Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba
muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de
vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz
de alegrar os deuses e os mortais.
Com efeito, como no instante em que surge no céu a brilhante
figura do sol, ou como quando, após um rígido inverno, retorna a primavera com
suas doces aragens e vemos todas as coisas tomarem logo um novo aspecto,
matizando-se de novas cores, contribuindo tudo para de certo modo rejuvenescer
a natureza, assim também, logo que me vistes, transformastes inteiramente as
vossas fisionomias. Bastou, pois, a minha simples presença para eu obter o que
valentes oradores mal teriam podido conseguir com um longo e longamente
meditado discurso: expulsar a tristeza de vossa alma.
Se, agora, fazeis questão de saber por que motivo me agrada
aparecer diante de vós com uma roupa tão extravagante, eu vo-lo direi em
seguida, se tiverdes a gentileza de me prestar atenção; não a atenção que
costumais prestar aos oradores sacros, mas a que prestais aos charlatães, aos
intrujões e aos bobos das ruas, numa palavra, a que o nosso Midas prestava ao
canto do deus Pã.
Para dizer a verdade, não nutro nenhuma simpatia pelos
sábios que consideram tolo e impudente o auto-elogio. Poderão julgar que seja
isso uma insensatez, mas deverão concordar que uma coisa muito decorosa é zelar
pelo próprio nome.
De fato, que mais poderia convir à Loucura do que ser o
arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios
louvores? Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma? Haverá,
talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não reconheço? De resto,
esta minha conduta me parece muito mais modesta do que a que costuma ter a
maior parte dos grandes e dos sábios do mundo. É que estes, calcando o pudor
aos pés, subornam a lisonja de um orador, ou a fantasia de um poeta e paga para
ouvir louvores, ou seja, puras mentiras. Mas o nosso homem vai-se pavoneando,
vai levantando a crista, enquanto aduladores impúdicos comparam com os deuses
aquela nulidade, apresentam-no, convencidos do contrário, como o modelo
perfeito de todas as virtudes, enfeitam uma gralha com penas de pavão, fazendo
do preto branco, transformando uma mosca num elefante. Assim, pois, sigo aquele
conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.
Não posso deixar, de manifestar um grande desprezo, não sei
se pela ingratidão ou pelo fingimento dos mortais. É certo que nutrem por mim
uma veneração muito grande e apreciam bastante as minhas boas ações; mas,
parece incrível, desde que o mundo é mundo, nunca houve um só homem que,
manifestando o reconhecimento, fizesse o elogio da Loucura.
Ingratos são para comigo esses homens que pertencendo embora
à minha clientela, se envergonham do meu nome e com ele injuriam os outros.
Não julgueis que estas minhas palavras são falsas como é
vulgar entre os oradores. Pois bem sabeis que quando eles proferem um discurso
que lhes custou trinta anos de trabalho, e por vezes trabalho alheio, juram
tê-lo escrito por prazer (…). Eu, não; sempre me foi grato dizer imediatamente
o que me vem à boca.
Vedes que estou imitando os retóricos do nosso tempo que se
julgam uns deuses pelo facto de serem bilingues como sanguessugas, e que julgam
preclaro imiscuir no discurso latino algumas palavras gregas, compor um mosaico
que nem sempre vem a propósito. À falta de palavras exóticas, vão buscar quatro
ou cinco fórmulas arcaicas aos pergaminhos pútridos, ofuscando com trevas os
olhos do leitor, para que assim os entendedores mais orgulhosamente se deleitem
e para que os ignorantes tanto mais admirem quanto menos compreendam. Pois é
bem certo que encontram prazer no que lhes é mais alheio e distante.
Sou filha do prazer e o amor livre presidiu ao meu
nascimento.
Nascida no meio de tantas delícias, não saudei a luz com o
pranto, como quase todos os homens: mal fui parida, comecei a rir gostosamente
na cara de minha mãe.
Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e
mais preciosa do que a vida? E quem, mais do que eu, contribui para a concepção
dos mortais?
Vejamos, os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão
próximos e afins dos deuses. Mostrai-me apenas um, dentre eles, que, mesmo
sendo mil vezes estóico, nunca tendo feito a barba, distintivo da sabedoria (se
bem que tal distintivo seja também comum aos bodes): precisará deixar o seu ar
cheio de orgulho, assumir uns ares de fidalgo, abandonar a sua moral austera e
inflexível, fazer asneiras e loucuras. Em suma, será forçoso que esse filósofo
se dirija a mim e se recomende, se quiser tornar-se pai.
E porque, segundo o meu costume, não hei-de vos falar mais
livremente? Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as
mãos, as orelhas, como partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses
e os homens? Ora, meus senhores, eu acho que não: o instrumento propagador do
género humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se lhe pode
dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte
sagrada de onde provêm os deuses e os mortais.
Quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes,
como costumam fazer em geral os filósofos, reflectisse bem nos incómodos que
acompanham essa condição? Qual é a mulher que se submeteria ao dever conjugal,
se todas conhecessem ou tivessem em mente as perigosas dores do parto e as
penas da educação? Se, portanto, deveis a vida ao matrimónio e o matrimónio à
Irreflexão, que é uma das minhas sequazes, avaliai quanto me deveis. Além
disso, uma mulher que já passou uma vez pelos espinhos do indissolúvel laço, e
que anseia por tornar a passar por eles (…) Mas, pouco amiga seria eu da verdade, se,
depois de vos provar que de mim tivestes o gérmen e o desenvolvimento da vida,
não vos demonstrasse ainda que provêm da minha liberalidade todos os bens que a
vida encerra.
Que seria a vida, que
poderia dizer-se da vida sem os prazeres da volúpia? Aplaudis, meus amigos? (…)
Podeis, pois, estar certos de que também os estóicos não desprezam a volúpia,
embora astutamente se finjam alheios a ela e a ultrajem com mil injúrias diante
do povo, a fim de que, amedrontando os outros, possam gozá-la mais frequentemente.
Dizei-me se há, acaso, um só dia na vida que não seja triste, desagradável, fastidioso,
enfadonho, aborrecido, quando não é animado pela volúpia, isto é pelo condimento
da loucura. Tomo Sófocles por testemunho irrefragável, nunca bastante louvado.
Oh! nunca se me fez tanta justiça! Diz ele, para minha honra e minha glória:
“Quanto maior for a sabedoria, menos feliz a vida.”
Todos sabem que a infância é a idade mais alegre e
agradável. Mas, que é que torna os meninos tão amados? Que é que nos leva a
beijá-los, abraçá-los e amá-los com tanta afeição? Ao ver esses pequenos
inocentes, até um inimigo se enternece e os socorre. Qual é a causa disso? É a
natureza, que, ao proceder com sabedoria, deu às crianças um certo ar de
loucura, para eles assim recompensarem os trabalhos e os cuidados dos que os
educam. Ama-se a primeira juventude que se sucede à infância, sente-se prazer
em ser-lhe útil, iniciá-la, socorrê-la. Mas, de quem recebe a meninice os seus
atrativos? De quem, se não de mim, que lhe concedo a graça de ser amalucada e,
por conseguinte, de gozar e de brincar? Quero que me chamem de mentirosa, se
não for verdade que os jovens mudam inteiramente de caráter logo que principiam
a ficar homens e, orientados pelas lições e pela experiência do mundo, entram
na infeliz carreira da sabedoria. Vemos, então, desvanecer-se aos poucos a sua beleza,
diminuir a sua vivacidade, desaparecerem aquela simplicidade e aquela candura
tão apreciadas. E acaba por extinguir-se neles o natural vigor. Por tudo isso,
observai, senhores, que, quanto mais o homem se afasta de mim, tanto menos goza
dos bens da vida, avançando de tal maneira nesse sentido que logo chega à
fastidiosa e incómoda velhice, tão insuportável para si como para os outros. E,
já que falámos de velhice, não fiqueis aborrecidos se por um momento chamo para
ela a vossa atenção. Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim, no fim dos
seus dias! Mas, tenho pena deles e estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades
poéticas socorrem piedosamente, com o divino segredo da metamorfose, os que
estão prestes a morrer. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da
sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo
meninos. De onde o provérbio: Os velhos
são duas vezes crianças. Perguntar-me-eis, sem dúvida, como o consigo. Da
seguinte forma: levo essas caducas cabeças(…) e faço-as beber a grandes goles a
água do Esquecimento. E é assim que dissipam insensivelmente as suas mágoas e
recuperam a juventude. Alegar-se-á, contudo, que deliram e enlouquecem: pois é
isso mesmo, justamente nisso consiste o tornar a ser criança. O delírio e a
loucura não serão, talvez, próprios das crianças? Que é que, a vosso ver, mais
agrada nas crianças? A falta de juízo. Um menino que falasse e agisse como um
adulto não seria um pequeno monstro? Pelo menos, não poderíamos deixar de
odiá-lo e de ter por ele um certo horror. Há muitos séculos, é trivial o
provérbio: Odeio o menino de saber
precoce. Quem, por outro lado, poderia fazer negócios ou ter relações com
um velho, se este aliasse a uma longa experiência todo o vigor do espírito e a
força do discernimento?
