Sentai-vos um pouco, para que uma vez mais vos
assediemos o ouvido, que tão fortificado está contra esta nossa história…
É como cisco ferindo o olhar da mente.
É como o ar, invulnerável, e estes golpes vãos, mero
mimo de violência.
(…) a manhã no seu hábito de ouro velho desce pela
geada daquele monte a oriente.
É a lei da vida que tudo pereça e da natureza passe
à eternidade.
Mas em mim há qualquer coisa dentro, muito para além
do parecer; o resto é simulacro.
Tal dor, por inumana, ofende até a Deus e brada aos
céus.
Oh! Pudesse eu livrar-me desta deusa carne em que
nasci! Pudesse ela fundir-se, solver-se em um orvalho… Não fora o mandamento
Eterno contra os que a si próprios assassinam!...
Deus, oh Deus, como tudo o que serve neste mundo me
parece inútil, cediço e sem razão! Fora, fora com tudo isto, jardim de joio
inculto sempre a crescer com novas e daninhas ervas a afoga-lo!
Como ela o abraçava como se, mal saciada, novos
desejos e apetites crescessem (…) Como seguiu o cadáver do meu pobre pai, como Níobe
em choros (…) Um mês apenas e já o sal das lágrimas mais vis deixou de lhe
picar os felinos olhos! Casou! Oh que mais traiçoeira pressa tão lesta a correr
com tanta ligeireza para os lençóis do incesto!
Fragilidade, teu nome é mulher!
Os manjares preparados para a refeição fúnebre foram
servidos frios nas mesas do casamento.
Era um homem em tudo e por tudo.
Hei-de falar-lhe nem que o inferno se abra e me peça
em troca o meu repouso eterno!
A natureza, ao fazer-nos crescer, não só nos favorece
em forças e tamanho, mas, à medida que o tempo vai passando, dilata com ele o
espaço interno da inteligência e da alma.
Talvez te ame agora, e nem mancha nem cálculo,
poluam agora a virtude da sua vontade; mas deverás temer (…) Se diz amar-te,
deverá o teu bom-senso só nisso crer. (…) Pondera o que a honra há-de sofrer se
com crédulo ouvido lhe fores na cantiga, doares o coração, ou o casto tesouro
abrires a uma importunidade, que não saibas rejeitar.(…) E mantêm-te na
retaguarda do teu afecto, abrigada dos projécteis e afrontas do desejo.
A donzela mais modesta mais prudente é pródiga de
mais se ao aço do luar a beleza desvelar. A virtude mesma não escapa aos golpes
da calúnia.
O pulgão rói os botões primaveris, antes mesmo de
desabrocharem e nos alvores e orvalhos juvenis mais ofendem os ventos daninhos.
Sem lume ao lado contra si se inflama quem é novo.
(A mocidade é inimiga de si própria.)
Toma
a minha bênção e grava na memória estes preceitos: Conhece-te a ti próprio. Não
dês ouvidos a rumores nem ajas ou fales sem pensar primeiro; Sê acessível,
simples mas sem vulgaridade; Aos amigos, após experimentados, aceita-os,
cinge-os à alma com aduelas de aço, mas não dês primeiro a mão em demasia a
qualquer estoirado camarada. Cuida antes de entrares numa briga, mas, entrado,
faz com que o teu opositor se cuide de ti. Empresta o ouvido a todos, mas a
poucos dá a voz; Aceita o aviso de cada um, mas guarda para ti julgar. Luxuoso
seja o trajo quando a bolsa to permita, mas, nada de fantasia, antes rico e não
vistoso, por muitas vezes o hábito anuncia o homem; Não sejas prestamista nem
peças emprestado; Quem empresta perde por si e pelo amigo e o que pede
emprestado em economia é fraco. Acima de tudo sê sincero para contigo mesmo,
donde virá, como a noite segue o dia, que para ninguém falso serás.
Ficou fechado na memória. E tu próprio levas contigo
a chave.
Sei bem que ao aquecer o sangue ardente a alma nos
prodigaliza vozes e votos para a boca. Tais fogachos, dão mais luz que calor e
vão a cinzas mais depressa que tempo leva a prometer. Não tomes luz por
fogueira.
Uma gotícula de mal muitas vezes dissolve toda a
nobre substância para escândalo próprio.
E nós bobos d a natureza, nos horrorizamos de pensar
que para além da nossa alma algo mais consegue ainda perturbar-nos?
