Havia que
viver- e vivia-se, graças a um hábito que se fazia instinto (…)
Guerra é paz
Liberdade é
escravidão
Ignorância é
força
O Ministério
da Verdade; O Ministério da Paz; O Ministério do Amor; Ministério da Riqueza
Eram apenas
palavras de incitamento, o tipo de palavras que se pronunciam no fragor da
batalha, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a
confiança pelo facto de serem ditas.
Nada
pertencia ao indivíduo, com excepção de alguns centímetros cúbicos dentro do
crânio.
Ele não
passava dum fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais
ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não
é fazendo ouvir a nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a
herança humana.
Se o Partido
tem o poder de agarrar o passado e dizer que este ou aquele acontecimento nunca
se verificou - não é mais aterrorizante do que a simples tortura e a morte?
"Quem
controla o passado," dizia o lema do Partido, "controla o futuro:
quem controla o presente controla o passado." E no entanto o passado,
conquanto de natureza alterável, nunca fora alterado. O que agora era verdade
era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série
infinda de vitórias sobre a memória. Chamava-se "Controle da realidade",
ou duplipensar.
Seu espírito
mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter
consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente
arquitectadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as
contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a
lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da
democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto
fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e
depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao
processo. Essa era a subtileza derradeira: induzir conscientemente a
inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do acto de hipnose que se
acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era
necessário usar o duplipensar.
(…) Havia toda
uma série de departamentos autónomos que tratavam de literatura, música, teatro
e divertimentos proletários em geral. Neles eram produzidos jornalecos
ordinários que continham pouca coisa, notícias de desporto, polícia e astrologia,
sensacionais novelazitas de cinco centavos, filmes transbordando de sexo, e
cançõezitas sentimentais compostas inteiramente por meios mecânicos(…)
Qualquer
dia, reflectiu Winston, com convicção profunda e repentina, Syme será
vaporizado. É inteligente demais. Vê demasiado claro e fala sem subterfúgios. O
Partido não gosta de gente assim. Um dia ele desaparecerá.
Mas os
proles, se de algum modo adquirissem consciência do seu poderio, não
precisariam conspirar. Bastava-lhes levantarem-se e sacudir-se, como um cavalo
sacode as moscas. Se o quisessem, poderiam demolir o Partido no dia seguinte.
Mais cedo ou mais tarde, isso lhes haveria de ocorrer. No entanto... !
Não se
revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes
enquanto não se rebelarem.
O Partido
proclamava, naturalmente, ter libertado os proles da servidão. Antes da
Revolução eram oprimidos pelos capitalistas, tinham sido chicoteados e
submetidos à fome, as mulheres forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na
verdade, as mulheres ainda trabalhavam nas minas), as crianças vendidas às
fábricas com a idade de seis anos. Simultaneamente, fiel aos princípios do
duplipensar, o Partido ensinara que os proles eram naturalmente inferiores, que
deviam ficar em sujeição, como animais, pela aplicação de algumas regras
simples. Pouquíssimo se sabia a respeito dos proles. Não era necessário saber
muito. Contanto que continuassem a trabalhar e a reproduzir-se, não tinham
importância as suas outras atividades. Abandonados a si mesmos, como gado solto
nas planuras argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia
natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam, cresciam nas sargetas, iam
para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e
do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em
geral morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos
filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima
de tudo, o jogo, enchiam-lhes os horizontes. Mantê-los sob controlo não era
difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre entre eles,
soltando boatos, marcando e eliminando os poucos indivíduos julgados capazes de
se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do
partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos
definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patriotismo primitivo ao
qual se podia apelar sempre que fosse necessário levá-los a aceitar rações
menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes,
como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma
porque, não tendo ideias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas
reivindicações específicas. Os males maiores geralmente fugiam-lhes à
observação. A grande maioria dos proles nem tinha teletelas em casa. Até a
polícia civil interferia pouquíssimo com eles. Havia enorme criminalidade em
Londres! todo um mundo subterrâneo de ladrões, bandidos, prostitutas,
vendedores de narcóticos e contraventores de todo tipo; mas como tudo se
passava entre os próprios proles, não tinha importância. Em todas as questões
morais, permitia-se-lhes obedecerem ao código ancestral. O puritanismo sexual
do Partido não lhes era imposto. A promiscuidade não era punida, e o divórcio
era permitido. Nesse particular, até a adoração religiosa teria sido permitida
se os proles demonstrassem algum sintoma de desejá-la ou dela carecerem.
Ninguém desconfiava deles. Como dizia o lema do Partido: "Os proles e os
animais são livres."
De repente
achou que as únicas coisas verdadeiramente típicas da vida moderna não eram nem
a crueldade nem a insegurança, mas apenas a nudez, a miséria, o desânimo.
O ideal
criado pelo Partido era enorme, terrível, luzidio - um mundo de aço e cimento,
de monstruosas máquinas e armas aterrorizantes - uma nação de guerreiros e
fanáticos, marchando avante em perfeita unidade, todos tendo os mesmos
pensamentos e gritando as mesmas divisas - trezentos milhões com a mesma cara -
trabalhando perpetuamente, lutando, triunfando, perseguindo.
A realidade
eram cidades caindo em ruinas, escuras, onde o populacho subnutrido perambulava
com sapatos furados, vivendo em remendadas casas do século dezanove que sempre
cheiravam a repolho e latrinas de mau funcionamento. Parecia ter uma visão de
Londres, vasta e arruinada, uma cidade de um milhão de latas de lixo, e
misturada com ela a figura da sra. Parsons, mulher de cara enrugada e cabelo
ralo, lidando sem esperança com um cano de esgoto.
… Era uma equação única com duas
incógnitas…
O passado
não podia apenas ser modificado, podia ser mudado continuamente. O que mais o
afligia, com uma sensação de pesadelo, era nunca compreender com clareza por
que se iniciara a tremenda impostura. Eram óbvias as vantagens imediatas da
falsificação do passado, mas os motivos finais eram misteriosos. Ele tornou a
pegar a caneta e escreveu: Compreendo COMO: não compreendo PORQUE. Indagou de
seus botões, como fizera muitas vezes, se não era lunático ele próprio. Talvez
um lunático seja apenas uma minoria de um só. Antigamente, fora sinal de
loucura acreditar que a terra gira em torno do sol; hoje, crer que o passado é
inalterável. Podia ser o único a ter aquela crença, e ser sozinho, lunático. A
ideia de ser lunático, porém, não o perturbava grandemente. O horror era estar
enganado.
No fim, o
Partido anunciaria que dois e dois são cinco, e todos teriam que acreditar. Era
inevitável que o proclamasse mais cedo ou mais tarde: exigia-o a lógica de sua
posição. Sua filosofia negava tacitamente não apenas a validez da experiência
como a própria existência da realidade externa. O bom senso era a heresia das
heresias. E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar
diferente, mas a possibilidade de terem razão. Por que, afinal de contas, como
sabemos que dois e dois são quatro? Ou que existe a lei da gravidade? Ou que o
passado é inalterável? Se tanto o passado como o mundo externo só existem na
mente, e se a mente em si é controlável... então? Mas não!
(…)O Partido
ordenava que o indivíduo rejeitasse a prova visual e auditiva. Era a sua ordem
final, essencial.
(…)A
liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto,
tudo o mais decorre.
(…) A coisa
é que esses capitalistas, mais alguns advogados e padres, e gente assim, que
viviam à custa deles, eram os senhores da terra. Tudo existia para o gozo deles.
O povinho comum, os trabalhadores, eram escravos deles. Podiam fazer o que bem
entendessem (…)
Os
sobreviventes do povo eram, como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas
não enxerga os grandes. E quando a memória falhava, e os registos escritos eram
falsificados - era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham
melhorado as condições da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia
existir, qualquer padrão de comparação.
Pensou, com
uma espécie de assombro, na inutilidade biológica da dor e do medo, na traição
do corpo humano que sempre se congela na inércia, no momento exacto em que dele
se exige esforço especial. Poderia ter silenciado a moça morena se conseguisse
agir com rapidez, mas precisamente por causa do perigo extremo que corria
perdera a capacidade de agir. Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se
luta com um inimigo externo, mas com o próprio organismo. (…)E o mesmo acontece
em todas as situações aparentemente heróicas ou trágicas. No campo de batalha,
na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são
sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo incha, e avoluma-se até ocupar
todo o universo, e mesmo quando não nos paralisa o medo, nem gritamos de dor, a
vida é uma luta, minuto a minuto, contra a fome, o frio, a insónia, contra uma
dor de estômago ou de dentes.
O Partido
talvez estivesse podre sob a crosta superior; seu culto da severidade é a
auto-negação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade. Se pudesse infeccioná-los
todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para
apodrecer, debilitar, minar!
Respeitando
as leis menores podia infringir as maiores.
Ao contrário
de Winston, ela percebera o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido.
Não era apenas pelo facto do instinto sexual criar um mundo próprio, fora do
controle do Partido e que portanto devia ser destruído, se possível. O mais
importante era a privação sexual que provocava a histeria, desejável porque
podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Ou como
explicava Júlia:
- Quando amas, gastas energia; depois, ficas
contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que
te sintas assim. Querem que estoures de energia o tempo todo. Todas essas
coisas de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo
que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande
Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de ódio e todo o resto da maldita
burrice?
Era bem verdade, pensou ele. Havia uma ligação
direta e íntima entre a castidade e a ortodoxia política. Como poderiam ser
mantidos no tom o medo, o ódio e a credulidade lunática que o Partido
necessitava nos seus membros, a não ser pelo engarrafamento de um poderoso
instinto, usado como força motriz? O impulso sexual era perigoso ao Partido e o
Partido transformara-o em vantagem a seu favor.
A um truque semelhante tinham submetido o
instinto da paternidade. Como não era possível abolir a família (ao contrário,
os pais eram incitados a gostar dos filhos quase à moda antiga) as crianças
eram sistematicamente atiradas contra os pais, e ensinadas a espioná-los e a
denunciar os seus desvios. Dessa forma a família se tornara uma extensão da
Polícia do Pensamento. Era um meio pelo qual todos podiam ser cercados, noite
ou dia, por delatores que os conheciam intimamente.