Mais vale que o velho delire, devendo-me a libertação de
todas as fastidiosas aflições que atormentam o sábio. Não sente o tédio da vida
que uma idade mais robusta suporta. Afirmo, pois, de acordo com esse
raciocínio, que a felicidade da velhice supera a da própria infância. Não se
pode negar que a infância é muito feliz; mas, nessa idade, não se tem o prazer
de tagarelar, de resmunga , como fazem os velhos.
Outra prova do meu confronto é a recíproca inclinação que se
nota nos velhos e nos meninos, e o instinto que os leva a manterem entre si
boas relações, porque “os deuses comprazem-se em unir semelhantes”
De fato, essas duas idades têm uma grande relação entre si,
e não vejo nelas outra diferença senão as rugas da velhice e o maior ou menor
número de anos. Quanto ao restante, a brancura dos cabelos, a falta dos dentes,
o abandono do corpo, o balbucio, a garrulice, as asneiras, a falta de memória,
a irreflexão, numa palavra, tudo coincide nas duas idades. Enfim, quanto mais
entra na velhice, tanto mais se aproxima o homem da infância, a tal ponto que
sai deste mundo como as crianças, sem desejar a vida e sem temer a morte.
Se os mortais se abstivessem totalmente da sabedoria e só
quisessem viver submetidos às minhas leis, é certo que não conheceriam a
velhice e gozariam, felizes, de uma perpétua juventude. Observai, por favor,
aquelas fisionomias sombrias, aqueles rostos torturados e sem cor, mergulhados
na contemplação da natureza ou em outras sérias e difíceis ocupações: parecem
envelhecidos antes de terminada a juventude, e isso porque um trabalho mental
assíduo, penoso, violento, profundo, faz com que aos poucos se esgotem os
espíritos e a seiva da vida. Reparai, agora, um pouco, como os meus tolos são
gordos, lúcidos e bem nutridos, ao ponto de parecerem verdadeiros porcos
acarnânios. Estes felizes mortais não sentiriam nenhum incômodo na velhice, se
nenhum contacto tivessem com os sábios. Infelizmente, porém, isso acontece.
Sofre assim a vida dos homens, porque eles não são perfeitos. Vê-se claramente
que o homem não nasceu para gozar aqui na terra de uma felicidade perfeita.
Tenho ainda em meu favor o importante testemunho de um famoso provérbio que
diz: Só a loucura tem a virtude de
prolongar a juventude, embora fugacíssima, e de retardar bastante a malfadada
velhice.
Se, portanto, concordais que não há nada mais precioso do
que a juventude e mais detestável do que a velhice, posso concluir que
reconheceis a dívida que tendes para comigo, sim, para comigo, pois que, para
vos tornar felizes, sei prolongar tamanho bem e retardar um mal tão grande.
Bem vedes com que providência a natureza, esta mãe produtora
do género humano, dispôs que em coisa alguma faltasse o condimento da loucura.
Segundo a definição dos estóicos o sábio é aquele que vive de acordo com as
regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar
ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem
se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das
paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de um
para vinte e quatro. Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da
cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão.
Depois, ainda não satisfeito com isso, Júpiter uniu à razão, que está sozinha,
duas fortíssimas paixões, que são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a
Ira, que domina o coração, centro das vísceras e fonte da vida; a outra é a
Luxúria, que estende o seu império desde a mais tenra juventude até à idade
mais madura. Quanto vale a razão contra esses dois tiranos, demonstra-o bem a
conduta normal dos homens. A razão grita contra os vícios a ponto de ficar
rouca, e é tudo o que pode fazer; mas os vícios riem-se de sua rainha, gritam
ainda mais forte e mais imperiosamente do que ela, até que a pobre soberana,
não tendo mais fôlego, é constrangida a ceder e a concordar com os seus rivais.
De resto, tendo o homem nascido para o manejo e a
administração dos negócios, era justo aumentar um pouco, para esse fim, a sua
pequeníssima dose de razão, mas, querendo Júpiter prevenir melhor esse
inconveniente, achou de me consultar a respeito, como, aliás, costuma fazer
quanto ao resto. Dei-lhe uma opinião verdadeiramente digna de mim: — Senhor, —
disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a mulher um animal
inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo
familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e
triste do mesmo. Quando Platão pareceu hesitar se devia incluir a mulher no género
dos animais racionais ou no dos brutos, não quis com isso significar que a
mulher fosse um verdadeiro bicho, mas pretendeu, ao contrário, exprimir com
essa dúvida a imensa dose de loucura do querido animal. Se, porventura, alguma
mulher meter na cabeça a ideia de passar por sábia, só fará mostrar-se
duplamente louca, procedendo mais ou menos como quem tentasse untar um boi,
malgrado seu, com o mesmo óleo com que costumam ungir-se os atletas. Acreditai-me,
pois, que todo aquele que, agindo contra a natureza, se cobre com o manto da
virtude, ou afecta uma falsa inclinação, não faz senão multiplicar os próprios
defeitos. E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre
macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto
é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente.
Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja
tolo ao ponto de se aborrecer comigo, pois também sou mulher, e sou a Loucura.
Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como
o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas,
espero que saibam agradecer-me o facto de eu as ter tornado mais felizes do que
os homens. Antes de tudo, têm elas o atrativo da beleza, que com razão preferem
a todas as outras coisas, pois é graças a esta que exercem uma absoluta tirania
mesmo sobre os mais bárbaros tiranos.
Sabereis de que provém aquele feio aspecto, aquela pele
híspida, aquela barba cerrada, que muitas vezes fazem parecer velho um homem
que se ache ainda na flor dos anos? Eu vo-lo direi: provém do maldito vício da
prudência, do qual são privadas as mulheres, que por isso conservam sempre a
frescura da face, a subtileza da voz, a maciez da carne, parecendo não acabar
nunca, para elas, a flor da juventude. Além disso, que outra preocupação têm as
mulheres, a não ser a de proporcionar aos homens o maior prazer possível? Não
será essa a única razão dos enfeites, do carmim, dos banhos, dos penteados, dos
perfumes, das essências aromáticas, e tantos outros artifícios e modas sempre
diferentes de vestir-se e disfarçar os defeitos, realçando a graça do rosto,
dos olhos, da cor? Quereis prova mais evidente de que só a loucura constitui o
ascendente das mulheres sobre os homens? Os homens tudo concedem às mulheres
por causa da volúpia, e, por conseguinte, é só com a loucura que as mulheres
agradam aos homens. Para confirmar ainda mais essa conclusão, basta refletir
nas tolices que se dizem, nas loucuras que se fazem com as mulheres, quando se
anseia por extinguir o fogo do amor. Já vos revelei, portanto, a fonte do
primeiro e supremo prazer da vida.