Algo está podre no reino da Dinamarca!...
Com o encanto da fala mansa, com traiçoeiras ofertas
(…)Ó dons da malícia que tal poder de seduzir possuem!
Mas, tal como a virtude não se deixa mover, acoste-a
mesmo a luxúria num vulto divino, também o cio, preso a um anjo brilhante,
depois de saciar-se nessa cama celeste, há-de refocilar no lixo.
Mas, de qualquer modo que realizares tua vingança,
não contamines teu espírito, nem deixes que tua alma trame qualquer dano contra
tua mãe; deixa que o Céu e os espinhos que no peito alberga a firam e
destrocem.
É conveniente anotar aqui que pode sorrir-se, e
sorrir de novo, e ser-se infame.
Que no isco do falso morda a carpa da verdade.
Maldita desconfiança! Que é tão natural em idade
avançada lançarmos suspeitas muito ao de largo, tal como é corrente aos de
menor idade faltar discrição.
A brevidade é a essência do espírito, e a tardança
seus membros e confeitos exteriores (…)
Mais substância e menos arte!
Ao celestial ídolo de minha alma, Ofélia, a bela sem
par (…) sou inábil no verso. Não tenho arte de metrificar suspiros. Mas que
acima de tudo te amo, oh, a ti, a melhor de todos, peço-te que acredites.
Adeus. Para sempre teu, senhora minha tão querida, enquanto esta máquina for
sua, Hamlet.
(…) é príncipe fora do teu céu natal (que da tua
estrela exorbita)
Sempre acharei a vontade onde quer que ela se
esconda, mesmo que ocultada se feche no centro da terra.
Como vai o mundo ser-se honesto é ser homem só
pescado entre dez mil.
Palavras, palavras, só palavras sempre.
A loucura,
que alcance tem, tantas vezes acerta onde a sanidade e o juízo não saberiam tão
felizmente atingir!
Felizes em não sermos demasiado felizes.
A Fortuna é leviana.
Nada há de bom ou de mau que o não seja por só pensarmos
que é. ( Nada é bom ou mau senão no pensamento de quem julga)
Podia ver-me confinado ao interior de uma noz e
considerar-me rei dos espaços infinitos.
A verdadeira substância dos ambiciosos é tão-só a
sombra de um sonho.
Em si um sonho não passa de uma sombra.
A ambição é de uma textura tão leve e aérea que não
passa de uma sombra de uma sombra.
É o que são nossos corpos mendigos, os nossos
monarcas e nossos dilatados heróis: ilustres sombras de mendigos.
Que
obra-prima o homem! Que nobre é a sua razão! Que infinitas faculdades e que
admiráveis e expressivos seus sentimentos quer pela forma quer pela sua marcha!
Age como um anjo; entende como um deus! Maravilha do mundo! O supra-sumo do
mundo animal! E, todavia, porquê? Porquê para mim não passa de quintessência
deste pó da terra? E a mulher não é melhor também.
Afinal nada é de admirar! Pois se até meu tio é Rei
da Dinamarca e os que lhe faziam caretas de desdém quando meu pai [Rei] vivia
dão agora vinte, trinta ou cem ducados por um retrato seu em miniatura!
Duas vezes criança é o velho.
Era uma espécie de caviar para a populaça.
Melhor é terdes um mau epitáfio depois da morte que
retrato adverso enquanto vivo.
Se tratássemos cada qual como merece quem escaparia
sem açoites?
Trata-os conforme a tua honra e dignidade; e quanto
menos eles merecerem mais tu mereces por tua benevolência.
Seria preciso ser pomba sem fel para suportar tal
insulto amargo e poder continuar a engordar todos os abutres do País sem lhes
dar os restos sangrentos desse vilão infame, traidor sem remorsos,
sanguessugador, vilão sem par!
O assassínio, embora sem língua, fala.
Quantas vezes - está provado! - é de lamentar como
por uma carinha de beata, por um gesto devoto, por açúcar tomamos o Diabo!
(…) Que duras chicotadas me deu na consciência! A
embonecada face de uma prostituta sob o gesso da pintura não é mais horrorosa
do que o meu crime por mais que o doirem e disfarcem palavras e só palavras!
Ser
ou não ser, eis a questão: Se é mais nobre no espírito sofrer as fundas flechas
da fortuna ultrajante, ou brandir armas contra um mar de agravos, e, opondo-os,
fazê-los cessar.