Viver dia a
dia, semana a semana, esticando um presente que não tinha futuro, parecia um
instinto irresistível, como os nossos pulmões sempre procuram inspirar,
enquanto existe ar.
De certo
modo, o ponto de vista do Partido impunha-se com mais êxito às pessoas
incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade
porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não
estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à
falta de compreensão permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam
não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de
milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.
Quando se
ama alguém, ama-se, e quando não se tem nada mais para lhe dar, ainda se lhe dá
amor.
(…) Eram
governados por lealdades particulares que não punham em dúvida. O que importava
eram as relações individuais, e podia ter valor em si um gesto completamente
irrelevante, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um moribundo. De
repente, ocorreu-lhe que os proles tinham continuado assim. Não eram leais a um
partido, país ou ideologia, eram leais aos seus semelhantes. Pela primeira vez
na vida não desprezou os proles nem pensou neles apenas como força inerte que
um dia ganharia vida e regeneraria o mundo. Os proles tinham continuado
humanos. Não se haviam endurecido por dentro. Haviam conservado as emoções
primitivas que ele próprio tivera de reaprender por esforço consciente.
(…)Eles podiam
reconstitui-los procedendo a averiguações ou e arrancá-los ao preso pela
tortura. Mas se o objetivo era não tanto continuar vivo como continuar humano,
que diferença poderia fazer, no fim? Não podiam alterar os sentimentos do
indivíduo: nem ele próprio o consegue, mesmo que o deseje. Podiam desnudar, nos
mínimos detalhes, tudo quanto houvesse feito, dito ou pensado; mas o mais fundo
do coração, cujo funcionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continuava
inexpugnável.
Desde que se
começou a escrever a história, e provavelmente desde o fim do Período
Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se
subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua
relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram
segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade.
Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o
mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em
movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado deste ou
daquele lado.
Os objetivos
desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis…
O objectivo
da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o
objetivo da Baixa, quando tem objectivo - pois é característica constante da
Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho quotidiano que só
intermitentemente tem consciência do que existe fora de sua vida - é abolir
todas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais.
Assim, por toda a história, trava-se
repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos
a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em
que, ou perde a fé em si própria ou a sua capacidade de governar com
eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu
lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a
Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro
em breve, uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de
ambos, e a luta recomeça.
Das três
classes, só a Baixa nunca consegue, nem o êxito temporário, na obtenção dos
seus ideais.
Seria
exagero dizer que não se regista na história progresso material. Mesmo hoje,
neste período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há
alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de
maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro a
igualdade humana.
Do ponto de
vista da Baixa, nenhuma modificação histórica significou mais do que uma
mudança do nome dos amos.
Por volta dos fins do século dezanove, a
recorrência do ciclo se tornara óbvia- a muitos observadores. Surgiram então
escolas filosóficas que interpretavam a história como um processo cíclico e
protestavam que a desigualdade era a lei inalterável da vida humana.
Essa
doutrina, naturalmente, sempre teve seus adeptos, mas na maneira pela qual foi
então exposta havia uma transformação significativa. No passado, fora uma
doutrina especificamente da Alta a necessidade de uma forma hierárquica de
sociedade. Fora pregada por reis, aristocratas e sacerdotes, advogados, etc.,
que a parasitavam, e fora geralmente amaciada por promessas de recompensa num
mundo imaginário de além-túmulo. A Média, enquanto lutou pelo poder, sempre fez
uso de termos tais como liberdade, justiça e fraternidade.
Agora,
todavia, o conceito de fraternidade humana começou a ser assaltado pelos que ainda
não se encontravam em posições de mando, porém esperavam conquistá-las em
breve. No passado a Média fizera revoluções sob a bandeira da igualdade,
estabelecendo nova tirania assim que derrubava a antiga. Com efeito, os novos
grupos Médios proclamavam antecipadamente sua tirania. O socialismo, teoria
aparecida no início do século dezanove é o último elo duma cadeia de pensamento
que se iniciava nas rebeliões dos escravos antigos, ainda estava profundamente
impregnado pelo Utopismo do passado.
Mas em cada
variante de Socialismo que apareceu de 1900 para cá, o propósito de estabelecer
a liberdade e a igualdade ia sendo abandonado cada vez mais abertamente.
Os novos
movimentos, que apareceram em meados do século, o Ingsoc na Oceânia, o
Neo-bolchevismo na Eurásia, o Culto da Morte, como é comumente chamado, na
Lestásia, tinham o propósito consciente de perpetuar a desliberdade e a
desigualdade.
Esses novos
movimentos, naturalmente, surgiram dos mais antigos e tenderam a conservar o
nome e a render tributo à sua ideologia. Mas o propósito de todos era deter o
progresso e congelar a história num dado momento. O movimento familiar do
pêndulo deveria ter lugar mais uma vez, e depois parar. Como de hábito, a Alta
devia ser posta abaixo pela Média, que então se tornaria a Alta; desta vez
porém a Alta, por meio de uma estratégia consciente, conseguiria manter
permanentemente sua posição.
As novas
doutrinas nasceram em parte por causa do acúmulo de conhecimento histórico, e o
crescimento do sentido histórico, que mal existira antes do século dezanove. O
movimento cíclico da história era agora inteligível ou parecia ser; e, sendo
inteligível, era alterável. Mas a causa principal, subexistente, era que, desde
o começo do século vinte, a igualdade humana se tornara tecnicamente possível.
Verdade ainda que os homens não eram iguais nos seus talentos inatos e que as
funções tinham de ser especializadas de maneira que favoreciam uns indivíduos
contra outros; porém não havia mais nenhuma necessidade real de distinção de
classe nem de grandes diferenças de fortuna.
Em épocas anteriores, as distinções não tinham
sido apenas inevitáveis como desejáveis. A desigualdade era o preço da
civilização. Todavia, com o desenvolvimento da produção à máquina, alterou-se o
caso. Mesmo que ainda fosse necessário aos seres humanos desempenhar diferentes
tipos de profissão, já não era preciso que vivessem em diferentes níveis
sociais ou económicos.
Portanto, do
ponto de vista dos novos grupos que se preparavam a tomar o poder, a igualdade
humana não era mais um ideal a atingir, era um perigo a evitar.
Em épocas
mais primitivas, quando de facto não era possível uma sociedade justa e
pacífica, fora bem fácil acreditar nela. A ideia de um paraíso terreno em que
os homens vivessem juntos num estado de fraternidade, sem leis nem trabalho
brutal, incendiara durante milhares de anos a imaginação humana. E essa visão
tinha certo fascínio mesmo sobre os grupos que realmente se beneficiaram de
cada mudança histórica. Os herdeiros das revoluções inglesas, francesa e
americana haviam parcialmente acreditado nas suas próprias frases a respeito
dos direitos do homem, liberdade de palavra, igualdade perante a lei, e quejandas,
e até haviam permitido que sua conduta fosse por elas influenciada, dentro de
certos limites.
Mas ao advir
a quarta década do século vinte, eram autoritárias todas as principais
correntes de pensamento político. O paraíso terreno desacreditara-se no momento
exato em que se tornara realizável. Cada nova teoria política, fosse qual fosse
o seu rótulo, conduzia de novo à hierarquia e à arregimentação.
E no endurecimento geral de atitudes
verificado por volta de 1930, práticas que
há longo tempo tinham sido abandonadas, em alguns casos durante séculos
- prisão sem julgamento, uso de prisioneiros de guerra como escravos, execuções
públicas, tortura para arrancar confissões, o uso de reféns e deportação de
populações inteiras - não só voltaram a ser comuns como eram toleradas e até
defendidas por pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas.
Os grupos
governantes foram sempre infestados, até certo ponto, de ideias liberais, e
contentavam-se em deixar as pontas soltas por toda parte, considerando apenas o
acto patente e desinteressando-se pelo raciocínio dos seus súditos. Em parte a
razão deste facto residia na impossibilidade dos governos do passado manterem
sob constante vigilância os seus cidadãos.
A invenção da imprensa, contudo, tornou mais fácil
manipular a opinião pública, processo que o filme e a rádio levaram além. Com o
desenvolvimento da televisão, e o progresso técnico que tornou possível receber
e transmitir simultaneamente pelo mesmo instrumento, a vida particular acabou.
Cada cidadão, ou pelo menos cada cidadão suficientemente importante para
merecer espionagem, passou a poder ser mantido vinte e quatro horas por dia sob
os olhos da polícia e ao alcance da propaganda oficial, fechados todos os
outros canais de comunicação. Existia pela primeira vez a possibilidade de impor
não apenas a completa obediência à vontade do Estado como também a completa
uniformidade de opinião em todos os súbditos.
Depois do
período revolucionário de 1950 a 1970, a sociedade reagrupou-se, como sempre,
em Alta, Média e Baixa. Mas a nova Alta, ao contrário das antecessoras, não
agia por instinto: sabia o que era preciso para garantir sua posição. Havia
muito tempo que se percebera que a única base segura da oligarquia é o colectivismo.
A riqueza e o privilégio são mais fáceis de defender quando possuídos em
conjunto. A chamada "abolição da propriedade privada", que se
verificou em meados do século, significou, com efeito a concentração da
propriedade em número muito menor de mãos, mas com a diferença de que os novos
donos eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. Individualmente, nenhum
membro do Partido possui coisa alguma, excepto ninharias pessoais. Colectivamente,
o Partido é dono de tudo na Oceania, porque tudo controla, e dispõe dos seus
produtos como bem lhe parece. Nos anos que se seguiram à Revolução, conseguiu
galgar quase sem oposição esse posto de comando, porque todo o processo foi
apresentado como ato de coletivização. Sempre se imaginara que se a classe
capitalista fosse expropriada, o Socialismo adviria: e inquestionavelmente os
capitalistas tinham sido expropriados. Fábricas, minas, terras, casas,
transporte - tudo lhes fora tomado: e dado que -não eram mais propriedade
particular, evidentemente deviam ser propriedade pública. O Ingsoc, que brotou
do movimento socialista anterior e dele herdou a fraseologia, com efeito
executara o principal do programa socialista. E o resultado, previsto e
pretendido antecipadamente, fora tornar permanente a desigualdade económica.