Mas há pessoas, especialmente os velhos, que são mais amigos
das bebidas do que das mulheres, e que encontram a suma volúpia no molhar da
garganta.
Deixo indecisa a
questão para alguns de saber se é possível um bom banquete sem mulheres. O que
é certo é que mesa alguma nos pode agradar sem o condimento da loucura. E tanto
isso é verdade que, quando nenhum dos convidados se julga maluco ou, pelo
menos, não finge sê-lo, é pago um bobo mercenário, ou convidado um ridículo
parasita que, com as suas piadas, suas brincadeiras, suas bobagens, expulse da
mesa o silêncio e a melancolia. Com efeito, que nos adiantaria encher o
estômago com tão sumptuosas e apetitosas iguarias, se os olhos, os ouvidos, o
espírito e o coração não se nutrissem também de diversões, risadas e agradáveis
conceitos? Ora, sou eu a inventora exclusiva de tais delícias.
Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais
abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que
proporcionam aos mortais. Sem alegria, a vida humana nem sequer merece o nome
de vida. Mergulharíamos na tristeza todos os nossos dias, se com essa espécie
de prazeres não dissipássemos o tédio que parece ter nascido connosco.
Talvez haja pessoas
que, à falta de tais passatempos, limitem toda a sua felicidade às relações com
verdadeiros amigos, repetindo sem cessar que a doçura de uma terna e fiel
amizade ultrapassa todos os outros prazeres, sendo tão necessária à vida como o
ar, a água, o fogo. — Tão agradável é a amizade, — acrescentam, — que afastá-la
do mundo eqüivaleria a afastar o sol; em suma, é ela tão honesta (vocábulo sem
significado para mim) que os próprios filósofos não hesitam em incluí-la entre
os principais bens da vida. — Mas, que se dirá, quando eu provar que sou também
a única fonte criadora de semelhante bem:
Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos
aos defeitos dos amigos, ao ponto de apreciar e admirar grandes vícios como
grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da loucura? Beijar, num
transporte, uma verruga da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e
pretender um pai que o filho zarolho tenha dois lindos olhos, não será isso uma
verdadeira loucura?
Bradem, pois, quando
quiserem ser uma grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é a única que
cria e conserva a amizade. Falo aqui unicamente dos homens, dos quais não há um
só que tenha nascido sem defeitos, e admitindo que, para nós, o homem melhor
seja o que tem menores vícios. É por isso que os sábios, pretendendo
divinizar-se com sua filosofia, ou não contraem nenhuma amizade ou tornam a sua
uma ligação áspera e desagradável. Além disso, só costumam gostar sinceramente
de raríssimas pessoas, de forma que nenhum escrúpulo me impede de asseverar que
não gostam absolutamente de ninguém, pela razão que vou apresentar.
Quase todos os homens estão afastados da sabedoria, e não há
nenhum que de qualquer modo não delire; ora, a semelhança é justamente o
principal fundamento de toda estreita amizade. Quando, porventura, nasce entre
esses austeros filósofos uma recíproca benevolência, decerto que não é sincera
nem durável. Todos eles são de humor volúvel e intratável, além de serem
penetrantes demais: têm olhos de lince para descobrir os defeitos dos amigos, e
de toupeira para ver os próprios (não vêm o peso que trazem às costas).
Portanto, como os homens estão sujeitos a muitas imperfeições (e podeis
acrescentar a estas a diferença de idade e de inclinações, os numerosos erros,
passos em falso e vicissitudes da vida humana), como poderia por um só instante
subsistir entre esses o laço da amizade?
Servi-vos do amor para julgar da amizade, que é mais ou
menos a mesma coisa. Não está Cupido, esse autor, esse pai de toda ternura,
privado de visão, que lhe faz confundir o belo com o feio? Da mesma maneira que
”o que não é belo, belo lhe parece” assim acontece convosco, achar belo o que
vos pertence, de forma que o velho é tão apaixonado por sua velha quanto a
criança por sua boneca. Essas coisas se verificam em toda parte, mas em toda
parte são motivo de riso. Pois são justamente essas coisas ridículas que formam
o principal laço da sociedade e que, mais do que tudo, contribuem para a
alegria da vida.
O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão
dizemos do matrimónio. Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço
que só pode ser dissolvido pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não se
verificariam, ou coisas ainda piores do que o divórcio, se a união do homem com
a mulher não se apoiasse, não fosse alimentada pela adulação, pelas carícias,
pela complacência, pela volúpia, pela simulação, em suma, por todas as minhas
sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos os matrimónios, se o noivo
prudentemente investigasse a vida e os segredos de sua futura cara metade, que
lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da simplicidade! Ainda menos
numerosos seriam os matrimónios duráveis, se os maridos, por interesse, por
complacência ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas.
Costuma-se achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura
que torna o esposo querido da mulher, e a mulher do esposo, mantendo a paz
doméstica e a unidade da família. Corneia-se um marido? Toda a gente ri e o
chama de corno, enquanto o bom homem, todo atencioso, fica a consolar a
cara-metade, e a enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da mulher adúltera.
Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer
barulho, pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme
funesto e inútil?
Afinal de contas,
nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na vida, sem a
minha intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o
senhor o servo, nem a patroa a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o
amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro o hóspede, nem o senhorio o inquilino,
etc., se não se enganassem reciprocamente, não se adulassem, não fossem
prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura.
Dizei-me por obséquio: um homem que se odeia a si mesmo
poderá, acaso, amar alguém? Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso,
concordar com outro? Será capaz de inspirar alegria aos outros quem tem em si
mesmo a aflição e o tédio? Só um louco, mais louco ainda do que a própria
Loucura, admitireis que possa sustentar a afirmativa de tal opinião. Ora, se me
excluirdes da sociedade, não só o homem se tornará intolerável ao homem, como
também, toda vez que olhar para dentro de si, não poderá deixar de experimentar
o desgosto de ser o que é, de se achar aos próprios olhos imundo e disforme, e,
por conseguinte, de se odiar a si mesmo.
A natureza, que em muitas coisas é mais madrasta do que mãe,
imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma fatal inclinação no
sentido de cada qual não se contentar com o que tem, admirando e almejando o
que não possui.
Mais uma vez repito: se vos desgostais de vós mesmos,
persuadi-vos de que nada podereis fazer de belo, de gracioso, de decente.
Roubada à vida essa alma, languesce o orador em sua declamação, inspira piedade
o músico com suas notas e seu compasso, ver-se-á o cómico vaiado em seu papel,
provocarão o riso o poeta e as suas musas, o melhor pintor não conquistará
senão críticas e desprezo, morrerá de fome o médico com todas as suas receitas...
Portanto, é necessário que cada qual se lisonjeie e adule a si mesmo, fazendo a
si mesmo uma boa coleção de elogios, em lugar de ambicionar os de outrem.
(…)Finalmente, a felicidade consiste, sobretudo, em se
querer ser o que se é. Ora, só o divino amor-próprio pode conceder tamanho bem.
Em virtude do amor-próprio, cada qual está contente com seu aspecto, com seu
talento, com sua família, com seu emprego, com sua profissão, com seu país, de
forma que nem os irlandeses desejariam ser italianos, nem os trácios
atenienses, nem os citas habitantes das ilhas Fortunadas. Oh surpreendente
providência da natureza! Em meio a uma infinita variedade de coisas, ela soube
pôr tudo no mesmo nível. E, se não se mostrou avara na concessão de dons aos
seus filhos, mais pródiga se revelou ainda ao conceder-lhes o amor-próprio. Que
direi dos seus dons? É uma pergunta tola. Com efeito, não será o amor-próprio o
maior de todos os bens?