Pois quem aceitaria a férula e açoites do tempo, o
dolo do opressor, a contumélia de insolentes, a dor de um amor repelido, a lei
tardia, a insolência das repartições e o coice destinado pelos inúteis aos
meritórios pacientes?
Para nobre espirito presentes caros são miséria
quando sem amor.
Se és séria e bela a tua honestidade não aceitaria
louvores à tua beleza.
Pode a beleza ter melhor comércio do que com a
honestidade? (…) Na verdade pode, pois mais facilmente torna o poder da beleza
a honestidade chula do que pode a honestidade fazer da beleza algo de si
parecido.
Não pode a virtude inocular-nos a casta que dela não
guarde travo.
Velhacos rematados é o que nós somos. J…
Fechem-lhe bem as portas. Basta que faça de parvo em
sua casa.
Se queres casar por força, casa com um louco porque
os sensatos sabem bem em que monstros os transformam…
Já ouvi falar que chegue das vossas pinturas. Dá-vos
Deus uma cara e vós trocai-la por outra.
Eu, que suguei o mel da música das suas promessas,
agora a ver a mais soberana e nobre razão tinindo como sinos fendidos e
desafinados, apenas sonhos que macios foram, sombras apenas.
(… ) expulsar-lhe-ão do coração o mal oculto que o
cérebro ofende e o põe assim tão fora de si.
(…) até na corrente, na tempestade e, pode-se dizer,
no próprio ciclone da paixão é possível temperança.
Tudo o que é excessivo se afasta da finalidade da
arte de representar(…) exageros ou expressão que chega tarde podem fazer rir o
ignorante mas apenas ofende o gosto do conhecedor cuja critica vale mais do que
o aplauso duma sala cheia de burros.
Não penses que é lisonja. Que fora de esperar que me
emprestasses, se só tens como renda a tua alma grande, que te veste e alimenta?
Por quê a um pobre lisonjear?
Deixa as linguinhas de açúcar lamberem absurdas
pompas e dobrarem as gordas juntas dos joelhos onde a prosperidade mana da
lisonja.
E bem-aventurados são os que a vida vai ajuizando.
Vivo de ar e empanturrado de promessas. Não se
alimentam capões assim.
Na mulher medo e amor, iguais em quantidade, podem
anular-se em grande extremidade.
O grande amor de ninharias faz terrores.
Receiozinhos crescem com os grandes amores…
Ninguém casa com outro sem o marido matar (…) Duas
vezes o mataria sem respeito se um segundo esposo me beijasse no leito!
Intenção é mera escrava da memória, nasce forte mas
viver é outra história; verde o fruto na árvore mal estremece, mas cai sem lhe
tocarmos quando amadurece.
Creio
no que dizes porque nos amamos, mas quantas vezes as juras quebramos? Intenção
é mera escrava da memória, nasce forte mas viver é outra história; verde o
fruto na árvore mal estremece, mas cai sem lhe tocarmos quando amadurece. Mais
que natural é nos esquecermos de pagar o que nós próprios devemos; bens que
pela paixão a nós próprios damos finde ela e logo os deixamos; a violência do
que nos alegra ou dói seus próprios actos com ela destrói; Onde a alegria cante
deve haver quem se lamente; dar é alegria e alegria dar ao mínimo acidente. Não
há mundo para sempre nem sorte importuna: até nossos amores mudam com a Fortuna
pois é questão que está para aclarar dar o Amor Fortuna ou esta o Amor dar. Cai
o poderoso, vão-se-lhe os amigos enriquece o pobre que não tem inimigos; Parece
que ao Amor pertence Fortuna indivisa pois tem sempre amigos quem nada precisa
e quem aflito recorre à amizade logo encontra inimigos de verdade. Mas, para
ordenadamente acabar onde comecei, - Sorte e desejos tão contrários – sempre
encontrei destroçados nossos planos sem valor: o pensar é nosso, o que sucede é
de quem for… Podes pensar não tomar novo marido, mas morre esse pensar mal eu
tenha morrido.
A Terra me mate à fome, o céu me tire a luz, dia e
noite não me alegre nem repouse, por fé e esperança tome o desespero (…) agora
e sempre até à final luta se eu enviuvando volte a ser mulher!
Trema a besta que tem mataduras que a nossa pele não
tem assaduras!
Deixai do veado ferido o alongado pranto fluir, e
que o gamo brinque impune; Que uns hão-de velar e outros dormir, e assim nos
foge o mundo.