Mas vão mais
fundo os problemas de perpetuar a sociedade hierárquica. Só há quatro modos de
um grupo governante abandonar o poder. Ou é vencido de fora, ou governa tão
ineficientemente que as massas são levadas à revolta, ou permite o aparecimento
de um grupo médio forte e descontente, ou perde a confiança em si e a
disposição de governar. Essas causas não funcionam de per si, e via de regra as
quatro se apresentam em diferentes proporções.
Uma classe
dominante que e possa salvaguardar contra as quatro permaneceria eternamente no
poder. No fim de contas, o fator determinante é a atitude mental da própria
classe dominante.
Depois de
meados deste século, desapareceu o primeiro perigo. As três potências em que o
mundo se dividiu são de fato invencíveis, e só poderiam se tornar vulneráveis
por meio de lentas mutações demográficas que um governo com amplos poderes
consegue evitar facilmente. O segundo perigo, também é apenas teórico. As
massas nunca se revoltarão espontaneamente, e nunca se revoltarão apenas por
serem oprimidas. Com efeito, se não se lhes permite ter padrões de comparação
-nem ao menos se darão conta de que são oprimidas. As crises económicas
decorrentes do passado eram totalmente desnecessárias e hoje já não se podem
verificar, mas podem suceder outros deslocamentos igualmente grandes, sem que
haja resultados políticos, por não existir maneira de articular o
descontentamento e dar-lhe vasão. No que tange ao problema da superprodução,
latente na nossa sociedade desde o desenvolvimento da técnica da máquina, é
resolvido por meio do método da guerra contínua (vide Capítulo 3), também útil
para manter o moral público no diapasão desejado. Do ponto de vista dos nossos
actuais governantes, portanto, os únicos perigos genuínos são a formação de um
novo grupo de gente capaz, sem muito trabalho, e faminta de poder, e o
crescimento do liberalismo e do cepticismo nas suas fileiras governamentais.
Isto é, o
problema é educacional. É um problema de moldar continuamente a consciência
tanto do grupo dirigente como do grupo executivo, mais amplo, que fica logo
abaixo dele. - A consciência das massas precisa ser influenciada apenas de modo
negativo.
Dados estes
esclarecimentos, poder-se-ia inferir, se já não se conhecesse, a estrutura
geral da sociedade oceânica. No alto da pirâmide está o Grande Irmão. O Grande
Irmão é omnipotente. Cada sucesso, realização, vitória, descobrimento
científico, toda a sabedoria, sapiência, virtude, felicidade, são atribuídos
directamente à sua liderança e inspiração. Ninguém nunca viu o Grande Irmão. É
uma cara nos tapumes, uma voz das teletelas. Podemos ter razoável certeza de
que nunca morrerá, e já existe considerável incerteza da data em que nasceu. O
Grande Irmão é a forma em que o Partido se resolveu apresentar ao mundo. Sua função é a de ponte
focal para o amor, medo, reverência, emoções que podem mais facilmente ser
sentidas em relação a um indivíduo do que a uma organização. Abaixo do Grande
Irmão vem o Partido Interno, com os seus seis milhões de membros, ou seja,
menos de dois por cento da população da Oceânia. Abaixo do Partido Interno vem
o Externo, que pode ser chamado de mãos do Estado, se ao primeiro se atribuir o
papel de cérebro. Abaixo dele vem a massa muda a que nos referimos
habitualmente por "proles" e que talvez constitua oitenta e cinco por
cento da população. Nos termos da nossa classificação anterior, os proles são a
Baixa. Em princípio, não é hereditária a participação em qualquer dos três
grupos. Filho de pais do Partido Interno não é, em teoria, a ele filiado. A
admissão a qualquer das esferas do Partido faz-se por exame, prestado aos dezasseis
anos. Não há nenhuma discriminação racial, nem qualquer pronunciado domínio de
uma província sobre outra. Encontram-se judeus, negros, sul-americanos de puro-sangue
índio nos postos mais elevados do Partido, e os administradores regionais são
sempre convocados dentre os naturais da área. Em nenhuma parte da Oceânia têm
os habitantes a impressão de ser colonia administrada de uma longínqua capital.
A Oceânia não tem capital, e o seu chefe titular é uma pessoa cujo paradeiro
todos ignoram. Não é centralizada de modo algum, à excepção da língua franca,
que é o inglês, e da Novilíngua, que é o idioma oficial. Seus governantes não
são ligados por laços de consanguinidade mas pela obediência a uma doutrina
comum. É verdade que a nossa sociedade é estratificada, e muito rigidamente,
segundo o que - à primeira vista - parecem ser linhas hereditárias. Há
muitíssimo menos movimento de vai e vem entre os grupos diferentes do que
acontecia no capitalismo ou mesmo nos períodos pré-industriais.
Entre os
dois ramos do Partido existe certa dose de intercâmbio, cujo único propósito,
porém, é permitir a exclusão dos fracos do Partido Interno e a neutralização
dos mais ambiciosos militantes do Partido Externo, guindados a uma esfera mais
elevada.
Na prática,
os proletários não têm direito de entrar para o Partido. Os mais bem dotados,
que poderiam se tornar núcleos de descontentamento, são simplesmente
assinalados pela Polícia do Pensamento e eliminados. Mas esse estado de coisas
não é necessariamente permanente, nem é questão de princípio.
O Partido
não é uma classe no antigo sentido da palavra. Não tem por objetivo transmitir
o poder aos próprios filhos; e se não houvesse outro meio de conservar os mais
capazes nos postos de comando, estaria perfeitamente disposto a recrutar toda
uma geração nova das fileiras do proletariado.
Nos anos
cruciais, muito contribuiu para neutralizar a oposição o facto de o Partido não
ser um organismo hereditário. O antigo tipo de socialista, treinado a lutar
contra o que às vezes se chamava "privilégio de classe," supunha que
o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a
continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem fazia pausa para reflectir
que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que
organizações auto-renovantes, como a Igreja Católica, às vezes duram centenas e
mesmo milhares de anos.
A essência
do jugo oligárquico não é a herança de pai para filho, mas a persistência de
certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos
vivos pelos mortos. Um grupo dominante só continua mandando enquanto consegue
nomear os seus sucessores. O Partido não se interessa pela perpetuação do seu
sangue, mas pela perpetuação da entidade. O que importa não é quem maneja o
poder, contanto que permaneça sempre a mesma a estrutura hierárquica.
Todas as
crenças, hábitos, gostos, emoções e atitudes mentais que caracterizam a nossa
época são realmente destinados a sustentar a mística do Partido e impedir que
se perceba a verdadeira natureza da sociedade actual.
A rebelião
física não é possível no momento, nem qualquer preliminar de rebelião.
Dos
proletários nada há a temer. Entregues a si mesmos, continuarão, de geração em
geração e de século a século, trabalhando, procriando e morrendo, não apenas
sem qualquer impulso de rebeldia, como sem capacidade de descobrir que o mundo
poderia ser diferente do que é. Só poderiam ficar mais perigosos se o progresso
da técnica industrial tornasse necessário educá-los mais; porém, como a
rivalidade militar e comercial já não tem importância, declina o nível da
educação popular. As opiniões das massas, ou a ausência dessas opiniões, são
alvo da máxima indiferença. Não é possível dar-lhes liberdade intelectual
porque não possuem intelecto.
Num membro
do Partido, por outro lado, não se pode tolerar nem o menor desvio de opinião a
respeito do assunto menos importante. O membro do Partido vive, do berço à
cova, sob os olhos da Polícia do Pensamento. Mesmo quando está sozinho jamais
pode ter certeza do seu isolamento. Onde quer que esteja, dormindo ou acordado,
trabalhando ou descansando, no banho ou na cama, pode ser examinado sem aviso e
sem saber que o examinam. Nada do que ele faz é indiferente. As suas amizades,
os seus divertimentos, a sua conduta em relação à esposa e aos filhos, a
expressão de seu rosto quando está só, as palavras que murmura no sono, e até
os movimentos característicos do seu corpo, é tudo ciosamente analisado. É
certo que descobrem não apenas as mais minúsculas infrações, como qualquer
excentricidade, por pequena que seja, qualquer modificação de hábitos, qualquer
maneirismo nervoso que possa ser o sintoma duma luta íntima. Não tem liberdade
de escolha em direção alguma.
Por outro lado, seus actos não são regulados
pela lei nem por nenhum código legal, claramente formulado. Na Oceânia não
existe lei. Pensamentos e actos que, descobertos, resultariam em morte certa,
não são formalmente proibidos, e os intermináveis expurgos, prisões, torturas,
detenções e vaporizações não são infligidos como castigo por crimes realmente
cometidos, mas são apenas a liquidação de pessoas que poderiam talvez cometer
um crime no futuro.
O membro do
Partido não só deve ter as opiniões certas, como os instintos certos. Muitas
das crenças e atitudes dele exigidas nunca são declaradas abertamente, e não
poderiam ser esmiuçadas sem pôr a nu as contradições inerentes do Ingsoc. Se
for uma pessoa naturalmente ortodoxa (em Novilíngua bem-pensante), saberá, em
todas as circunstâncias, sem precisar raciocinar, qual é a verdadeira crença e
a emoção desejável. Mas, de qualquer maneira, um trabalhoso treino mental, a
que se submeteu na infância, e que gira em torno das palavras novilinguísticas
crimedeter, negrobranco e duplipensar, faz com que ele não tenha nem disposição
nem capacidade para pensar a fundo em coisa alguma.
Espera-se
que o membro do Partido não tenha emoções pessoais nem lapsos de entusiasmo.
Supõe-se que viva num frenesi contínuo de ódio aos inimigos estrangeiros e aos
traidores internos, de gozo ante as vitórias e de auto degradação perante o
poderio e a sabedoria do Partido.
Os
descontentamentos produzidos por essa vida nua e insatisfatória são
deliberadamente purgados e dissipados por estratagemas tais como os Dois
Minutos de ódio, e as especulações que poderiam vir a induzir uma atitude de
cepticismo ou de rebeldia são antecipadamente suprimidas pela disciplina
aprendida na infância. O primeiro e mais simples estágio dessa disciplina, e
pelo qual passam até as crianças de tenra idade, chama-se, em Novilíngua,
crimedeter.
