ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente. Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencido com a sua actividade, o seu sacrifício e a sua ambição.

A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo (…) dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
     Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.

A embriaguez periódica era a única evasão do espírito, o único facho na longa noite da masmorra verde.
O rio começara a encher. Era um dilúvio anual que vinha do peru, da Bolívia, dos contrafortes dos andes, veios que borbulhavam, blocos de gelo que se derretiam, escoando-se da terra alta, regougando nas cachoeiras e destroçando, de passagem, tudo quanto se lhes opunha. Dir-se-ia que o pacífico galgara a cordilheira e viera esparramar-se, em fúria ciclópica, do lado de cá. Minava, abria novos caminhos, contorcia-se nas enseadas, engrossava com as chuvas e ia sempre, sem descanso, a caminho dos pontos baixos. Caído nas esplanadas, perdia em violência o que ganhava em imponência. Já não era enxurrada, singra aqui, torce ali, correndo pelos declives e cantando nos despenhadeiros. Era um volume pesado, barro líquido que marchava em grandes amplitudes, levando na face lisa, que já não tinha murmúrios nem rugidos de cataratas, todos os destroços que fizera. Parecia, assim, ter saído dum mundo reduzido a escombros. Os cursos subiam logo, tragando praias estivais, salvando altos barrancos e fazendo das ilhas verdes náufragos tristes e amarrados.
    Subiam mais, subiam sempre, engolindo raizedos nus, galhuças ribeirinhas e estendendo-se por baixo das barracas dos indígenas. A terra encharcava, então. O manto aluvial, descendente do bíblico, invadia lentamente, soturnamente, a selva arrepiada. Era pela boca dos igarapés, pelas gretas das margens, sobe, sobe, avança, transborda, mil línguas que se bipartiam aqui para se unirem de novo além, numa surda persistência de extermínio. Hoje, um palmo, um metro, amanhã, um quilómetro depois e, por fim, léguas sem conta - toda a gleba traspassadinha, como se a selva não fosse mais do que floresta submarina, trazida por artes mágicas à superfície de nunca visto oceano.
   A água morta dos igapós, presa na brenha durante o verão, ressuscitava, movimentava-se novamente, perdendo a sua cor de limo negro ao contacto com a outra, que vinha ligar-se a ela e expandir-se por toda a parte.               
   Os lagos deixavam de possuir contornos, não mais ourelas nem grande monóculo reluzente, por onde a terra via o céu. Era tudo água suja, mar tranquilo, calvo ao centro e semi-cobrindo, por extensões imensas, enormes árvores que adquiriam duplicidade de anfíbio.
    E até os tremedais, que tinham secado no estio e haviam sido apenas podridão, se transformavam agora em campos de excursões para os peixes que exigiam variedade cenográfica.(…) Vivia-se em cima de água, que se via pelas frinchas do soalho, fincado sobre espeques, e os caboclos que no verão amarravam a canoa a quinhentos metros de distância, lá ao fundo da ribanceira, tinham-na agora junto à porta. E chovia, chovia.

Não se adaptava. Sentia-se sempre provisório, desejoso de partir e desesperava-se ao verificar que ainda há pouco chegara (...) Era outro o meio, outra a terra e outros os seres (...) Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica!

As imensidades nevadas e as areias dos desertos haviam já florido em muitos jardins literários. Desconhecia-se, porém, o drama do ceará.

Resistia sem queixa, como se o amor-próprio houvesse de tirar, da rude lição, uma íntima desforra.

(…) gente humilde, facilmente resignável (…)

Que animal feroz crescia, assim, dentro do seu próprio cérebro, para lhe alucinar a razão?

A vida dava, às vezes, ainda mais nojo do que a ideia de apodrecermos depois de mortos.

Não havia certamente limite algum para as baixezas a que um ser humano podia descer, se o escravizavam e privavam de tudo quanto era essencial à vida.

Era certo que os homens são bons ou maus conforme a posição em que se encontram perante nós e nós perante eles; e falso o indivíduo-bloco, o indivíduo sem nenhuma contradição, sempre, sempre igual no seu procedimento.

(…)  é um desejo que tenho de justiça para com a vida, a humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. Há-de lá chegar, decerto, talvez pela evolução, não sei. Mas evolução é coisa tão lenta e a vida de cada um tão pequena. Às vezes, penso que a sede de justiça que há acabará por marchar à frente...