Queres tocar
qualquer coisa nesta flauta?
Não
posso (…) Acreditai-me, príncipe, não posso (…) Não conheço uma só posição.
É tão fácil
quanto mentir. Com os quatro dedos e o polegar regulais estes orifícios;
depois, bastará soprar, para que saia música muito agradável. Vede: aqui estão
as chaves.
Mas
não está em mim tirar a menor harmonia, príncipe; não possuo essa habilidade.
Ora vede que
coisa desprezível fazeis de mim. Pretendíeis que eu fosse um instrumento em que
poderíeis tocar à vontade, por presumirdes que conhecíeis minhas chaves.
Tínheis a intenção de penetrar no coração do meu segredo, para experimentar
toda a escala dos meus sentimentos, da nota mais grave à mais aguda. No
entanto, apesar de conter este instrumento bastante música e de ser dotado de
excelente voz, não conseguis fazê-lo falar. Com a breca! Imaginais, então, que
eu sou mais fácil de tocar do que esta flauta? Dai-me o nome do instrumento que
quiserdes; conquanto voz seja fácil escalavrar-me, jamais me fareis produzir
som.
Vou já é fácil de dizer…
Que eu seja cruel, mas não polua o natural.
Dir-lhe-ei punhais, mas não usarei nenhum.
Se a própria vida singular precisa, com toda a força
e as armas do intelecto, defender-se de danos, que dizer-se da alma de que
depende sempre a vida de tanta gente? Nunca a majestade morre sozinha; qual
voragem, chupa quanto está perto; é roda gigantesca que nos raios contêm dez
mil coisinhas encaixadas, e cuja queda implica a ruína fragorosa das menores
peças que se lhe prendem. Nunca suspira um rei sem que o povo inteiro gema.
Que possui a oração senão o duplo poder se sermos
sustidos antes de nos vermos cair, ou perdoados, se caídos já?
Pelas vias inquinadas deste mundo, a mão doirada do
crime pode mover a Justiça e premiar até o criminoso. Compra-se a Lei mas não a
dos Céus. Para ela não há subterfúgios. Corre o processo em toda a verdade e
somos forçados a testemunhar as nossas faltas todas nuas como os dentes ou a
testa…
As palavras sobem, os pensamentos ficam. Palavras
sem pensamentos nunca ao céu hão-de chegar.
A RAINHA: Que fiz eu para que ouses flagelar-me?
HAMLET: Uma ação que mancha a graça e o rubor da
modéstia, que a virtude transforma em falsidade, muda as rosas da fronte
prazenteira do amor puro em chaga repugnante, e os juramentos dos cônjuges em
pragas de viciados. Uma ação que do corpo dos contratos tira a própria alma e
muda em palavrório a doce religião; a própria face do céu cora de pejo; sim, o
mundo compacto, nas feições mostra a tristeza do juízo final, diante desse ato.
HAMLET: Olhai este retrato e mais este outro, que
dois irmãos fielmente representam; vede a graça que encima esta cabeça, cachos
de Apolo, a fronte alta de Júpiter, o olhar de Marte, ao mando e à ameaça
afeito, o porte de Mercúrio, o mensageiro, quando pousa nos cumes altanados;
uma forma, em resumo, perfeitíssima, em que os deuses seus selos imprimiram
para que o mundo visse o que era um homem: esse, foi vosso esposo. Agora o
resto: eis vosso esposo, espiga definhada que o irmão sadio empesta. Tendes
olhos? Como deixaste a alta montanha para ancorardes no lamaçal? Ah! tendes
olhos? Não chameis a isso amor, que em vossa idade o sangue se arrefece, fica
humilde e obedece à razão. E que razão passa deste para este? Sois sensível,
pois vos moveis; mas tendes os sentidos paralisados. A loucura acerta; nunca os
sentidos ficam subjugados pela paixão, a ponto de falharem totalmente na
escolha. Que demónio vos logrou de uma vez na cabra-cega? O olho sem tacto, o
tacto sem visão, o ouvido só por si, o olfacto apenas, a menor parte, em suma,
de um sentido verdadeiro, jamais se estontearia desse feitio. Vergonha, por que
não coras? Se nos ossos de uma matrona, inferno, te rebelas, que a continência
fique, para os moços ardentes, como a cera, que amolece no próprio fogo; nem de
mancha fales, quando no ataque se atirar o instinto, uma vez que é tão quente a
própria geada e a razão é alcoveta da vontade.