Crimedeter é
a faculdade de deter, de paralisar, como por instinto, no limiar, qualquer
pensamento perigoso. Inclui o poder de não perceber analogias, de não conseguir
observar erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e
hostis ao Ingsoc, e de se aborrecer ou enojar por qualquer trem de pensamentos
que possa tomar rumo herético. Crimedeter, em suma, significa estupidez protectora.
Mas estupidez não basta. Pelo contrário, a ortodoxia, na sua expressão lata,
exige sobre o processo mental do indivíduo controle tão completo quanto o de um
contorcionista sobre seu corpo.
Em última
análise, a sociedade oceânica repousa na crença de que o Grande Irmão é omnipotente
e o Partido infalível. Mas como na realidade nem o Grande Irmão é omnipotente
nem o Partido infalível, é preciso haver uma incansável flexibilidade, de
momento a momento, na interpretação dos fatos. Aqui, a palavra chave é
negrobranco. Como tantas outras palavras da Novilíngua, esta tem dois sentidos mutuamente
contraditórios.
Aplicada a
um adversário, caracteriza o hábito de afirmar impudentemente que o negro é
branco, em contradição aos factos evidentes. Aplicada a um membro do Partido,
significa leal disposição de dizer que o preto é branco quando o Partido o
exige. Significa, também, a capacidade de acreditar que o preto é branco, e
mais ainda, de saber que o preto é branco, e de acreditar que jamais se
imaginou o contrário. Isto exige contínua alteração do passado, possibilitada
pelo sistema de raciocínio que na verdade abrange tudo o mais, e que em
Novilíngua se chama duplipensar.
A alteração
do passado é necessária por duas razões, uma das quais é subsidiária e, por
assim dizer, precautória. A razão subsidiária é de que o membro do Partido,
como o proletário, tolera as condições actuais em parte por não possuir padrões
da comparação. Deve ser isolado do passado, da mesma forma que deve ser isolado
do estrangeiro, porque lhe é necessário crer que vive melhor que os ancestrais
e que o nível médio de conforto material sobe constantemente. Todavia, a razão
mais importante para o reajuste do passado é a necessidade de salvaguardar a
infalibilidade do Partido. Não significa apenas que se modifiquem discursos,
estatísticas e registos de todo género para demonstrar que as predições do
Partido são sempre certas. É que não se pode admitir, jamais, nenhuma
modificação de doutrina ou de agrupamento político.
Mudar de ideia,
ou de política, é confessar fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia
(qualquer das duas) for a inimiga de hoje, então aquele país deve ter sido
sempre o inimigo. E se os factos dizem coisas diferentes, então é preciso
alterá-los. Assim se reescreve continuamente a história. Essa falsificação quotidiana
do passado, realizada pelo Ministério da Verdade, é tão necessária à
estabilidade do regime como o trabalho de repressão e espionagem levado a cabo
pelo Ministério do Amor.
A
mutabilidade do passado é o dogma central do Ingsoc. Agúe-se que os
acontecimentos passados não têm existência objetiva, porém só sobrevivem em
registos escritos e na memória humana. O passado é o que dizem os registos e as
memórias. E como o Partido tem pleno controlo de todos os registros, e igualmente
do cérebro dos seus membros, segue-se que o passado é o que o Partido deseja
que seja. Segue-se também que embora o passado seja alterável, jamais foi
alterado num caso específico. Pois quando é re-escrito na forma conveniente, a
nova versão passa a ser o passado, e nada diferente pode ter existido. Isto aplica-se
mesmo quando, como acontece com frequência, o mesmo sucesso tem de ser alterado
várias vezes no decurso de um ano.
Todas as
vezes o Partido é detentor da verdade absoluta, e claramente o absoluto não
pode nunca ser diferente do que é agora. Ver-se-á que o controle do passado
depende, acima de tudo, do treino da memória. Não passa de acto mecânico
certificar-se de que todos os registos escritos concordam com a ortodoxia do
momento. Mas também é necessário recordar que os acontecimentos se deram da
maneira desejada. E se for necessário rearranjar as lembranças de cada um, ou
alterar os registros escritos, então é necessário esquecer que assim se
procedeu. Esse é um truque que pode ser aprendido como se aprende qualquer
outra técnica mental. É aprendido pela maioria dos membros do Partido e
certamente por todos que são tão inteligentes quanto ortodoxos. Em Anticlíngua
chama-se, com toda a franqueza, "controlo da realidade." Em
Novilíngua, chama-se duplipensar, conquanto duplipensar abranja muita coisa
mais. Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça
duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas.
O
intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas;
portanto sabe que está aplicando um truque na realidade; mas pelo exercício do
duplipensar ele convence-se também de que a realidade não está sendo violada. O
processo tem que ser consciente, ou não seria realizado com a precisão
suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de
falsidade e, portanto, de culpa.
O
duplipensar é a pedra basilar do Ingsoc, já que a acção essencial do Partido é
usar a fraude consciente ao mesmo tempo que conserva a firmeza de propósito que
acompanha a honestidade completa. Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar
piamente, esquecer qualquer facto que se haja tornado inconveniente, e depois,
quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do olvido o tempo suficiente à sua
utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a
realidade que se nega - tudo isso é indispensável.
Mesmo no
emprêgo da palavra duplipensar é necessário duplipensar. Pois, usando-se a
palavra admite-se que se está mexendo na realidade; é preciso um novo ato de
duplipensar para apagar essa percepção e assim por diante, indefinidamente, a
mentira sempre um passo além da realidade.
Em última
análise, foi por meio do duplipensar que o Partido conseguiu - e, tanto quanto
sabemos, continuará, milhares de anos - deter o curso da história. No passado,
as oligarquias caíram do poder por se ossificarem ou se amolecerem. Ou se
tornaram estúpidas e arrogantes, deixando de se ajustar às novas
circunstâncias, e foram derrubadas; ou se tornaram liberais e covardes, fizeram
concessões quando deviam ter usado força, e por isso foram apeadas do poder. Em
outras palavras, caíram pela consciência ou a inconsciência.
A grande
obra do Partido é ter produzido um sistema de pensamento no qual ambas as
condições podem co-existir. Não poderia ser permanente o domínio do Partido em
nenhuma outra base intelectual. Para se dominar, e continuar dominando, é
preciso deslocar o sentido de realidade. Pois o segredo do mando é combinar a
crença na própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros
anteriores. Não há quase necessidade de dizer que os mais subtis praticantes do
duplipensar são os que o inventaram e sabem que é um vasto sistema de fraude
mental.
Em nossa
sociedade, os que têm o melhor conhecimento do que sucede são também os que
estão mais longe de ver o mundo tal qual é. Em geral, quanto maior a
compreensão, maior a ilusão: quanto mais inteligente, menos ajuizado. Nítida
ilustração desta afirmativa é o fato da histeria de guerra aumentar de intensidade
à medida que se sobe na escala social.
Aqueles cuja
atitude em face da guerra é mais próxima da sensatez são povos submissos dos
territórios disputados. Para eles a guerra não passa de uma calamidade contínua
que se diverte a jogá-los de um lado para outro como um maremoto. É-Ihes
completamente indiferente saber quem está ganhando. Percebem que a mudança de
donos significa apenas que farão o mesmo trabalho que antes para os novos amos,
que os tratarão como os tratavam os antigos.
Os operários
ligeiramente mais favorecidos a que chamamos "proles" têm consciência
intermitente da guerra. Quando é necessário, são instigados e levados a frenesis
de ódio e medo, mas, entregues a si próprios, são capazes de esquecer, por
longos períodos, que a guerra está acontecendo.
É nas
fileiras do Partido, e acima de tudo do Partido Interno, que se encontra o
verdadeiro entusiasmo de guerra. Acreditam na conquista do mundo, com maior
firmeza, aqueles que a sabem impossível. Essa particularíssima amálgama de
opostos - sabedoria e ignorância, cinismo e fanatismo - é um dos sinais que distinguem
a sociedade oceânica. A ideologia oficial abunda em contradições mesmo onde não
há para elas qualquer razão prática.
Assim, o
Partido rejeita e vilifica qualquer princípio originalmente defendido pelo
movimento socialista, e no entanto o faz em nome do socialismo. Prega um desdém
pela classe operária de que não há exemplo há muitos séculos, e todavia veste
os militantes num uniforme que foi característico dos trabalhadores manuais e adotado
por essa razão. Mina sistematicamente a solidariedade da família, ao passado
que dá ao seu chefe um nome que é um apelo direto ao sentimento de lealdade
familiar. Até os nomes dos quatro Ministérios por que somos governados ostentam
uma espécie de impudência na sua deliberada subversão dos factos. O Ministério
da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade com as mentiras, o do Amor com a
tortura e o da Fartura com a fome. Essas contradições não são acidentais, nem
resultam de hipocrisia ordinária: são exercícios conscientes de duplipensar.
Pois é só reconciliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder.
De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso
impedir para sempre a igualdade humana - se, como a chamamos, a Alta deve
conservar permanentemente sua posição - então a condição mental deve ser a de
insânia controlada.
Mas há outra questão que, até este momento,
não consideramos. E é esta: por que se deve impedir a igualdade humana?
Suponhamos que tenha sido bem descrita a mecânica do processo: qual é o motivo
desse vasto e bem calculado esforço para congelar a história num determinado
instante? Aqui chegamos ao segredo central. Como vimos, a mística do Partido e,
acima de tudo, do Partido Interno, depende do duplipensar. Mais fundo do que
isto, porém, há o motivo original, o instinto jamais posto em dúvida, que
primeiro levou à conquista do poder e gerou o duplipensar, a Polícia do
Pensamento, a guerra contínua e todo o restante equipamento necessário. Esse
motivo realmente consiste...
Cada um
destes superestados é tão vasto que possui em seu próprio território quase
todos os materiais de que necessita. Na medida em que a guerra tem um objetivo
económico direto, é uma guerra pela mão-de-obra.(…) Todos os territórios disputados
contêm valiosos minerais, e alguns produzem importantes produtos vegetais, tais
como borracha, que nos climas mais frios é necessário sintetizar por métodos
relativamente caros. Acima de tudo, porém, contêm uma prodigiosa reserva de mão-de-obra
barata. (…) dispõe de massas de dezenas ou centenas de milhões de peões
diligentes e mal pagos.