(…) Podia-se já quebrar, sem perigo, o escudo do respeito que as situações privilegiadas impõem.

Como podia ser, como podia ser que as vítimas saboreassem também o papel de algoz? De que sórdida matéria era feita a alma de alguns homens, que gozavam bem da alheia, mesmo quando era igual à deles?


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

José Saramago- Levantado do Chão


José Saramago, especial, 90 anos

O mundo nunca está contente, se o estará alguma vez, tão certa tem a morte.

Pago um copo a todos, é uma boa e sabida maneira de chegar aos bolsos do coração.

Terra maldita, só por grande tristeza o estar dizendo, que de razões particulares não encontraria uma, ou todas são, e então nenhuma terra escapará à sentença, todas malditas, condenadas e condenadoras, dor de estar nascido.

Cozem-se ervas, vive-se disso, e os olhos ardem, o estômago faz-se tambor, e vêm as longas, dolorosas diarreias, o abandono do corpo que se desfaz de si próprio, fétido, canga insuportável. Apetece morrer, e há quem morra.

É a guerra aquele monstro que primeiro que devore os homens lhes despeja os bolos, um por um, moeda atrás de moeda, para que nada se perca e tudo se transforme (…). E quando está saciada de manjares, quando já regurgita de farta, continua no jeito repetido, de dedos hábeis, tirando sempre do mesmo lado, metendo sempre no mesmo bolso. É um hábito que, enfim, lhe vem da paz.

Isto de relações entre patrão e empregado é negócio de muita subtileza (…). Mete força bruta, ignorância, presunção e hipocrisia, gosto de sofrer, inveja muita, habilidade e arte da intriga, é uma perfeita diplomática para quem quiser aprender.

O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães. Convém que seja cão para conhecer as manhas e as defesas dos cães (…). Mas é um criado.

O povo fez-se para viver sujo e esfomeado.

É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio, nem aos seus próximos.
    E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos de arroteia. Cada uma delas é medalha para vanglórias de taberna, entre o casco e o copo, já apanhei tantas ou tantas pontadas a arrotear para Berto e Humberto. Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas.

Ah, povo conservado na banha ou no mel da ignorância, que nunca te faltaram ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta se for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão, ai de ti se ganhas fama de malandro, nunca mais tens quem te queira. Podes ir pôr-te às portas das tabernas, com os teus companheiros de desfortuna, eles próprios te hão-de desprezar, e o feitor, ou o patrão, se lhe deu para isso, olhará para ti com nojo e tu só ficarás sem trabalho, para aprenderes. Que os outros decoraram a lição, vão matar-se todos os dias no latifúndio, e quando tu chegares a casa, se casa isso é, com que cara vais dizer que não arranjaste trabalho, que os outros sim, mas tu não. Emenda-te, se ainda vais a tempo, jura que já tiveste vinte pontadas, crucifica-te, estende o braço para a sangria, abre as veias e diz, Este é o meu sangue, bebei, esta é a minha carne, comei, esta é a minha vida, tomai-a, com a bênção da igreja, a continência à bandeira, o desfile das tropas, a entrega das credenciais, o diploma da universidade, façam-se em mim as vossas vontades, assim na terra como nos céus.

As pernas tremem-te, estás aguado como mula que muito carregou, e custa-te a respirar, a pontada, meu Deus, a pontada, és um ignorante, o que tu tens é uma distensão, uma ruptura muscular, não sabes as palavras, pobre besta.

As vergonhas da ignorância são as que mais custam confessar.

Cresce a família, mesmo morrendo muitos infantes de suas doenças de caganeira líquida, desfazem-se em merda os pobres anjinhos, e extinguem-se como pavios, braços e pernas mais gravetos que outra coisa, e a barriga inchada, e estão assim, até que, chegada a hora, abrem pela última vez os olhos só para verem ainda a luz do dia, quando não acontece morrerem às escuras, no silêncio do casebre, e quando a mãe acorda dá com o filho morto e lá começam os gritos, sempre os mesmos, que estas mães a quem morrem os filhos não são capazes de inventar nada, estupores.