A RAINHA: Não fales mais, Hamlet; a olhar me forças
no mais íntimo da alma, onde acho manchas profundas e tão negras, que não
perdem jamais a cor.
HAMLET: Viver num leito infecto que tresanda a suor
rançoso, prostituída pelo deboche, melando e fornicando num chiqueiro
asqueroso!
A RAINHA: Oh!
Não prossigas! Apunhalam-me o ouvido essas palavras. Basta, querido Hamlet!
HAMLET: Um assassino, um vil escravo, que não é um
vigésimo do outro marido, um rei-bufão, um simples gatuno do governo desta
terra, que a coroa empalmou da prateleira e a pôs no bolso.
A RAINHA:
Basta!
HAMLET: Um
rei-palhaço, em trajes de mendigo...
(…)
Espectro: (…) Para o mais fraco corpo seja a mão
mais forte.
(…)
A RAINHA: Isso é fruto, somente, de teu cérebro. É
sempre muito fértil o delírio no inventar essas coisas.
HAMLET:
Delírio? Meu pulso, como o vosso, é compassado; toca música sã. Não foi loucura
quanto falei; ponde-me à prova: posso dizer tudo de novo. Um desvairado
divagaria. Mãe, por vossa graça, não lisonjeis vossa alma, acreditando que
ouvis um louco e não vosso delito. A úlcera externa, assim, se fecharia,
enquanto a corrupção minará tudo por dentro, sem ser vista. Ao céu volvei-vos;
mostrai-vos do passado arrependida; evitai o futuro, sem que a má semente
adubeis e lhe deis, assim, mais viço. Perdoai-me esta virtude, que nesta época
bem cevada e de fôlego cortado necessita a virtude rebaixar-se ao próprio vício
e apresentar-lhe escusas por tudo o que de bem possa fazer-lhe.
(…)
RAINHA: Hamlet, o coração em dois me partes.
HAMLET: Jogai fora a metade que não presta, para com
a outra parte serdes pura. Mas evitai a cama do meu tio; fazei-vos de virtuosa,
se o não fordes. O hábito, esse demónio que devora todos os sentimentos, nisso
é um anjo, pois para o uso de ações boas e belas empresta vestimenta ou capa
externa que lhes vão bem. Abstende-vos por hoje, que isso há-de conferir
facilidade à próxima abstinência; a outra, mais fácil vos há-de parecer, os
costumes mudam o cariz a natureza, doiram o demónio e até expulsá-lo com poder
prodigioso…
A RAINHA: Que é preciso que eu faça?
HAMLET: Nada
do que vos disse neste instante. Que outra vez para o leito o rei balofo, vos
conduza e no rosto vos belisque vos chame de ratinha, e que dois beijos
infectos e carícias com as mãos grossas em vossas costas pronto vos induzam a
revelar-lhe que estou bom do juízo, mas que finjo loucura. Dizei-lhe isso. Que
rainha sensata, bela e honesta esconderia coisas tão preciosas de um sapo, de
um morcego? É concebível? Apesar do bom senso, abri a gaiola no telhado e
deixai fugir o pássaro; depois, como o macaco famoso, entrai nela e fazei logo
a experiência para em baixo, com ela partirdes o pescoço.
A RAINHA: Garanto-te, se o falar consiste em
respirar, e o fôlego for vida, não terei vida alguma que respire quanto me
revelaste.
(…)
HAMLET: Selaram cartas (vou para Inglaterra); meus
dois companheiros de escola, em quem me fio como em dentes de víbora,
encontram-se com a incumbência de aplanar-me o caminho e conduzir-me direto ao
cativeiro. Pois trabalhem! Há de ser engraçado ver a bomba fazer saltar o
autor. Por mais difícil que seja, hei de cavar mais fundo ainda, para jogá-los
no alto. Como é belo ver a astúcia vencer a própria astúcia!
Insano como o mar e o ar quando ambos disputam quem
é o mais forte.
(…) mas era tanto o nosso amor, que não pudemos
perceber o que convinha, como o atacado de mal vergonhoso que se deixa devorar
até aos ossos, sem divulgar o que o corrói.
A sua loucura é filão de oiro puro entre os minérios
de inferior metal, brilhando intacto…
(…) e o boato vai correr mundo, tão rápido como bala
de canhão ao alvo desfecha o tiro envenenado.
ROSENCRANTZ: Tomais-me por uma esponja, príncipe?