(…) a
histeria guerreira é contínua e universal em todos os países, e actos tais como
estupros, pilhagens, matança de crianças e escravização de povoações inteiras,
e represálias contra prisioneiros que chegam a incluir a morte pela água
fervente e o enterro de seres vivos, são considerados normais, e até meritórios,
quando cometidos pelos amigos, e não pelo inimigo. Os motivos já parcialmente
presentes nas grandes guerras do início do século vinte tornaram-se, dominantes
e são agora reconhecidos conscientemente, e levados em consideração.
Desde que a
máquina surgiu, tornou-se claro a todos que sabiam raciocinar que desaparecera
em grande parte a necessidade do trabalho braçal do homem e, portanto, a da
desigualdade humana. Se a máquina fosse deliberadamente utilizada com esse
propósito, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença
poderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E na verdade, sem ter sido
usada com esse propósito, porém por uma espécie de processo automático -ao
produzir riqueza por vezes impossível de não distribuir - a máquina elevou
grandemente o padrão de vida do ser humano comum, num período de uns cinquenta anos,
ao fim do século dezanove e no começo do vinte.
Tornou-se
também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição - com efeito,
de certo modo era a destruição - de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que
todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com
w.c. e frigorífico, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais
flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a
riqueza não conferia distinção. Era
possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de
posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder
nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não
poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a
grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria
aprenderia a ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez isso acontecesse, mais
cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e
acabaria com ela.
De maneira
permanente, uma sociedade hierárquica só é possível com base na pobreza e na
ignorância.
Regressar ao
passado agrícola, como imaginaram alguns pensadores no começo do século vinte,
não era solução praticável. Entrava em conflito com a tendência para a
mecanização, que se tornara quase que instintiva em todo o mundo, e além disso,
qualquer país que permanecesse industrialmente atrasado ficaria indefeso
militarmente e estaria fadado a ser dominado, directa ou indirectamente, pelos
rivais mais progressistas.
Tampouco era
solução satisfatória manter as massas na miséria restringindo a produção de
bens. Isto aconteceu, em grande parte, durante a fase final do capitalismo,
mais ou menos entre 1920 e 1940. Permitiu-se que estagnasse a economia de
muitos países, a terra deixou de ser cultivada, não se investiu nos
equipamentos de base, grandes grupos da população foram impedidos de trabalhar
e mantidos no extremo da sobrevivência por meio de caridade estatal. Mas isto
também provocava debilidade militar, e sendo as privações infligidas
manifestamente desnecessárias, a revolta tornava-se inevitável. O problema era
manter em movimento as rodas da indústria sem aumentar a riqueza real do mundo.
Era preciso produzir bens, porém não distribui-los. E, na prática, a única
maneira de o realizar é pela guerra contínua.
O essencial da guerra é a destruição, não
necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra
é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas
profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar
as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo,
inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua
manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão-de-obra sem produzir nada
que se possa consumir.
Uma
Fortaleza Flutuante, por exemplo, contém trabalho suficiente para construir
várias centenas de navios cargueiros. Depois de algum tempo é desmantelada, por
obsoleta, sem ter trazido benefício material a ninguém, e com novo e enorme
esforço, constrói-se outra.
Em princípio, o esforço bélico é sempre planeado
de maneira a consumir qualquer excesso que possa existir depois de satisfeitas
as necessidades mínimas da população.
Na prática,
as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado é haver uma
escassez crônica de metade dos essenciais mas isto é considerado vantagem. É
uma política consciente manter perto do sofrimento até os grupos favorecidos
porquanto o estado geral de escassez aumenta a importância dos pequenos
privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro.
Pelos
padrões do início do século vinte, até mesmo um membro do Partido Interno leva
vida austera e laboriosa. Não obstante, os poucos luxos de que goza, o
apartamento espaçoso e bem mobiliado, a melhor qualidade da sua roupa, a
superioridade da sua comida, bebida e fumo, seus dois ou três criados, seu
automóvel ou helicóptero particular, colocam-no numa esfera diferente de um membro
do Partido Externo, que por sua vez tem vantagens semelhantes em comparação com
as massas submersas a que chamamos "proles".
A atmosfera
social é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo
diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de
estar em guerra e portanto em perigo, faz parecer natural a entrega de todo o
poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência.
Veremos que
a guerra não apenas realiza a necessária destruição como a efectua de maneira
psicologicamente aceitável. Em princípio, seria bastante simples gastar o
excesso de mão-de-obra construindo templos e pirâmides, cavando buracos e
tornando a enchê-los, ou mesmo produzindo grandes quantidades de mercadorias e
queimando-as. Mas isso só daria a base económica, mas não a emocional, de uma
sociedade hierárquica. Trata-se aqui não do moral das massas, cuja atitude não
tem importância, contanto que sejam mantidas no trabalho, mas do moral do
Partido.
Espera-se
que até mesmo o mais humilde membro do Partido seja competente, industrioso e
inteligente, dentro de estreitos limites. Porém é também necessário que seja um
fanático crédulo e ignorante, cujas reações principais sejam medo, ódio,
adulação e triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que tenha a
mentalidade apropriada ao estado de guerra. Não importa que de facto que haja
uma guerra e, como não é possível uma vitória decisiva, pouco importa que a
guerra vá bem ou mal. O que importa é que possa existir o estado de guerra.
A divisão
intelectual que o Partido exige dos seus membros, e que é mais fácil de obter
numa atmosfera de guerra, é agora quase universal, porém, quanto mais se sobe
nos quadros, mais nítida se torna. É precisamente no Partido Interno que a
histeria de guerra e o ódio ao inimigo são mais fortes. Na sua posição de
administrador, muitas vezes é necessário a um membro do Partido Interno saber
se esta ou aquela notícia de guerra é falsa, e muitas vezes, ele pode perceber
que a guerra inteira é uma fraude e que, ou não está sendo travada, ou está
sendo travada por objetivos diferentes dos declarados: mas essa consciência é facilmente
neutralizada pela técnica do duplipensar. Entrementes, nenhum membro do Partido
Interno hesita por um instante na sua crença mística de que a guerra é real,
que está fadada a terminar pela vitória, ficando, a Oceânia senhora
indisputável do mundo inteiro.
Todos os
membros do Partido Interno creem, como num artigo de fé, nessa vitória futura.
Será obtida quer pela aquisição gradual de território e, consequentemente,
acúmulo de esmagadora preponderância de força, quer pelo descobrimento de uma
nova arma irrespondível. A busca de novas armas prossegue sem cessar, e é uma
das poucas atividades restantes em que o espírito inventivo ou especulativo se
pode expandir.
Atualmente, na Oceania, a ciência quase cessou
de existir, no sentido antigo. Em Novilíngua não existe palavra para
"ciêncía". O método empírico de raciocínio, no qual se basearam todos
os desenvolvimentos científicos passados, se opõe aos princípios fundamentais
do Ingsoc. E mesmo o progresso tecnológico só se verifica quando os seus
produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para limitar a liberdade
humana.
Em todas as
artes úteis o mundo ou está parado ou retrocede. Os campos são cultivados com
arados de tração animal, enquanto os livros são escritos por máquinas. Mas nos
assuntos de importância vital - ou seja, a guerra e a espionagem policial -
ainda é incentivado o sistema empírico, ou pelo menos tolerado.
As duas
metas do Partido são conquistar toda a superfície da terra e extinguir de uma
vez para sempre qualquer possibilidade de pensamento independente.
Há,
portanto, dois grandes problemas que o Partido deve resolver. Um deles é
descobrir o que pensa outro ser humano, e o outro é matar várias centenas de
milhões de pessoas em alguns segundos, sem dar aviso prévio. É o assunto da
pesquisa científica que ainda subsiste. O cientista de hoje ou é uma mistura de
psicólogo e inquisidor, estudando com extraordinária minúcia o significado das
expressões faciais, dos gestos, e tons de voz, e verificando os efeitos
reveladores das drogas-daverdade, terapia de choque, hipnose e tortura física;
ou é quimico, físico ou biólogo só interessado pelos ramos da sua profissão
ligados à supressão da vida.
Nos vastos laboratórios do Ministério da Paz,
e nas estações experimentais ocultas nas florestas brasileiras ou no deserto
australiano, ou nas ilhas perdidas da Antártida, os grupos de peritos continuam
a sua missão, infatigáveis. Alguns ocupam-se, simplesmente, de planear a
logística de futuras guerras; outros de inventar maiores e ainda maiores
bombas-foguete, explosivos cada vez mais poderosos, blindagens mais e mais
resistentes; outros buscam novos gases, mais letais, ou venenos solúveis
capazes de ser produzidos em quantidades tais que destruam a vegetação de
continentes inteiros, ou culturas de germes maléficos imunizados contra todos
os anticorpos possíveis; outros se esforçam para produzir um veículo que abra caminho
sob a terra como um submarino por baixo de água, ou um aeroplano tão
independente da base como um navio de vela; outros ainda exploram
possibilidades mais remotas, tais como focalizar os raios do sol através de
lentes suspensas a milhares de quilómetros da terra, ou provocar terremotos e
maremotos artificiais pela alteração do calor no centro do planeta. Mas nenhum
desses projetos jamais se aproxima da realização.
O que é mais
notável é que as três já possuem, na bomba atômica, uma arma muito mais poderosa
do que as suas actuais pesquisas lhes permitirão descobrir. (…)
A bomba
atómica convenceu os grupos dominantes de todos os países de que mais algumas
bombas atómicas significariam o fim da sociedade organizada, e consequentemente
o do seu próprio poder.
A partir
daí, embora nunca se tenha chegado a selar, ou sequer sugerir, qualquer acordo,
suspenderam os lançamentos. Todas as potências continuam simplesmente a
produzir bombas atómicas e a armazená-las para algum momento decisivo, que
todas esperam vir a ter, mais tarde ou mais cedo.
Atrás disto
tudo há um fato que se não menciona jamais em voz alta, mas que é tàcitamente
compreendido e usado como orientação: ou seja, o de que as condições de vida,
nos três super-estados, são mais ou menos as mesmas. Na Oceania, a filosofia
dominante é chamada Ingsoc, na Eurásia é chamada Neo-Bolchevismo, e na Lestásia
é conhecida por uma palavra chinesa em geral traduzida por Culto da Morte, mas
que se poderia melhor chamar Obliteração do Eu. O cidadão da Oceânia não pode
saber coisa alguma a respeito dos fundamentos das outras duas filosofias,
aprendendo porém a execrá-las como bárbaros ultrajes à moralidade e ao sentido
comum.