Que coisa se poderia imaginar de mais estúpido que a guerra?
Dois exércitos que se batem (sabe Deus por que motivo) e da sua animosidade
obtêm muito mais prejuízo do que vantagem.
Além disso, dizei-me: que serviço poderiam prestar os
sábios, quando os exércitos se estendem em ordem de combate e reboam no espaço
o rouco som das cornetas e o rufar dos tambores, ao passo que eles, definhados
pelo estudo e pela meditação, arrastam com dificuldade uma vida que se tornou
enferma pelo pouco sangue, frio e subtil, que lhes circula nas veias? São
necessários homens troncudos e grosseiros, robustos e audazes, mas de muito
pouco talento, sim, são necessárias justamente semelhantes máquinas para o
mister das armas.
Podereis dizer-me que a guerra exige grande inteligência.
Concordo convosco, mas somente quanto aos generais e feita a ressalva de que se
trata apenas de uma inteligência militar e que nenhuma relação tem com a sabedoria
filosófica. É por isso que os parasitas, os intrigantes, os ladrões, os
sicários, os rústicos, os estúpidos, os falidos e, em geral, toda a escória
social pode aspirar muito mais à imortalidade da guerra do que os filósofos que
vivem dia e noite absorvidos na contemplação.
Como, pois, poderiam esses sábios sustentar o ferro e o fogo
da guerra, se morrem de medo toda a vez que não se trata de combater apenas com
a língua?
E, depois de tudo quanto dissemos, será possível decantar a
célebre máxima de Platão, segundo a qual “as repúblicas seriam felizes se
governadas pelos filósofos ou se os príncipes filosofassem”? Tenho a honra de
vos dizer que a coisa é justamente o oposto. Se consultardes os historiadores,
verificareis, sem dúvida, que os príncipes mais nocivos à república foram os
que amaram as letras e a filosofia.
Os homens que se consagram ao estudo da ciência são, em
geral, infelicíssimos em tudo, sobretudo com os filhos. Suponho que isso
provenha de uma precaução da natureza, que dessa forma procura impedir que a
peste da sabedoria se difunda em excesso entre os mortais.
Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou
conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais convidados com
frívolas e importunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a
agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para
impedir que o povo se divirta.
Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem, a
tal ponto se mostra ele embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é
bom, nem para si, nem para o seu país, nem para os seus. Mostrando-se sempre
novo no mundo, em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos
cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de sentimentos e de maneiras.
Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos
tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda
opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, se
retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua
sabedoria.
Que virtude, que poder já reuniu, no recinto de uma cidade,
homens naturalmente rudes, indómitos e selvagens? Quem já pôde humanizar esses
ferozes animais? A adulação. (…) É sempre com semelhante puerilidades que se
faz comover a grande e estúpida besta que se chama povo.
Pode haver maior loucura que a de um candidato que adula suplicantemente
o povo para conquistar honras e que compra o seu favor à custa de liberalismo?
que a daquele que recebe servil e humildemente os aplausos dos mentecaptos?
daquele que fica lisonjeado com as aclamações populares? daquele que se deixa
carregar em triunfo, como uma estátua, para ser visto pelo povo, ou que é
efigiado em bronze no foro? A todas essas loucuras, acrescentai a da adoção dos
nomes e sobrenomes; acrescentai as honras divinas prestadas a um homem sem
mérito algum; acrescentai, finalmente, as cerimónias públicas levadas a efeito
para colocar no número dos deuses os mais celerados tiranos. Quem será capaz de
negar que não há coisa mais tola?
Não bastaria um
Demócrito para rir bastante disso. Mas, não será também verdade que a Loucura
foi a autora de todas as famosas proezas dos valorosos heróis que tantos
literatos eloquentes elevaram às estrelas?
É a Loucura que forma as cidades; graças a ela é que
subsistem os governos, a religião, os conselhos, os tribunais; e é mesmo lícito
asseverar que a vida humana não passa, afinal, de uma espécie de divertimento
da Loucura.
Mas, passemos, agora, a falar das artes. Quem se não a sede
de glória move o engenho dos mortais a instruir, desenvolver e transmitir
tantas ciências que passam por excelentes? Acharam esses homens, na verdade
bastante loucos, que não deviam poupar nem velas, nem suor, nem esforços de fadiga
para conquistar não sei que imortalidade, a qual não passa, em última análise,
de uma belíssima quimera. Deveis, pois, à Loucura as comodidades que hoje
gozais; o que é muito agradável, mas devido à tolice alheia.
Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu
desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente:
o sábio que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, ou o louco, que
nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque não o vê) podem demover
de qualquer empreendimento. O sábio absorve-se no estudo dos autores antigos;
mas, que proveito tira ele dessa constante leitura? Raros conceitos
espirituosos, alguns pensamentos requintados, algumas simples puerilidades —
eis todo o fruto de sua fadiga. O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de
tudo, arrostando todos os perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência.
Homero, embora cego, enxergava muito bem essas verdades: “O tolo — disse ele —
aprende à própria custa e só abre os olhos depois do facto”.
Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o
que deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem;
a outra é o medo, que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à acção.
Ora, é próprio da Loucura dirimir todas essas dificuldades. Raros são os que
sabem que, para fazer fortuna, é preciso não ter vergonha de nada e arriscar
tudo.
Quero observar-vos, além disso, que os que preferem a
prudência fundada no julgamento das coisas estão muito longe de possuírem a
verdadeira prudência. Todas as coisas humanas têm dois aspectos, duas caras
completamente opostas. Por isso é que, muitas vezes, o que à primeira vista
parece ser a morte, na realidade, observado com atenção, é a vida. E assim,
muitas vezes, o que parece ser a vida é a morte; o que parece belo é disforme;
o que parece rico é pobre; o que parece infame é glorioso; o que parece douto é
ignorante; o que parece robusto é fraco; o que parece nobre é ignóbil; o que
parece alegre é triste; o que parece favorável é contrário; o que parece amigo
é inimigo; o que parece salutar é nocivo…
Todos vós estais
convencidos, por exemplo, de que um rei, além de muito rico, é o senhor dos
seus súbditos. Mas, se ele tiver no peito um coração brutal, se for insaciável
na sua cobiça, se nunca se mostrar satisfeito com o que possui, não
concordareis comigo que é miserabilíssimo? Se ele se deixar transportar por
seus vícios e por suas paixões, não se tornará um dos escravos mais vis? O
mesmo se poderia dizer de tudo mais.
Se alguém se aproximasse de um cómico mascarado, no instante
em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara
para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena?
Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? O gesto
dele alterou de repente todas as aparências; ver-se-ia que a mulher era um
homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Destruir a
ilusão é destruir a arte; Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em
perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam
justamente com a troca das roupas e das fisionomias.
Toda a vida dos mortais não passa de uma comédia, na qual
todos procedem conforme a máscara que usam, todos representam o seu papel, até
que o contra-regra os mande sair de
cena. Mas aqui o mesmo actor representa diversos papeis, de tal modo que ora
aparece vestido de púrpura régia para reaparecer dentro dos trapos do escravo.
Tudo no mundo é disfarce, e no teatro igualmente.