HAMLET: Sim, senhor, que sugas os favores, as
recompensas e a autoridade reais. Aliás, semelhantes cortesãos [esponjas] prestam
ótimo serviço ao rei, que procede com eles como o macaco, conservando-os por
algum tempo no canto da boca, antes de engoli-los. Quando tem necessidade do
que acumulastes, basta espremer-vos, para que, esponjas, fiqueis novamente
enxutos.
As subtilezas dormem nos ouvidos dos parvos.
O corpo está com o rei, mas o rei não está com o
corpo. O rei é uma coisa...
O povo irresponsável adora-o, seus olhos não vêem
outra coisa; não pensam. Assim se pesa a pena do culpado, mas nunca a sua
culpa.
O REI: Então, Hamlet, onde está o cadáver de
Polónio?
HAMLET: Está ceando.
O REI: Ceando! Onde?
HAMLET: Não onde ele come, mas onde é comido. Certa
assembleia de vermes políticos ocupa-se justamente dele. Quanto a comida o
verme é o vosso imperador. Engordamos as
criaturas, para que nos engordem, e engordamo-nos para dar de comer aos
gusanos. Um rei gordo e um mendigo magro são iguanas diferentes; dois pratos,
mas para a mesma mesa: eis tudo.
(…)
HAMLET: Pode-se pescar com um verme que haja comido
de um rei, e comer o peixe que se alimentou desse verme.
O REI: Que
queres dizer com isso? HAMLET: Nada; apenas mostrar-vos como um rei pode fazer
um passeio pelas tripas de um mendigo.
HAMLET: Marchais contra toda a Polônia, ou
porventura um ponto da fronteira?
O CAPITÃO: Para falar verdade, sem acréscimo, vamos
lutar por uma nesgazinha que outro lucro não deixa além da glória. Cinco
ducados, cinco, eu não daria para arrendá-la, nem mais obteriam a Noruega e a
Polónia, se a vendessem.
HAMLET: Nesse caso, o Polaco a não defende.
O CAPITÃO: Isso é que sim! Já se encontra
guarnecida.
HAMLET: Não
chegarão duas mil almas e vinte mil ducados para remir questão que não vale uma
palha… é o tumor nascido da longa paz e da riqueza, que rebenta para dentro,
sem mostra exterior. Mas mata homens!
(…)
HAMLET: Como tudo me acusa, espicaçando-me à
vingança! Que é o homem, se sua máxima ocupação e o bem maior não passam de
comer e dormir? Um simples bruto. Decerto, quem nos criou com a faculdade que
ao passado e ao futuro nos transporta, não nos deu a razão divina, para que
fique inútil. Seja esquecimento bestial, ou mesmo escrúpulo covarde que me leva
a pensar demais nas coisas - pensamento com um quarto de bom senso e três de
covardia - ignoro a causa de ficar a dizer: “Devo
fazê-lo”,
se para tal me sobram meios, força, causa e disposição. Exemplos grandes como a
terra me exortam: este exército de tal poder e número, chefiado por um príncipe
moço e delicado, cuja coragem a ambição divina faz exaltar, levando-o a
defrontar-se com os factos invisíveis e a sua parte mortal e pouco firme a pôr
em risco contra o que ousa a fortuna, o acaso e a morte, por uma casca de ovo.
O ser, de facto, grande não é empenhar-se em grandes discursos; grande é quem
luta até por uma palha, quando a honra está em jogo. E eu, deste modo, com o
pai assassinado, a mãe poluída - razões de estimular o sangue e o brio - nada
me esperta? Vejo, envergonhado, vinte mil homens próximos da morte, que por
simples capricho da vaidade caminham para o túmulo tal como se fossem para o
leito, e lutam pela conquista de um terreno em que não cabem, e que como
sepulcro ainda é pequeno para esconder sequer os que aí tombarem. Doravante
terei só pensamentos de sangue ou sem valor, soltos aos ventos.
Tão assediada é a culpa de apreensões sem jeito que,
temendo derramar-se, se derrama a eito.
Nós sabemos o que somos, mas não o que podemos vir a
ser.
LAERTES: Que significa esse barulho? (Entra Ofélia.)
Febre. seca-me o cérebro! Corroei-me, lágrimas sete vezes salgadas, a virtude
dos olhos! Pelo céu! tua loucura será pesada até que desça o prato da balança.