Na verdade, as três filosofias mal se
distinguem umas das outras, e os sistemas sociais de que são base não se
distinguem de modo algum. Por toda a parte há a mesma estrutura piramidal, a
mesma adoração de um chefe semi-divino, a mesma economia que existe para a
guerra contínua. Segue-se que os três super-estados não só não podem vencer um
ao outro, como não levariam vantagem se o fizessem. Ao contrário, enquanto
continuarem em conflitos, amparam-se uns aos outros, como três fuzis num
sarilho.
E, como é
praxe, os grupos dominantes das três potências ao mesmo tempo sabem e ignoram o
que estão fazendo. Dedicam a vida à conquista do mundo, mas também sabem que é
necessário continuar a guerra, sem fim e sem vitória.
Entrementes,
o fato de não haver perigo de conquista torna possível a negação da realidade (…)
No passado a
guerra era, quase por definição, algo que mais cedo ou mais tarde chegava ao
fim, em geral em inconfundível vitória ou derrota. Também no passado, a guerra
era um dos instrumentos pelo qual as sociedades humanas se mantinham em
contacto com a realidade física. Todos os governantes de todas as épocas têm
tentado impor aos seus adeptos uma falsa visão do mundo, mas não se podiam dar
ao luxo de encorajar nenhuma ilusão que tendesse a prejudicar a eficiência
militar. Considerando que a derrota significava a perda de independência, ou
outro resultado geralmente julgado indesejável, era preciso tomar sérias
precauções contra a derrota. Não se podia ignorar os fatos físicos.
Na
filosofia, religião, ética, ou política, dois e dois podem ser cinco, mas quando
se desenha um canhão ou um aeroplano, somam quatro. As nações ineficientes eram
vencidas, mais cedo ou mais tarde, e a luta pela eficiência era inimiga das
ilusões. Além do mais, para ser eficiente, era necessário saber aprender do
passado, o que exigia conhecimento bastante exacto do que sucedera nesse
passado. Naturalmente, os jornais e livros de História sempre foram parciais, e
coloridos por diversos pontos de vista, mas seria impossível a falsificação na
escala hoje praticada.
A guerra assegurava
solidamente a lucidez e no que toca às classes dominantes, talvez até mais do
que tudo o resto. Quando as guerras se ganhavam ou perdiam nenhuma classe
dominante se furtava de todo à responsabilidade.
Quando a
guerra é contínua, deixa também de ser perigosa, desaparecem os imperativos militares.
O progresso técnico pode cessar e os factos mais palpáveis podem ser negados ou
desprezados. Como vimos, as pesquisas que poderiam ser chamadas científicas são
ainda levadas a cabo, com finalidades bélicas, mas são, em essência, um sonho
vão, e não importa que não dêem o menor resultado. A eficiência não é mais necessária,
nem mesmo a eficiência militar.
A realidade
só exerce a sua pressão através das necessidades da vida quotidiana - comer e
beber, morar e vestir, evitar engolir veneno, cair de janelas do último andar,
e coisas semelhantes. Entre a vida e a morte, e entre o prazer físico e a dor
física, ainda há uma distinção, mas é só o que subsiste. Sem contacto com o
mundo externo e com o passado, o cidadão da Oceania é como um homem no espaço
interestelar, que não tem meios de saber se está com a cabeça para baixo ou
para cima.
(…)A julgar
pelos padrões das guerras passadas, a guerra de hoje é, portanto, uma
impostura. É como os combates entre certos ruminantes, cujos chifres são
dispostos em ângulo tal que não se podem ferir um ao outro. Entretanto, apesar
de irreal, ela tem sentido. Devora os excedentes dos artigos de consumo, e
ajuda a conservar a atmosfera mental especial que uma sociedade hierárquica
exige.
A guerra,
como veremos, é agora assunto puramente interno. No passado, os grupos
dominantes de todos os países, não obstante pudessem reconhecer seu interesse
comum e, em consequência, limitassem o poder destruidor da guerra, de facto
combatiam, e o vencedor sempre saqueava o vencido. Em nossos dias, eles não se
combatem uns aos outros. A guerra é travada, pelos grupos dominantes, contra os
seus próprios súbditos, e o seu objetivo não é conquistar territórios, nem impedir
que os outros o façam, mas manter intacta a estrutura da sociedade.
Daí, o se
haver tornado equívoca a própria palavra "guerra." Seria provavelmente
correcto dizer que a guerra deixou de existir ao se tornar contínua. A pressão
que exerceu sobre os seres humanos entre a Idade Neolítica e o começo do século
XX desapareceu e foi substituída por algo bem diferente. O efeito seria mais ou
menos o mesmo se os três super-Estados (Oceânia, Eurásia, Lestásia), ao invés
de se guerrearem, concordassem em viver em paz perpétua, cada qual inviolado
dentro das suas fronteiras. Pois nesse caso ainda seria um universo contido em
si próprio, para sempre livre da influência moderadora do perigo externo. Uma
paz verdadeiramente permanente seria o mesmo que a guerra permanente. Este -
embora a vasta maioria dos membros do Partido só o compreendam num sentido mais
raso - é o significado profundo do lema do Partido: Guerra é Paz.
Havia
verdade e havia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à
verdade mesmo contra o mundo todo. (…)"A sanidade mental não é questão de
estatística"
Fitando a
mulher na sua atitude característica, os braços grossos alcançando o varal, as
ancas muito salientes, fortes, como as de uma égua, ele achou, pela primeira
vez, que ela era bonita. Antes, nunca lhe havia ocorrido que pudesse ser belo o
corpo de uma mulher de cinquenta anos, ampliado a monstruosas dimensões pelos
partos sucessivos, depois enrijada, calejada pelo trabalho até ficar grosseira
como um nabo muito maduro. Mas era, e afinal, pensou ele, por que não? O corpo
sólido, sem contornos, como um bloco de granito, e a pele vermelha arrepiada,
representavam o mesmo, em relação ao corpo de Júlia, que o fruto de uma rosa
brava junto à rosa de jardim. Por que seria o fruto considerado inferior à
flor?
(…)Tivera a
sua floração momentânea, um ano talvez, de beleza de rosa brava, e depois,
inchara de repente, como um fruto fertilizado, tornando-se dura, vermelha e
rústica, e a sua vida fora apenas lavar, esfregar, remendar, cozinhar, varrer,
polir, consertar, esfregar, lavar, primeiro para os filhos, depois para os
netos, durante trinta anos sem interrupção. E no fim ainda cantava….
Era curioso
pensar que o céu era o mesmo para todos... E o povo que vivia sob o céu era
também muito parecido - por toda a parte, em todo o mundo, centenas ou milhares
de milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros,
separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no entanto quase exactamente
iguais - gente que nunca aprendera a pensar mas guardava no coração, no ventre
e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo. Se esperança havia,
estava nos proles!
E poderia
ter a certeza de que, quando chegasse o momento, o mundo que construiriam não
lhe seria tão alheio, quanto o mundo do Partido? Sim, porque ao menos seria um
mundo de sanidade mental. Onde há igualdade, há sanidade. Mais cedo ou mais
tarde aconteceria: a força se transformaria em consciência. Os proles eram
imortais. Por fim chegaria o seu despertar. E até que isso acontecesse, nem que
levasse mil anos para acontecer, aguentariam vivos contra tudo, como os
pássaros, transmitindo de corpo a corpo a vitalidade que o Partido não possuía
e que não podia matar.
Os pássaros
cantavam, os proles cantavam, o Partido não cantava. No mundo inteiro (…)
(…) a figura sólida (mulher de um prol),
invencível, que o trabalho e os partos sucessivos haviam tornado monstruosa, trabalhando
desde o nascer até morrer, e sempre cantando. Daqueles corpos robustos viria um
dia uma raça de seres conscientes. O futuro era deles. Mas era possível participar
desse futuro mantendo o espírito vivo como eles mantinham o corpo, e passar
adiante a doutrina secreta de que dois e dois são quatro.
(…)Nunca,
por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia
desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor
física. Em face da dor não há heróis.
O passado existe concretamente, no
espaço? Existe em alguma parte um mundo de objetos sólidos, onde o passado
ainda acontece?
- Não.
- Então
onde é que existe o passado, se é que existe?
- Nos registos.
Está escrito.
- Nos registros. E em que mais?
- Na
memória. Na memória dos homens.
- Na memória. Muito bem. Nós, o
Partido, controlamos todos os registros, e controlamos todas as memórias. Nesse
caso controlamos passado, não é verdade?
- Mas como podes impedir que a gente se lembre
das coisas? É involuntário. Está fora do indivíduo. Como podes controlar a
memória?
- Foste tu que não a controlaste. Por
isso estás aqui. Estás aqui porque fracassaste em humildade, em disciplina. Não
queres fazer o acto de submissão que é o preço da sanidade. Preferiste ser
lunático, minoria de um. Só a mente disciplinada pode enxergar a realidade.
Crês que a realidade é algo objetivo, externa, que existe de per si. Acreditas
também que é evidente a natureza da realidade. Quando te iludes, e pensas
enxergar algo, julgas que todo mundo vê a mesma coisa. Mas eu digo-te, a
realidade não é externa. A realidade só existe no espírito, e em nenhuma outra
parte. Não na mente do indivíduo, que pode se enganar, e que logo perece. Só na
mente do Partido, que é coletivo e imortal. O que quer que o Partido afirme que
é verdade é verdade. É impossível ver a realidade excepto pelos olhos do
Partido. É esse o facto que deves reaprender. Exige um ato de auto-destruição,
um esforço da vontade. Deves-te humilhar antes de recobrar o juízo.
Lembras-te de escreveres no teu
diário: "liberdade é a liberdade de escrever que dois e dois são
quatro?"
- Lembro.
O'Brien mostrou a mão esquerda, de
dorso para Winston, com o polegar oculto e mostrando quatro dedos. - Quantos
dedos tenho aqui, Winston?