Se algum sábio caído do céu surgisse entre nós e se pusesse
a gritar: “Não! Aquele que venerais como vosso deus e senhor não é sequer um homem,
porque é dominado pelo impulso do instinto animal; é um escravo dos mais abjcetos,
pois serve a tantos vis tiranos quantas são as suas paixões”, — se esse sábio,
dirigindo-se a alguém que chorasse a morte do pai, o exortasse a rir, dizendo-lhe
que esta vida terrestre não passa da imagem da morte e que, por conseguinte,
seu pai só fez cessar de morrer; se, enfurecendo-se com algum vaidoso soberbo
com brasão, o tratasse de ignóbil e de bastardo por estar totalmente afastado
da virtude, que é a única e exclusiva fonte da verdadeira nobreza; e, se dessa
maneira o nosso filósofo fosse falando de todas as outras coisas humanas,
pergunto eu que resultado obteria ele de suas declamações. Passaria, decerto,
para todos, por louco furioso. Portanto, ficai certos de que, assim como não há
maior estupidez do que querer passar por sábio fora do tempo, assim também não
há nada mais ridículo e imprudente do que uma prudência mal compreendida e
inoportuna.
Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas
presentes, que não obedece aos costumes. Pelo contrário, serás verdadeiramente
prudente, vendo que és mortal, não querendo, convivendo ou errando de boa
vontade com a universalidade dos homens.
E não será esta — indagam os sábios — outra espécie de
loucura? — Quem o nega? Que me concedam, porém, que é essa a única maneira de
cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo.
Devo falar? Devo
calar-me? E porque devo calar-me, se tudo o que quero dizer é mais verdadeiro
do que a própria verdade? Vinde, pois, por um instante, oh filhas de Júpiter,
pois quero provar que essa sabedoria tão gabada e que enfaticamente se chama o
baluarte da felicidade, só é acessível aos que são orientados pela Loucura.
Antes de mais nada,
sustento que, em geral, as paixões são reguladas pela Loucura. Com efeito, que
é que distingue o sábio do louco? Não será, talvez, o facto do louco se guiar
em tudo pelas paixões, e o sábio pelo raciocínio?
Que espécie de homem é um estóico? Quem poderá deixar de
evitá-lo como a um monstro, de temê-lo como um fantasma? Eis o retrato fiel de
um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a
piedade não impressionam absolutamente o seu coração duro como o diamante; nada
lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima
exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e julga-se o
único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só
ele é tudo, e o mais interessante é que é o único a se julgar assim. Sem nenhum
escrúpulo, chega a insultar os deuses e a condenar como verdadeira loucura tudo
o que se faz no mundo, ridicularizando todas as coisas. Vede o belo quadro
desse animal que nos apresentam como o modelo acabado da sabedoria.
Dizei-me, por favor: se a questão pudesse ser posta a votos,
que cidade desejaria semelhante magistrado? Que exército reclamaria um tal
general? Quem o convidaria à sua mesa? Estou igualmente convencida de que não
acharia, sequer, uma mulher ou servo que quisessem e pudessem suportá-lo. E
quem, ao contrário, não preferiria um homem qualquer, tirado da massa dos
homens estúpidos; que, embora estúpido, soubesse mandar ou obedecer aos
estúpidos, fazendo-se amar por todos; que, sobretudo, fosse complacente para
com a mulher, bom para os amigos, alegre na mesa, sociável com todos os que
convivesse; que, finalmente, não se achasse estranho a tudo o que é próprio da
humanidade? Mas, para falar a verdade, chego a ter nojo de falar dessa espécie
de sábios.
Quando se reflete atentamtente sobre o género humano, e
quando se observam como de uma alta torre, todas as calamidades a que está
sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido.
Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o
nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância!
Quantos labores de juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade
da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e
variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incómodos se
encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel.
Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem
causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os
tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.?
Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão
grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer
em tão horrível vale de misérias.
Quais foram os mais célebres desgostosos da vida que
procuraram espontaneamente a morte? Não foram, porventura, os amigos mais
próximos da sabedoria? Para não falar de Diógenes, Xenócrates, Catão, Cássio,
Bruto, lembro apenas o famoso Quironte, que preferiu a morte à imortalidade.
Já sei que logo
compreendereis quanto o mundo duraria pouco, se a sabedoria fosse comum entre
os mortais. Sou mesmo de opinião que, em breve, haveria necessidade de uma nova
argila e de um novo Prometeu .
Mas, também nesse caso, sou eu quem providencia, mantendo os
homens na ignorância, na irreflexão, no esquecimento dos males passados e na
esperança de um futuro melhor. Misturando as minhas doçuras com as da volúpia,
eu amenizo o rigor do seu destino. Amam a vida não só quase todos os homens,
como até aqueles cujo fio da existência está prestes a ser cortado pela morte,
aqueles que devem deixar a vida depois de um bom número de anos. Eles não mostram
nenhuma pressa de passar para o número dos mortos.
Quanto mais motivos
têm os homens para viver contra a própria vontade, tanto menos se enojam da
vida, evidenciando que não acham excessivamente longos os seus dias. São um
efeito da minha bondade que vedes esses velhos alcançar a decrepitude e que de
humano só possuem a figura. Por isso é que são gagos, delirantes, desdentados,
encanecidos, calvos, ou, para descrevê-los melhor, com as palavras de Aristófanes,
enrugados, corcundas, sem queixo sem nenhum resto de virilidade.
E, não obstante, amam com transporte a vida. Não se limitam
esses velhotes insensatos aos prazeres da existência, mas esforçam-se ainda por
imitar, o quanto podem, a juventude: um enegrece os cabelos brancos; outro
esconde com uma cabeleira a cabeça calva; outro põe dentes tomados de
empréstimo de algum porco; outro se apaixona loucamente por uma moça e faz por
ela loucuras que envergonhariam um rapazinho. Estamos tão habituados a ver um
homem todo curvado ao peso dos anos e que já não enxerga a terra em que está
para descer, a vê-lo, casar-se com uma mocinha sem dote, e casar-se,
certamente, mais para as delícias de outros do que para o próprio uso, que isso
se torna quase um motivo de louvor.
Eis, porém, um quadro ainda mais divertido: aquelas velhas
apaixonadas, aqueles cadáveres semivivos e já estão fedendo à carniça, ainda
sentem arder o coração. Lascivas como cadelas no cio, só respiram uma porca
sensualidade e dizem descaradamente que sem volúpia a vida não vale nada. Essas
velhas cabras ainda fazem o amor, costumam remunerar com generosamente a
repugnância que causam. Então, mais do que nunca, untam assiduamente o rosto, passam a vida
diante do espelho, arrancam fios brancos de barba, ostentam dois seios flácidos
e enrugados, com trémulo e langoroso
ganido solicitam o desejo, bebem à grande, intrometem-se nas danças das moças,
escrevem cartas amorosas, — eis os meios que essas velhas raposas empregam para
dar coragem aos seus custosos campeões. Enquanto isso, a sociedade exclama: —
Que velhas malucas! Que velhas malucas! — Mas, se a sociedade tem razão, elas
se riem e, imersas nos prazeres, aproveitam a felicidade que lhes proporciono.
Eu desejaria que
esses censores indiscretos soubessem dizer-me o que será mais estúpido: viver
alegre e satisfeito, ou eternamente desesperado até se enforcar com uma corda.
Poderão dizer-me que é uma verdadeira infâmia a vida desses velhos e dessas
velhas. Não o nego; mas, que importa isso aos meus loucos? Ou são inteiramente
insensíveis à desonra, ou então, quando a sentem, sufocam facilmente o remorso.
Os meus bons e fiéis súbditos têm uma filosofia especial,
que lhes faz distinguir muito bem os males imaginários dos males reais. Cai-vos
uma pedra na cabeça? Oh! isso, sim, é na realidade um mal! Mas, a desonra, a
infâmia, as censuras, as maldições só nos fazem mal quando queremos sentir:
desde que não pensemos nisso, deixam de ser um mal. Que mal pode fazer o que
murmura a sociedade, quando é certo que intimamente vos aplaudis?