Cada pingo de suor é uma gota de sangue perdida, e os desgraçados todo o santo dia penando e às vezes de noite, contam-se as horas de trabalho pelos dedos de três mãos, quando não se tem de ir à quarta mão da besta enumerar o que falta, não se lhes, enxuga a roupa no corpo durante toda a quinzena. Para descansar, se tal verbo tem cabimento, deitam-se numa cama de carqueja com palha por cima, e pela noite fora gemem, sujos, pisados.

Há quem espreite pelos postigos para ver quem é a da vergonha, são crueldades de pobre.

Outros, porém, já se levantaram, não no sentido próprio de quem suspirando se arranca ao duvidoso conforto da enxerga, se a há, mas naquele outro e singular sentido que é acordar em pleno meio dia e descobrir que um minuto antes ainda era noite, que o tempo verdadeiro dos homens e o que neles é mudança não se rege por vir o sol ou ir a lua.

São bichos estranhos, os homens, e mais estranhos talvez os rapazes, que são uma outra espécie.

Ponha o povo o sangue e os cruzados, que sua majestade contados cruzados dará dos que o povo antes lhe deu por taxação e fiscal de imposto.

Na guerra das laranjas perdemos Olivença e não tornamos a achá-la, e assim, sem disparar um tiro, uma vergonha, entra Manuel Godoy por aí dentro, sem resistência, e de escárnio nosso e galantaria sua manda um ramo de laranjeiras à amante rainha Maria Luísa, só faltou servirmos de colchão aos dois.

Quem mais ordena não é quem mais pode, quem mais pode não é quem mais parece.

É a polícia política, não imaginas, um tipo vai para lá, e se há um gajo qualquer de quem a gente não gosta, prende-o, leva-o para o governo civil, e se entenderes espetas-lhe um tiro na cabeça, dizes que ele queria resistir, e pronto.

Testículos em linguagem de manual de fisiologia, colhões neste grosseiro falar que mais facilmente se aprende, frágeis bolas balões cheios de imponderável éter que em transe justamente nos elevam, de homens falo, são eles que nos levantam em viagem entre o céu e a terra.

Cego com os olhos abertos, que não há cego pior.

A natureza é pródiga, teta abundante que em cada valado se derrama.

A magnanimidade nunca tem pressa, era o que faltava, a pressa é que é plebeia e sôfrega.

Deus do céu, como podes tu não ver estas coisas, estes homens e mulheres que tendo inventado um deus se esqueceram de lhe dar olhos, ou o fizeram de propósito, porque nenhum deus é digno do seu criador, e portanto não o deverá ver.

Qualquer de nós conhece bastante as fraquezas humanas, e portanto as nossas próprias, para perdoar as alheias.

É bem verdade que quem sabe, não sabe tudo.

(…) era uma fúria de pardalito, um arrepio de galinha, uma investida de borrego, nada que tivesse importância.

(…) ao ver como dinheiro pobre pode ser amor grande.

São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, e se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito.

O diabo não existe, não faz contratos, isso de jurar e prometer é falar vão, o que o trabalho não consegue, nada consegue.

Que mundo este haver quem de descansar faça ofício e quem trabalho não tenha, mesmo pedindo.

Mesmo os certos e convencidos têm  seus momentos de dúvida, suas agonias e desânimos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Pêro Vaz de Caminha- Carta a El-Rei D. Manuel




Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que - para o bem contar e falar - o saiba pior que todos fazer!

(…) houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar.

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador (…) Os cabelos deles são corredios.

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.

E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela.

(…)e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião (…) Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho

(…) se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.
     E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende.

(…) mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra.

E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.

(…) é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva.

E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas.

Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade!

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé.

(…) trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos(…) e ali lançava  a todos - um a um - ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior - com respeito ao pudor.

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Padre António Vieira- Sermão de Santo António aos Peixes


VÓS, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal. VÓS, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou por- que a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal.

Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça, que o pregador que ensina e faz o que deve; assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes (...) Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.

(…)já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes.

Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente.

Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo, para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele.

E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender.

(…) Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.

Oh, grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo, se pudessem, porque lhe repreendia seus vícios, porque lhe não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo a sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio, e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.

Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.

Os peixes (…) lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele (…) Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre!

Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhe aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhe ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhe bufonerias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhe roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem fermoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram nos bosques, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água.

Perguntado um grande filósofo, qual era a melhor terra do mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe.

(…)que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens.

O verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit (Na verdade a língua é pequena, mas tudo vence com a força).

O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão; mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio?

(…) mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem.

Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto, e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!

Na terra pescam as varas (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?!

Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar (o quatro olhos), nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos?!

(…) se tenho fé e uso de razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno.

Voltai-me, Senhor, os olhos para que não vejam a vaidade.

Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste mundo tudo é vaidade.

A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.

Olhai como estranha isto Santo Agostinho: «Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros».

Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos, e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós.

São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores que comem os pequenos.

…a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos.

… os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos inteiros.

…. que esses mesmos maiores, que cá comiam os pequenos, quando lá chegam acham outros maiores que os comam também a eles.

Santo Ambrósio disse: Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele.

Disse também Santo Agostinho: O usurpador do mais fraco fez-se presa do mais forte.

Importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vamos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo.

Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros?

Se (…) em ocasiões pelo desejo natural da própria conservação e aumento fize ram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.

Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?!

Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano.

A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens.

(…) e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida (…) No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.

O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela.

Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder.

Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram.

…os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do mar (…) enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.

(…) ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles.

Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.

(…) Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia?

Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das antenas e cair morto!

Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.

O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham (…) que o dito polvo é o maior traidor do mar.

O polvo é o que abraça e mais o que prende.

Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta.

Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal!

(…) eu espero que O hei-de ver; mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de O ofender?

E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento

domingo, 11 de novembro de 2012

Alexandre Herculano- Eurico O Presbítero


A podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela devia secar. O próprio clero se corrompeu por fim (...) e a maioria do povo preferia a infâmia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e à vida fadigosa da guerra.

(…) era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las.

Uma destas revoluções morais que as grandes crises produzem no espírito humano se operou então no moço (…)

A maior das humanas desventuras, a viuvez do espírito (…) O entusiasmo e o amor tinham ressurgido naquele coração que parecera morto, mas transformados: o entusiasmo em entusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!

O povo rude (…) não podia entender esta vida de excepção, porque não percebia que a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites.

(…) esmagado o seu coração pela soberba dos homens.

O Evangelho é um protesto, ditado por Deus para os séculos, contra as vãs distinções que a força e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, de opressão e de sangue (…) a única nobreza é a dos corações e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.

(…) insolências que costumam acompanhar e encher de amargor para os miseráveis a piedade hipócrita dos felizes da terra.

(…) não perceberiam como, tranquila a consciência e repousada a vida, um coração pode devorar-se a si próprio.

Nem a todos dá o túmulo a bonança das tempestades do espírito.

(…) contemplava este horrível espectáculo de uma nação cadáver (…)

Hipócritas dos afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!

Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?

Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer.

Sabeis o que é esse despertar de poeta?
    É o ter entrado na existência com um coração que trasborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntarem-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele:
    É o ter dado às palavras — virtude, amor pátrio e glória — uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:
    É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas causas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo ténue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura.
     Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as acções dos homens. É então que para ele há unicamente uma vida real.

(…) e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos.

Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no mercado dos poderosos, como as mulheres de Babilónia vendiam a pudicícia nas praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia.

Hoje, (…) a coroa é uma conquista, a lei vontade do desonrado vencedor de pelejas domésticas, a liberdade palavra mentida.

Lá, no tumulto dos cortesãos, onde o amor é cálculo ou sentimento grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para dar a teu pai o preço do teu corpo e te comprasse como alfaia preciosa para serviço doméstico. O velho estará contente, porque trocou sua filha por ouro.                                                                                                                                                                         
      A isto chama prudência o mundo estúpido e ambicioso; a isto, que não é mais do que uma prostituição abençoada sacrilegamente perante as aras sacrossantas.