- Quatro.
- E se o Partido disser que não são
quatro, mas cinco... quantos?
- Quatro. A palavra acabou numa exclamação de
dor. O ar rasgava-lhe os pulmões e saia de novo em profundos gemidos que nem
mesmo trincando os dentes ele conseguia calar.
O'Brien observava-o, com os quatro dedos ainda
estendidos. Puxou a alavanca. Desta vez a dor apenas diminuiu um pouco. -
Quantos dedos, Winston?
- Quatro. O
ponteiro (que media a dor) subiu a sessenta.
- Quantos dedos, Winston?
- Quatro!
Quatro! Não posso dizer outra coisa! Quatro! Os dedos estavam na sua frente
como colunas, enormes, e pareciam vibrar, mas não havia dúvida de que eram
quatro.
- Quantos dedos, Winston?
- Quatro!
Pára, pára! Como podes continuar a puxar a alavanca? Quatro! Quatro!
-
Quantos dedos, Winston?
- Cinco!
Cinco! Cinco!
- Não, Winston. Assim não adianta.
Estás mentindo. Ainda achas que são quatro. Quantos dedos, por favor?
- Quatro!
Cinco! Quatro! O que quiseres. Mas pára, pára a dor!
- Aprendes devagar, Winston, disse
O'Brien, gentilmente.
- Que posso
fazer? - choramingou. - Como posso deixar de ver o que está diante dos meus
olhos? Dois e dois são quatro.
- Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às
vezes são três. As vezes são as três coisas ao mesmo tempo. Deves fazer maior
esforço. Não é fácil recobrar a razão.
- Outra vez - disse O'Brien. A dor percorreu o corpo de Winston.
A agulha devia ter atingido setenta, ou setenta e cinco. Desta vez ele fechara
os olhos. Sabia que os dedos ainda estavam ali e que ainda eram quatro. A única
coisa que importava era continuar vivo até passar o espasmo. Deixou de perceber
se chorava ou não. A dor tornou a diminuir. Ele abriu os olhos. O'Brien puxara
a alavanca.
- Quantos dedos, Winston?
- Quatro.
Imagino que sejam quatro. Veria cinco, se pudesse. Estou tentando ver cinco.
- Que desejas? Convencer-me de que vês cinco,
ou de facto vê-los?
- Vê-los de
fato.
- Outra vez.
O ponteiro devia ter ido a oitenta…noventa talvez. Winston só intermitentemente
podia se lembrar porque a dor acontecia. Atrás das pálpebras cerradas, uma
floresta de dedos parecia movimentar-se numa espécie de dança, entrando e
saindo, desaparecendo atrás dos outros e tornando a aparecer. Tentava contá-los,
mas não se lembrava porquê. Só sabia ser impossível contá-los, e que isto se
devia à misteriosa identidade entre o quatro e o cinco. A dor diminuiu de novo.
Quando abriu os olhos foi verificar que ainda via o mesmo. Inúmeros dedos, como
árvores movediças, corriam em todas as direções, cruzando e recruzando seu
campo de visão. Tornou a fechar os olhos.
- Quantos
dedos estou a mostrar, Winston?
- Não sei.
Não sei. Matas-me, se me infligires dor outra vez. Cinco, quatro, seis...
sinceramente, não sei. Está melhor.
(…) -Sabes por que te trouxemos? Não é apenas
para te extrair uma confissão, nem para te punir. Queres que diga porque foste
trazido aqui? Para te curar! Para te salvar da loucura! Compreenderás, Winston,
que ninguém, dos que trazemos a este lugar, sai de nossas mãos sem estar
curado? Não estamos interessados nos estúpidos crimes que cometeste. O Partido
não se interessa pelo ato físico; é com os pensamentos que nos preocupamos. Não
apenas destruímos nossos inimigos; nós os modificamos. Compreendes o que quero
dizer?
Leste a história das perseguições
religiosas na Idade Média, quando havia a inquisição. Foi um fracasso. Tinha
por intuito erradicar a heresia, e por fim só conseguiu perpetuá-la. Por cada
herege queimado na fogueira, surgiram milhares de outros. Por quê? Porque a
inquisição matava os inimigos abertamente, e matava-os quando ainda não se
haviam arrependido; com efeito, matava-os porque não se arrependiam. Os homens
morriam por se recusarem a abandonar as suas verdadeiras crenças. Naturalmente,
toda a glória pertencia à vítima e a vergonha ao Inquisidor que a queimava.
Mais tarde, no século vinte, houve os
chamados totalitários. Os nazistas alemães, e os comunistas russos. Os russos
perseguiram a heresia mais cruelmente que a inquisição. Imaginavam ter
aprendido com os erros do passado; sabiam, ao menos, que era preciso não fazer
mártires. Antes de exporem as suas vítimas ao julgamento público, procuravam
destruir-lhes deliberadamente a dignidade. Abatiam-nos pela tortura e a
solidão, até se transformarem em desprezíveis réprobos, confessando o que lhes
fosse posto na boca, cobrindo-se de infâmia, acusando-se e abrigando-se atrás
dos outros, choramingando misericórdia. E no entanto, apenas alguns anos mais
tarde, a mesma coisa acontecia de novo. Os mortos haviam-se transformado em
mártires, e fora esquecida a sua degradação. Mais uma vez, por quê? Em primeiro
lugar, porque as confissões que haviam feito eram obviamente extorquidas e
falsas.
Nós não cometemos erros desse gênero.
Todas as confissões feitas aqui são verdadeiras. Nós as tornamos verdadeiras.
E, acima de tudo, não permitimos que os mortos se levantem contra nós. Deves
deixar de pensar que a posteridade te reivindicará, Winston. A posteridade
jamais ouvirá falar de ti. Serás totalmente eliminado da história. Havemos de
te transformar em gás e te soltar na estratosfera. Nada restará de ti: nem um
nome num registo, nenhuma lembrança na mente. Serás aniquilado no passado como
no futuro. Não terás existido nunca.
Então por
que se dá ao trabalho de me torturar? pensou Winston, num momento de amargura.
- És uma falha na urdidura, Winston.
És uma nódoa que precisa ser limpa. Não acabei de te dizer que somos diferentes
dos promotores do passado? Não nos contentamos com a obediência negativa, nem
mesmo com a mais abjecta submissão. Quando finalmente te renderes a nós, deverá
ser por tua livre e espontânea vontade. Não destruímos o herege porque nos
resista; enquanto nos resiste, nunca o destruímos. Convertemo-lo, capturamos-lhe
a mente, damos-lhe nova forma. Nele queimamos todo o mal e toda a alucinação;
trazemo-lo para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, de corpo e
alma. Tornamo-lo um dos nossos antes de matá-lo. É-nos intolerável que exista
no mundo um pensamento erróneo, por mais secreto e inerme que seja. Nem mesmo
no instante da morte podemos admitir um desvio. No passado, o herege caminhava
para a fogueira ainda herético, proclamando sua heresia, nela se glorificando.
Até a vítima dos expurgos russos conseguia levar a rebelião selada no crânio,
enquanto ia pelo corredor à espera do tiro. Mas nós tornamos perfeito o cérebro
do individuo antes de matá-lo. A ordem dos antigos despotismos era "tu não
farás." Os totalitários -mudaram para "tu farás". Nossa ordem é
"tu és." Ninguém, dos que trazemos a este lugar, se volta contra nós.
Não imagines que te salvarás,
Winston, por mais completamente que te rendas. Quem se desvia uma vez não é
nunca poupado. E mesmo que resolvamos permitir que vivas até ao fim normal da
tua vida, não nos escaparás. O que acontece aqui dura para sempre. Compreende
isso, antecipadamente. Havemos de te esmagar até ao ponto de onde não se volta.
Vão-te acontecer coisas das quais não te poderias recuperar nem que vivesses
mil anos. Nunca mais poderás sentir sensações humanas comuns. Tudo estará morto
dentro de ti. Nunca mais serás capaz de amor, ou amizade, ou alegria de viver,
riso, curiosidade, coragem, ou integridade. Serás oco. Havemos de te espremer, de
te deixar vazio, e então saberemos como te encher.
(…)Que o
Partido não buscava o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria.
Que procurava o poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e
covardes que não podiam suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que
deviam ser dominados e sistematicamente defraudados por outros, mais fortes que
eles. Que para o gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que,
para a grande maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno
guardião dos fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse
reinar, sacrificando sua própria felicidade à felicidade alheia.
O Partido procura o poder por amor ao
poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no
poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no
poder, poder puro. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque
sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se
assemelhavam connosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os
comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a
coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem,
ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a
esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres.
Nós não somos assim.
Sabemos que ninguém jamais toma o poder
com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se
estabelece uma ditadura com o fito de salvaguardar uma revolução; faz-se a
revolução para estabelecer a ditadura. O objetivo da perseguição é a
perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder.
Agora começas a me compreender? (…)Estás a pensar que falo do poder, e no
entanto não consigo deter a deterioração do meu próprio corpo. Não podes
compreender que o indivíduo é apenas uma célula? O cansaço da célula é o vigor
do organismo. Acaso morres quando aparas as unhas? Afastando-se da cama e
pôs-se a passear de um lado para outro, com a mão na algibeira. - Somos os
sacerdotes do poder - disse. - Deus é poder. Mas no momento, para ti, poder é
apenas uma palavra. É tempo de teres uma ideia do que significa poder.
A primeira coisa que deves entender é
que o poder é coletivo. O indivíduo só tem poder na medida em que cessa de ser
indivíduo. Conheces o lema do Partido: "Liberdade é Escravidão." Já
te ocorreu que é reversível? Escravidão é liberdade. Sozinho, livre, o ser
humano é sempre derrotado. Assim deve ser, porque todo ser humano está
condenado a morrer, que é o maior dos fracassos. Mas se puder realizar uma
submissão completa, total, se puder fugir à sua identidade, se puder fundir-se
no Partido então ele é o Partido, e é omnipotente e imortal.
A segunda coisa que deves entender é que poder
é o poder sobre todos os entes humanos. Sobre o corpo mas, acima de tudo, sobre
a mente. O poder sobre a matéria - realidade externa, como a chamarias -não é
importante. E o nosso poder sobre a matéria já é absoluto.