Ora, somente eu tenho a virtude de sublimar os homens a esse
alto grau de perfeição, e é esse um dos meus maiores predicados. Parece-me,
contudo, ouvir alguns filósofos dizerem que uma das maiores desgraças para um
homem consiste em ficar louco, em viver no erro, na ilusão e na ignorância. Oh!
como estão redondamente enganados! Respondo-lhes, ao contrário, que é
justamente nisso que consiste ser homem. Confesso-vos que não sei explicar como
podem tratar de infelizes os meus loucos, sendo a loucura, como é, património
universal da humanidade, e quando todos os mortais nascem, educam-se e se
conformam com ela. Parece-me bastante ridículo lastimar um ser que se acha no
seu estado normal.
Considerareis deplorável o fato do homem não ter asas para
voar como os pássaros, ou quatro pés como os quadrúpedes, ou a fronte armada de
chifres como o touro? Lamentareis a sorte de um belo cavalo, pelo fato de não
ter aprendido gramática ou de não comer bem? Deplorareis um touro, pelo fato de
não ser adestrado na palestra? Portanto, assim como o cavalo não é infeliz por
ignorar a gramática, assim também não o é o louco, pois a loucura é natural no
homem.
Mas, os subtis
disputadores meus antagonistas continuam a perseguir-me com novos sofismas.
Dentre todos os animais — dizem eles — só o homem goza do privilégio de
aprender as artes e as ciências, a fim de suprir com os seus conhecimentos às
lacunas da natureza
(…)muito longe de
contribuírem para essa felicidade que se pretende apresentar como razão de sua
descoberta, as ciências são, ao contrário, extremamente nocivas. Digamos, pois,
francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com todas as
outras pestes da vida humana, tendo sido inventadas pelos mesmos espíritos que deram
origem a todos os males, isto é, pelos demónios, que por final tiraram da
ciência o seu nome. Nada disso se conhecia no século de ouro, em que, sem
método, sem regra, sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela
natureza e pelo próprio instinto. Com efeito, que utilidade teria, naquele
tempo, a gramática? Havia apenas a linguagem, e, ainda assim, só era falada
para exprimir o pensamento. Não havia necessidade de lógica, porque, tendo
todos os mesmos raciocínios, as divergências de opinião não provocavam
discussão alguma. Não se conhecia a retórica naquela idade pacífica, em que não
havia nem processos, nem conflitos, nem discursos. Nessa época, os legisladores
eram inúteis, porque, reinando os bons costumes, não havia necessidade de leis.
Além disso, aqueles mortais eram religiosíssimos, motivo por que não ansiavam
por investigar com ímpia curiosidade os segredos da natureza. Convencidos de
que a um pequeno insecto como o homem não é lícito ultrapassar os estreitos
limites de sua capacidade, não quebravam a cabeça com a pesquisa das dimensões,
dos movimentos, dos efeitos, das origens ocultas dos astros. Também não lhes
passava pela imaginação a impertinente ideia de querer saber o que se acha além
dos céus.
Mas, aos poucos, foi desaparecendo a inocência do século de
ouro, de forma que os maus gênios, como já disse, logo descobriram as artes,
mas ainda em pequeno número e muito pouco exercitadas. Em seguida, a
superstição dos caldeus e a ociosa leviandade dos gregos criaram mil outras,
todas muito oportunas e excelentes para atormentar o espírito. Só a gramática é
mais do que suficiente para nos aborrecer durante toda a vida.
De todas essas artes, são tidas em maior apreço as que mais
proximamente acedem ao senso comum, isto é, à loucura. Mas, que vantagem
proporcionam aos que delas fazem profissão? Morrem de fome os teólogos,
definham os físicos, caem no ridículo os astrólogos, são desprezados os
dialéticos. E só o médico faz fortuna. A principal vantagem da medicina está em
que, quanto mais ignorante, ousado e temerário é quem a exerce, tanto mais
estimado é pelos senhores laureados.
O que é fora de dúvida é que os filósofos, quase que por
consenso unânime, ridicularizam os advogados e, com muita propriedade,
qualificam essa profissão de ciência de burro. Mas, burros ou não, serão sempre
eles os intérpretes das leis e os reguladores de todos os negócios. Ao passo
que esses senhores estendem os seus latifúndios, o pobre teólogo, depois de ter
revistado todas as arcas da divindade, é obrigado a comer favas e a viver numa
eterna guerra com os insetos nojentos.
De tudo quanto dissemos acerca das disciplinas, pode-se
concluir que as artes mais vantajosas são as que mais se relacionam com a
loucura. Por conseguinte, são perfeitamente felizes os homens que, sem ter
qualquer relação com as ciências especulativas e práticas, têm como único guia
a natureza, a qual não possui nenhum defeito e nunca deixa que se percam os que
seguem fiel e exatamente os seus passos, sem a pretensão de sair dos limites da
condição humana. A natureza é inimiga de todo artifício, e, de facto, vemos
crescer mais felizes as coisas não contaminadas por nenhuma arte.
Não imaginais quanto perdem os pássaros da sua primitiva
beleza, quando aprendem, nas gaiolas, os nossos cantos. E tanto isso é verdade,
sob todos os aspectos, que as produções da natureza ultrapassam de muito as da
arte.
Por tudo isso, nunca terei louvado bastante Pitágoras por se
ter transformado em galo. Esse filósofo, em virtude da metempsicose, passou por
todos os estados: filósofo, homem, mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e
creio até que esponja. E, depois de todas essas transmigrações, declarou que o
homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos os outros estão
satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela natureza, enquanto só o homem
se esforça por ultrapassá-los. Além disso, Pitágoras costumava antepor os
loucos aos sábios e aos grandes. Tal era, também, a opinião de Grilo, um dos
companheiros do sensato Ulisses, o qual, tendo sido transformado em porco pela
bruxa Circe, preferia grunhir tranquilo e à vontade num chiqueiro a andar na
pista de novos perigos e novas aventuras com o seu general.
Parece-me, também, que o próprio Homero, o célebre pai da
mitologia, não diverge dessa opinião, pois que, em geral, considera miseráveis
todos os mortais e diz que a morte os cerca por toda a parte.
Nem mesmo Ulisses, o seu famoso herói e modelo de sabedoria,
constitui para ele uma exceção, pois chega a aplicar-lhe, várias vezes, o
epíteto de infeliz. No entanto, não diz o mesmo de Paris, de Ajax e de Aquiles,
que eram loucos.
Afirmo que os que se aplicam ao estudo das ciências estão
muito longe da felicidade e são loucos, porque, esquecendo-se de sua condição
natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as
máquinas de arte, uma guerra de gigantes. De tudo isso, infiro que os
verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez
dos brutos, sem empreenderem nada que esteja acima das forças humanas.
Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente
chamados bobos, tolos insensatos e imbecís? Ah! como acho bonitos esses nomes!
Quero dizer-vos uma coisa que, à primeira vista, talvez tomeis por extravagante
e absurda. Mas, que importa? Apesar disso, não quero deixar de vo-la dizer,
tanto mais quanto é superior a qualquer outra verdade. Respondei-me: é ou não
exacto que os homens que se julgam privados de sentimento não têm nenhum medo
da morte? Além disso, estão isentos dos terríveis remorsos da consciência; não
temendo nem fantasmas nem trevas, não são atormentados pela perpétua
perspectiva dos males; não são enganados pela vã esperança de futuros bens. Em
suma os seus dias não são envenenados pela infinita série de cuidados a que
está sujeita a vida. A desonra, o temor, a ambição, a inveja, o amor, a
amizade, são coisas inteiramente estranhas para eles, pois gozam da
incomparável vantagem de só na forma diferirem dos animais.
Consultai ainda uma vez mais o vosso íntimo, oh insensatos
partidários da sabedoria! Ponderai, examinai atentamente quantas aflições do
espírito vos atormentam dia e noite; reuni em bloco, sob os vossos olhos, todos
os diversos males da vida; e julgai finalmente, por vós mesmos, quanto é grande
a felicidade que proporciono aos meus insensatos.