O sono ou a vigília, que me importa esta ou aquele? As horas da minha vida são quase todas dolorosas; porque a imaginação do homem não pode dormir .
      Para o povo, ignorante e impiamente crédulo, a noite é cheia de terrores; em cada folha que range na selva ele ouve um gemido de alma que vagueia na terra; em cada sombra de árvore solitária que se balouça com a aragem sente o mover de um fantasma; as exalações dos brejos são para ele luz de demónios, alumiando folgares de feiticeiras.
     Mas, quando jaz no leito do repouso, o seu dormir é tranquilo. Ao cruzar os umbrais domésticos esses terrores sumiram-se com os objectos que os geraram. A sua alma parece despir-se da fantasia grosseira, como o corpo se despe da estringe áspera que lhe resguarda os membros.

(…)as carícias feminis, facilmente compradas e profundamente mentidas, atrás das quais correra loucamente outrora, tinham-se-lhe tornado odiosas; porque o amor, com toda a sua virgindade sublime, lhe convertera em podridão asquerosa os deleites grosseiros que o mundo oferece à sensualidade do homem.

Não há palavras que possam erguer um espírito que deu em terra.

A vingança é mais segura inspiração, porque é o sonho perene do homem desperto, quando vê assim falhar a justiça do céu, se é que nele há justiça.

A traição, semelhante ao veneno recentemente bebido, que gira nas veias e ainda não aparece no aspecto, está por toda a parte.

Examina bem a consciência, e dize-me qual é para os corações puros e nobres o motivo imenso, irresistível das ambições de poder, de opulência, de renome? É um só — a mulher: é esse o termo final de todos os nossos sonhos, de todas as nossas esperanças, de todos os nossos desejos.

Para o que encontrou na terra aquela que deve amar para sempre, aquela que é a realidade do tipo ideal que desde o berço trouxe estampado na alma, a mira das mais exaltadas paixões é a auréola celestial que cinge a fronte da virgem, ídolo das suas adorações.

 Para o que anda, por assim dizer, perdido nas solidões do mundo, porque ainda não descobriu a estrela polar da sua existência, o astro que há-de iluminar-lhe a noite do coração, como o Sol com os seus primeiros raios ilumina as trevas de um templo, para esse a mulher é uma ideia vaga e confusa, mas formosa e que- rida. Não a conhece, não sabe onde esteja a imagem visível da filha da sua imaginação, e, todavia, é para lhe pôr aos pés glória, pode- rio, riqueza, que ele cobiça tudo isso. Tirai do mundo a mulher, e a ambição desaparecerá de todas as almas generosas.

Realidade ou desejo incerto, o amor é o elemento primitivo da actividade interior; é a causa, o fim e o resumo de todos os afectos humanos.

Os montanheses do Hermínio na Lusitânia, aborígenes, talvez, daquele país, os quais, na época das invasões germânicas, bem como já na da conquista romana, a custo haviam submetido o colo ao jugo de estranhos (…) Requeimados pelo sol ardente do Estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens rudes combatiam meios nus e desprezavam todas as precauções da guerra. O seu grito de acometer era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque, vencedores, não havia a esperar deles misericórdia.

O Sol passava envolto na sua glória, indiferente às angústias daqueles que, em seu ridículo orgulho, se chamavam monarcas e conquistadores do mundo; passava, sem lhe importar se os vermes vestidos de ferro chamados guerreiros se despedaçavam uns aos outros, com o delírio insensato das víboras no momento dos seus amorosos ardores.

E tu, renegado, sai daqui! Possa eu nunca mais ver-te o rosto e esquecer-me na hora de morrer de que nessas veias gira o sangue de nossos nobres e generosos avós.

O cutelo ou a prostituição é o que os árabes oferecem à inocência. Eu escolho o cutelo: a morte vale mais que a desonra.

(…) um homem cujo coração é há longo tempo morto, porque as paixões o queimaram; mas cuja inteligência por isso mesmo é mais fria.

(…) todos os vestígios da cólera tinham desaparecido: só nele se lia a ansiedade de um amor imenso, que precisa, mais que do gozo brutal.

Abomino-te... Não!... Enganei-me. Desprezo-te.

Porque a abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto, arrojará ele para longe o mel do seu favo e esmagará o insecto?

O que lhe tumultuava no coração não tem nome na linguagem dos homens: era mais que a loucura.

Quero viver: o viver é delicioso.

Nas raias da vida, aquele beijo, primeiro e último, era purificado pelo hálito da morte que se aproximava: era inocente e santo, como o de dois querubins ao dizer-lhe o Criador: «Existi!»