- Mas como
podes controlar a matéria? - explodiu. - Não consegues nem dominar o clima nem
a lei da gravidade. E há a doença, a morte, a dor... O'Brien calou-o com um
gesto.
- Controlamos a matéria porque controlamos a
mente. A realidade está dentro da cabeça(…)
- O verdadeiro poder, o poder pelo
qual temos de lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas sobre os
homens.
- Como é que um homem afirma o seu
poder sobre outro?
- Fazendo-o sofrer.
- Exactamente. Fazendo-o sofrer. A
obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza de que ele
obedece à tua vontade e não à dele? O poder reside em infligir dor e
humilhação. O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a
juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo
estamos criando? É exactamente o contrário das estúpidas utopias hedonísticas
que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento,
um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais
impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso
no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor
ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras
emoções além do medo, fúria, triunfo e auto-degradação. Destruiremos tudo mais
- tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de
antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem,
entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no
amigo. Mas no futuro não haverá esposas nem amigos. As crianças serão tomadas
das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será
extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão
de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando
nisso. Não haverá lealdade, excepto lealdade ao Partido. Não haverá amor,
excepto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, excepto o riso de vitória sobre
o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos
onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção
entre a beleza e a fealdade. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da
vida. Todos os prazeres concorrentes serão destruídos. Mas sempre... sempre
haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se
tornando mais subtil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a
sensação de pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa
bota pisando um rosto humano - para sempre. E lembra-te de que é para sempre. O
rosto estará sempre ali para ser pisado. O herege, o inimigo da sociedade, ali
estará sempre, para ser sempre derrotado e humilhado. Tudo que sofreste desde
que estás em nossas mãos - tudo continuará, e pior. A espionagem, as traições,
as prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimentos jamais cessarão.
Será tanto um mundo de terror quanto de triunfo. Quanto mais poderoso o
Partido, menos tolerante: mais débil a oposição ,mais rígido o despotismo.
Goldstein e as suas heresias viverão sempre. Todo o dia, a todo momento, serão
derrotados, desacreditados, ridicularizados, cuspidos - e no entanto sempre
sobreviverão. Este drama que representei contigo durante sete anos será representado
inúmeras vezes, geração após geração, sempre em formas mais subtis. Sempre
teremos aqui o herege à nossa mercê, gritando de dor, quebrado, desprezível - e
no fim completamente arrependido, salvo de si próprio, rastejando aos nossos
pés por sua própria vontade. É esse o mundo que estamos preparando, um mundo de
vitória após vitória, de triunfo sobre triunfo: infinda pressão, pressão sobre
o nervo do poder. Vejo que começas a perceber o que será o mundo. Mas no fim
farás mais do que compreender. Tu o aceitarás, aplaudirás, farás parte dele.
Winston recobrara-se o suficiente para falar.
- Não podes! - disse, debilmente.
- Que queres dizer com isso?
- Não podes
criar um mundo como o que descreveste. É um sonho. É impossível. - Por quê?
- É impossível fundar uma civilização sobre o medo, o ódio e
a crueldade. Nunca poderia durar.
- Por que não?
- Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia.
-Tolice. Tens a impressão de que o
ódio cansa mais do que o amor. Por que cansaria mais? E se cansasse, que
diferença faria? Suponhamos que resolvemos gastar-nos mais depressa. Suponhamos que
aceleramos o ritmo da vida humana, de modo que estejamos senis aos trinta anos.
Que diferença faria? Não podes compreender que a morte do indivíduo não é
morte? O Partido é imortal.
- Não sei...
não me importa. De algum modo, haverá de falhar. Algo vos derrotará. A vida vos
derrotará.
-Nós controlamos a vida, em todos os
seus níveis. Imaginas que existe uma coisa às vezes chamada natureza humana,
que se enfurece como o que fazemos e que se voltará contra nós. Mas nós criamos
a natureza humana. Os homens são infinitamente maleáveis. Ou talvez tenhas
voltado à velha ideia de que os proletários ou os escravos se levantarão e nos
derrubarão. Perde a esperança. São inermes, como os animais. A humanidade é o
Partido. Os outros estão de fora... não contam.
- Não me importa. No fim haverão de vos
derrotar. Mais cedo ou mais tarde verão o que sois, e então vos estraçalharão.
- Vês algum sinal de que isso aconteça? Alguma
razão para que aconteça?
- Não. É o que acredito. Sei que falhareis. Há algo no
universo - não sei o que, um espírito, um princípio - que nunca podereis
vencer.
-Acreditas em Deus?
- Não.
Então o que é esse princípio que nos
derrotará?
-Não sei. O
espírito do Homem.
E tu consideras-te homem?
-Sim.
Se és homem, és o último homem. A tua
raça está extinta. Nós somos os herdeiros. Entendes que estás sozinho? Estás fora
da história, tu és não-existente. E tu consideras-te moralmente superior a nós,
com nossas mentiras e nossa crueldade?!
- Sim, eu me
considero superior.
(…)- Em si, a dor nunca é suficiente.
Há ocasiões em que o ser humano resiste à dor, mesmo sob risco de morte. Mas
para todos há algo insuportável - algo que não pode ser contemplado. A coragem
e a covardia nada têm com isso. Se estás caindo de um lugar alto, não é
covardia agarrares-te a uma corda. Se vens de águas profundas, não é covardia
encheres os pulmões de ar. É apenas um instinto que não pode ser desobedecido.
É o mesmo com as ratazanas. Para ti, são insuportáveis. São uma forma de
pressão que não podes aguentar, nem que queiras. Farás o que se te exige.
- Mas o que
é, o que é? Como fazê-lo se não sei o que é?
O'Brien apanhou a gaiola com as ratazanas e
trouxe-a para a mesa mais próxima. Colocou-a cuidadosamente sobre o feltro
verde. Eram ratazanas enormes. Tinham a idade em que ficam com o focinho
rombudo e o pelo pardo, em vez de cinzento.
- O rato
- disse O'Brien, dirigindo-se à plateia invisível - embora roedor, é carnívoro.
Bem o sabes. Ouviste falar das coisas que acontecem nos bairros pobres desta
cidade. Em algumas ruas, uma mulher não ousa deixar o filhinho em casa, por
cinco minutos que seja. É certo que os ratos o ataquem. Dentro de muitíssimo
pouco tempo devoram tudo, só deixam ossos. Também atacam pessoas doentes, e
moribundos. Demonstram espantosa inteligência, descobrindo quando um ser humano
está indefeso. O'Brien aproximou a gaiola. Estava a menos de um metro do rosto
de Winston.
- Apertei a primeira alavanca - disse
O'Brien. - Compreendes a construção desta gaiola. A máscara adapta-se à tua
cabeça, sem deixar saída. Quando eu apertar esta outra alavanca, a porta da
gaiola correrá. Os monstros famintos saltarão por ela como balas. Já viste um
rato pular no ar? Pularão sobre o teu rosto e começarão a devorá-lo. Às vezes,
atacam primeiro os olhos. Às vezes abrem caminho pelas bochechas e devoram a
língua. A gaiola estava mais próxima; cada vez mais.
Winston
ouviu uma série de guinchos agudos que pareciam vir de cima, de sobre sua
cabeça. Mas lutou furiosamente contra o pânico. Pensar, pensar, mesmo que lhe
restasse uma fração de segundo - pensar na única esperança. De repente o fedor
mofado dos brutos atingiu-lhe as narinas. Dentro dele houve uma violenta
convulsão de náusea, e quase perdeu os sentidos. Tudo enegrecera. Por um
instante, sentiu-se louco, um animal a gritar. Entretanto, saiu das trevas
trazendo uma ideia. Só havia um, um único meio de se salvar. Precisava colocar
outro ser humano, interpor o corpo de outro ser humano diante da gaiola. O
círculo da máscara era suficientemente grande para tapar a visão de tudo mais.
A porta de arame estava a alguns palmos do seu rosto. Os ratos sabiam o que ia
acontecer. Um deles dava pulos no ar, e o outro, um escamoso veterano dos
esgotos, se levantou, com as patas rosadas nas grades, fungando ferozmente.
Winston pôde ver os bigodes e os dentes amarelos. De novo o pânico negro o
possuiu. Estava cego, indefeso, insano.
- Um castigo comum na China imperial
- disse O'Brien, mais pedagogicamente do que nunca.
A máscara aproximava-se.
O arame tocou-lhe o rosto. E então... não, não era alívio, apenas esperança, um
minúsculo fragmento de esperança. Tarde demais, tarde demais talvez. Mas
compreendera de repente que no mundo inteiro só havia uma pessoa a quem
transferir seu castigo - um corpo que podia colocar diante dos ratos. E pôs-se
a berrar freneticamente, repetidamente:
- Faz isto com Júlia! Faz com Júlia! Comigo
não! Júlia! Não me importa o que faças a ela. Arranca-lhe a cara, desnuda-lhe
os ossos. Não comigo! Com Júlia! Comigo não! Estava caindo para trás,
vertiginosamente, afastando-se dos ratos. Ainda estava amarrado à cadeira, mas caíra
através do soalho, através das paredes do edifício, através da terra, dos
oceanos, da atmosfera, do espaço exterior, no vácuo entre as estrelas - sempre
longe, longe, longe dos ratos. Estava a uma distância de anos-luz, porém
O'Brien continuava de pé ao seu lado. Sentia ainda na face o toque frio do
arame. Mas dentro da escuridão que o envolvera ouviu outro estalido metálico, e
soube que a porta da gaiola se fechara, não se abrira.
(…)- Às
vezes, - disse ela – ameaçam-nos com uma coisa... com coisas que não se pode
aguentar, não se pode nem pensar. E então dizemos "Não faças isso comigo, faz
com outra pessoa, faz com Fulano e Sicrano." Mais tarde, talvez finjas que
se tratava apenas de um estratagema, de mandar que o fizessem a outro, e que
não era a sério. Mas não é verdade. Na hora em que acontece fala-mos a sério.
Pensamos que não há outra maneira de nos salvarmos; e dispomo-nos a salvar de
qualquer modo. Nós queremos que a coisa aconteça ao outro. Não importa que o
outro sofra. Só importamos nós. Só nós é que temos importância. (…)E depois
disso, já não se sente o mesmo pela outra pessoa.