Não gozam eles apenas de um contínuo prazer, rindo, jogando,
cantando, e parece-me, além disso, que a alegria, o prazer, a chacota, o riso,
seguem-lhes os passos por toda parte. Dir-se-ia que os deuses tiveram a bondade
de misturá-los com os homens para edulcorar a tristeza da vida humana.
Eu desejaria que notásseis ainda um privilégio que honra
muitíssimo os meus súbditos. Qualquer que seja as disposições do coração humano
de indivíduo para indivíduo, quanto aos meus loucos (…) Não só não se encontra
ninguém que se atreva a contrariá-los, como parece que até as próprias feras,
por um natural sentimento da sua inocência, contêm diante deles a sua inata
ferocidade. São sagrados para os deuses, para mim sobretudo, motivo porque é
muito justo que todos usem para com eles do mesmo respeito.
Os maiores monarcas de tal forma concentraram neles as suas
delícias, que muitos não podem nem jantar, nem passear, nem ficar longe deles
por uma hora sequer. Que diferença não acharão, pois, entre os seus bobos e os
sábios melancólicos, dos quais talvez mantenham um para lhes fazer as honras? E
uma tal diferença, nada tem de misterioso nem de surpreendente, porque os
sábios, em geral, só sabem dizer coisas melancólicas e, às vezes, confiando no
próprio saber, permitem-se ofender os delicados ouvidos com pungentes verdades.
Os meus loucos, ao contrário, têm uma vida totalmente oposta e observam, para
com os príncipes, todas as maneiras que mais costumam agradar, divertindo os
outros com mil chacotas e bobagens, com ditos satíricos, com caretas e
disparates de fazer qualquer pessoa rebentar de riso.
Notai, de passagem, o privilégio que têm os bobos de poder
falar com toda a sinceridade e franqueza. Haverá coisa mais louvável do que a
verdade?
Se bem que, com Platão, o provérbio de Alcibíades diga que a
verdade se encontra no vinho e nas crianças, contudo é a mim, particularmente,
que convém esse elogio, porque, segundo o testemunho de Eurípedes, tudo o que o
tolo encerra no coração ele o traz também impresso na cabeça e o manifesta nas
palavras.
Mas, os sábios,
segundo o mesmo Eurípedes, têm duas línguas, uma para dizer o que pensam e a
outra para falar conforme as circunstâncias: quando o querem, têm talento para
fazer o preto aparecer como branco e o branco como preto, soprando com a mesma
boca o calor e o frio e exprimindo com palavras exatamente o contrário do que
sentem no peito.
Não posso deixar, aqui, de lastimar a sorte dos príncipes.
Oh! como são infelizes! Inacessíveis à verdades, só contam com a amizade dos
aduladores. Mas, ponderará alguém que eles não devem queixar-se senão de si
mesmos. Porque será que os príncipes não gostam de prestar ouvidos à verdade? E
porque pouco caso fazem dos sapientes? Ah! bem vejo que isso deve-se ao medo
que têm os príncipes de encontrar algum
petulante que se atreva a dizer o que é verdadeiro e não o que é agradável!
Reconheço que a
verdade não tem o amor dos reis. Mas, é justamente essa razão o que mais honra
os meus loucos. Nem mesmo dissimulam os vícios e os defeitos dos reis. Que digo
eu? Chegam, muitas vezes, a insultá-los, a injuriá-los, sem que esses senhores
do mundo se ofendam por isso ou se aborreçam. Sabemos que os príncipes, em
lugar de ficarem indignados, riem-se de todo coração quando um tolo lhes diz coisas
que seriam mais do que suficientes para enforcar um sapiente. Só se costuma
defender a verdade quando não se é atingido por ela; ora, só aos loucos os
deuses concederam o privilégio de censurar e moralizar sem ofender a ninguém.
Quase pela mesma razão é que as mulheres gostam dos loucos e
dos bobos, e é por isso que esse sexo é tão inclinado ao riso e às
frivolidades. Além disso, qualquer coisa que façam as senhorinhas com essa
espécie de pessoas (e às vezes com toda espécie), parece-lhes uma brincadeira
ou uma chacota, tão engenhoso e experimentado é o belo sexo em colorir e
mascarar os seus pecadilhos.
Confrontai, agora, a condição de qualquer sábio com a de um
tolo. Imaginai, um homem venerável, verdadeiro modelo de sabedoria, e observai
como faz a sua passagem pela terra. Constrangido desde a infância a
consagrar-se ao estudo, passa a flor dos anos nas vigílias, nas aflições, na
mais assídua fadiga; e, mal sai dessa dura escravidão, acha-se ainda mais
infeliz do que nunca. Por isso é que, devendo viver com economia, com
moderação, com tristeza, com severidade, ele se torna cruel e pesado a si
mesmo, incómodo e insuportável aos outros. Pálido, magro, enfermiço, ramelento,
fraco, encanecido, velho antes do tempo, termina uma vida infeliz com a morte
prematura. Mas, que importa ao sábio morrer moço ou velho, quando se pode
afirmar, com toda a razão, que nunca viveu?
Há, portanto, duas espécies de insânia: Uma a que os infernos
vomitam todas as vezes que as fúrias emitem as suas serpentes para acenderem no
peito dos mortais o furor da guerra, insaciável e devoradora do ouro, o infame
e abominável amor, o parricídio, o incesto, o sacrilégio, o peso de consciência
e todos os outros flagelos semelhantes de que se servem as fúrias para dar aos
mortais uma amostra dos suplícios eternos.
Existe, porém, outra, um furor inteiramente oposto ao
precedente, e sou eu quem o proporciona aos homens, que deveriam desejá-lo
sempre como o maior de todos os bens. Em que pensais que consista esse furor ou
loucura? Consiste numa certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo
qualquer preocupação incómoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites.
Esse homem era louco de todas as formas: desde manhã muito
cedo até tarde da noite, ficava sentado sozinho no teatro e, imaginando que
assistia a uma magnífica representação, embora na realidade nada se
representasse, ria, aplaudia e divertia-se à grande. Fora dessa loucura, ele
era, em tudo o mais, uma óptima pessoa: complacente e fiel com os amigos;
terno, cortês, condescendente com a mulher; indulgente com os escravos, não se
enfurecendo quando via quebrar-se uma garrafa. Seus parentes deram-se ao incómodo
de curá-lo com heléboro; mal, porém, ele voltou ao estado que impropriamente se
chama de bom senso, dirigiu-lhe esta bela e sensata apóstrofe: “Meus caros
amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter-me curado e, no entanto, mataram-me;
para mim, acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que constituía
toda a minha felicidade”. Tinha sobras de razão esse convalescente, e os que,
por meio da arte médica, julgaram curá-lo, como de um mal, de tão feliz e
agradável loucura, mostraram precisar mais do que ele de uma boa dose de
heléboro.
Não quero dar o nome de insânia a qualquer erro dos sensos
ou da mente. É que, em geral, dizemos ser louco todo aquele que, sendo curto de
vistas, toma um burro por jumento, ou que, por ter pouco discernimento,
considera excelente um mau poema. Quando um homem comete um estranho erro, não
só de senso, mas também de inteligência, nele persistindo longamente, — por
exemplo, quando, ao escutar o zurro de um burro, julga ouvir uma sinfonia ou,
então, quando, embora pobre e de origem humilde, imagina ser o rei Creso, da
Lídia — nesse caso, diz-se que o pobrezinho perdeu o miolo. Mas se essa loucura,
como frequentemente acontece, se inclina para a alegria, provoca não medíocre
deleite, tanto aos que a experimentam como àqueles que a presenciam e que são
insensatos, mas de outra maneira.
Assim, essa espécie de loucura é bem mais espalhada do que
em geral se pensa. Às vezes, é um louco que se ri de outro louco, divertindo-se
ambos mutuamente. Também não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro
menos do que ele.