Rosa de maio, irmã, doce menina, querida Ofélia! Ó céu! É então possível que a
razão de uma jovem seja frágil como o alento de um velho?
Vem ter comigo com a velocidade de quem foge à
morte!
Sei que o Amor nasceu com o Tempo, e vi através de
provações que o Tempo lhe modera o fogo e a luz. Na própria chama do Amor há
pavio e morrão que o abatem, e nada mantem a sua excelência, pois esta ao
crescer excessiva, morre desse mesmo excesso.
Devemos
actuar quando a vontade chama pelo desejo, poi este muda e tanto sofre de
atrasos e fraquezas como línguas, mãos e acidentes se apresentam, fazendo do
dever um simples suspiro, ainda que custoso de exalar.
Quando se forem estas lágrimas com ela irá a mulher
que em mim chora…
HAMLET: Esse sujeito não terá o sentimento da
profissão, para cantar, quando está abrindo uma sepultura?
HORÁCIO: O
hábito tudo torna igual e fácil…
HAMLET: É
isso; as mãos que trabalham pouco são mais sensíveis.
(…)
HAMLET: Tempo houve em que aquele crânio teve língua
e podia cantar; agora, esse velhaco atira-o ao solo, como se se tratasse da
mandíbula de Caim, o primeiro homicida. É bem possível que a cabeça que esse
asno maltrata desse jeito seja de algum político que enganava ao próprio Deus,
não te parece?
(…)
HAMLET: E agora, depois de pertencer a lorde Verme,
que lhe comeu as carnes, este sujeito lhe bate com a enxada no maxilar. Se
pudéssemos acompanhá-lo em todas as fases, surpreenderíamos nisso uma bela revolução.
Levarem tanto tempo esses ossos para se formarem, só para virem a servir de
bola [jogar à péla]! Só de pensar em tal coisa, sinto doer os meus.
(…)
HAMLET: Mais um crânio. Por que não há-de ser o de
um jurista? Onde foram parar as subtilezas, os equívocos, os casos, as
enfiteuses, todas as suas chicanas? Por que consente que este maroto rústico
lhe bata com a enxada suja, e não lhe arma um processo por lesões pessoais?
Hum! É bem possível que esse sujeito tivesse sido um grande comprador de terras,
com suas escrituras, hipotecas, multas, endossos e recuperações. Consistirá a
multa das multas e a recuperação das recuperações em ficarmos com a bela cabeça
assim cheia de tão bonito lodo? Não lhe arranjaram seus fiadores, com as
fianças duplas, mais espaço do que o de seus contratos? Os títulos de suas
propriedades não caberiam em seu caixão; não obterão os herdeiros mais do que
isso?
Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre
tornou-se pó. O pó é terra; da terra faz-se argila; por que, então, não se
poderá tapar um barril de cerveja com a argila em que ele se converteu? O
grande César morto e em pó tornado, pode a fenda vedar ao vento irado. O que
outrora foi do mundo pesadelo, calafeta muros, poupa-nos do gelo.
É perigoso, para espíritos mesquinhos, quando
intervém a baixa natureza e têm de passar por entre dados ardentes, lançados
entre inimigos poderosos.
Horácio: Mas que raio de Rei é esse?
Hamlet: (…) Ele que matou meu pai e minha mãe
prostituiu, intrometeu-se na sucessão e minhas esperanças. Com o seu anzol
pescou-me a vida até- e com que imposturas! Não será maldito quem deixe tal
cancro da humana natureza fazer ainda males maiores?
(…) é pecado conhecê-lo. Possui muitas terras e
todas férteis. Se fosse animal, o rei dos animais, a manjedoura deste ficaria
sempre ao lado da mesa do rei. É um fala-barato, mas, como disse, dono de
grandes extensões de lama.
(…) considero-o uma alma de grandeza exepcional, com
dotes tão preciosos e raros, que, igual a ele, só poderá encontrar em seu próprio
espelho. Qualquer outra tentativa para retratá-lo redundaria em sua simples
sombra.
Conhecer bem um homem é estar-lhe na pele…
Já cumprimentava as tetas antes de mamar… como os
muitos do mesmo rebanho, que constituem o encanto de nossa época superficial,
adquiriu apenas o tom da moda e o verniz da sociedade, que, como espuma fina, o
fazem passar através das opiniões mais joeiradas e batidas. Mas bastará soprar,
para que as bolhas rebentem e não ficará nada.
Ao futuro que a ele pertence!