Mas, na minha opinião, o homem é tanto mais feliz quanto
mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que não saia da
espécie que me é peculiar e que é tão espalhada que eu duvido se haverá, em
todo o género humano, um só indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também
a sua modalidade.
Se alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher,
dir-se-ia ser o pobrezinho um louco. A razão disso é que semelhante perturbação
raras vezes costuma aparecer entre nós. Mas, quando um marido imbecil adora a
mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça crescer na
cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormemente
o seu destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia, —
ninguém acha que se trate de loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais
natural deste mundo.
Nessa categoria, é preciso incluir também os que desprezam
tudo em prol da caça, não concebendo maior prazer que o de ouvir o rouco som da
corneta e os latidos dos cães. Creio mesmo que, ao sentirem o cheiro dos
excrementos caninos, imaginam estar a cheirar canela. Trata-se de despedaçar
uma presa? Oh! incomparável delícia! Degolar, esfolar, cortar um boi ou um
carneiro? Ah! é um mister vil, digno somente da ralé! Mas, um bicho do mato?
Oh! a honra de cortar um bicho do mato é reservada unicamente às pessoas de
alta linhagem!
Ao fidalgo, com a cabeça descoberta e de joelhos, pega o
facão sagrado para esse sacrifício e, empunhando o ferro com a mão direita,
corta religiosamente determinados membros do animal, fazendo tudo com certa
ordem e com cerimónias especiais. E, durante a pomposa operação, todo o bando
de caçadores acerca-se do sacerdote de Diana, observando profundo silêncio e
mostrando, ao assistir ao espetáculo mil vezes visto, a mesma surpresa que
teria se fosse a primeira vez. Em seguida, aquele a quem cabe a sorte de provar
um pedaço da caça julga ter conquistado ainda mais nobreza. Por fim, os
caçadores, depois de levarem a vida perseguindo e comendo caça, não obtêm outro
resultado do seu assíduo e fatigante exercício senão o de se terem transformado
também em outros tantos animais selvagens. E, não obstante, intimamente, pensam
ter uma vida real.
Outra espécie de homens semelhantes à que há pouco descrevi
é constituída por aqueles que se sentem devorados pela mania de construir. Uma
vez invadidos por essa irrequieta paixão, nunca se dão por satisfeitos, sendo a
sua preocupação contínua a de fazer, edificar, destruir, até que, como Horácio,
nessa tarefa de mudar o quadrado em redondo e o redondo em quadrado, acabam por
ficar sem casa e sem pão. E com que ficam? Ficam com a doce lembrança de terem
passado com prazer um grande número de anos.
Vejamos, agora, os alquimistas, que podem ser considerados
os loucos por excelência. Têm a cabeça sempre repleta de novos e misteriosos
segredos. O seu único fim é confundir, misturar, modificar a natureza,
procurando por terra e por mar não sei que quintessência, que na realidade só
se encontra em uma quimérica imaginação. Não julgueis, por isso, que se
desgostem diante dos insucessos: ao contrário, cheios de louca e lisonjeira
esperança, nunca se arrependem das despesas nem da fadiga, pois são
engenhosíssimos em iludir-se a si mesmos e em tornar-se vítimas da própria
obstinação.
Mas, qual é, em geral, o seu objetivo? Pensando
enriquecer-se, gastam tudo, não lhes restando nem mesmo com que construir um
pequeno lar. É verdade que esses sonhadores não deixam de ter belíssimos
sonhos, tentando tudo quanto é meio imaginável para incitar os outros a correr
atrás dessa felicidade. Finalmente, constrangidos pela miséria a dar um adeus
às suas quiméricas esperanças, acham ainda uma grande compensação em se poderem
gabar de ao menos terem formado tão glorioso e nobre projeto. Mas, ao mesmo
tempo, censuram a natureza pelo fato de ter dado aos homens uma vida demasiado
breve para levar a termo empresa de tamanha importância.
Sinto certo escrúpulo em introduzir em nossa sociedade os
jogadores de profissão. Mas, decerto que é uma loucura, oferecendo um
espetáculo ridículo os que, de tão apaixonados pelo jogo, sentem bater e saltar
o coração dentro do peito, sempre que vêm cartas na mesa ou ouvem o barulho dos
dados. Então, quando a enganosa esperança de recuperar o que perderam faz com
que percam o resto dos seus bens e quando a sua nau se quebra contra o escolho
do jogo, escolho não menos fatal que o terrível cabo de Maleu , ainda se julgam
muitos felizes por se terem salvo nuzinhos em pêlo desse naufrágio. E o mais
bonito é que essa espécie de gente prefere roubar a quem quer que seja, excepto
ao que a despojou, pelo receio de passar à conta de pouco honesta.
Que deveria eu dizer desses velhos que, quase cegos de tanta
idade, chegam a pôr os óculos para jogar e, tendo as mãos atacadas pela gota,
pagam a alguém para que jogue os dados por eles? São tão loucos pelo jogo, e
nele experimentam tão extremo prazer que sou levada a considerá-los como de
minha atribuição. Mas, muitas vezes, o jogo se transforma em raiva e furor, e,
então, me inclino a atribuí-lo mais às fúrias do que a mim.
Mas, eis que se
adiantam algumas pessoas, que sem dúvida vivem sob as minhas leis: são os que
se divertem ouvindo ou contando histórias de milagres e prodígios. Não
acreditais? Pois esse bom gosto proporciona tal prazer que os sábios são
indignos de experimentá-lo. É preciso, sim, é preciso ter nascido sob um
particular auspício dos deuses para poder saborear tão doces quimeras. E o
melhor é que nunca se fartam de ouvir semelhantes patranhas. Os milagres, os
espectros, os duendes, os fantasmas, o inferno, e mil outras visões dessa natureza,
são o assunto mais comum das conversas do vulgo ignorante, sendo que, quanto
mais extraordinárias são essas coisas, com tanto maior prazer são elas ouvidas
e facilmente acreditadas.
E não penseis que
tais histórias se contem apenas para iludir as horas de aborrecimento: tornaram-se,
na boca dos altos clérigos e dos pregadores, um meio de tirar proveito da
crendice popular. A essa espécie podem agregar-se, a justo título, os ridículos
e originais supersticiosos, os quais, toda vez que têm a sorte de ver alguma
estátua de madeira ou alguma imagem de São Cristóvão, ficam convencidos de que
nesse dia não poderão morrer. Soldados há que, depois de uma pequena prece
diante da imagem de Santa Bárbara, ficam certos de que sairão ilesos da
batalha. Alguns acreditam que, invocando Santo Erasmo em certos dias, com
certas orações e à luz de certas lamparinas, seja possível fazer uma grande
fortuna em pouco tempo…
Mas, porque não falar dos que julgam que, em virtude dos
perdões e das indulgências, não têm nenhuma dívida para com a divindade?
Com a exatidão de uma clepsidra e da mesma maneira por que,
matematicamente, sem recear erro de cálculo, medem os espaços, os séculos, os
anos, os meses, os dias, - assim também, com essa espécie de falazes remissões
medem eles as horas do purgatório.
Outra espécie de extravagantes é constituída pelos que,
confiando em certos pequenos sinais exteriores de devoção, em certos
palanfrórios, em certas rezas que algum piedoso impostor inventou para se
divertir ou por interesse, estão convencidos de que irão gozar uma inalterável
felicidade, conquistar riquezas, obter honras, satisfazer determinados
prazeres, nutrir-se bem, conservar-se sãos, viver longamente e levar uma
velhice robusta. E, como se isso não bastasse, ainda esperam poder ocupar no
paraíso um posto elevado, sob a condição, porém, de só passarem ao número dos
beatos tão tarde quanto possível.
Pensam, então, chegado o tempo de voar por entre as
inefáveis e eternas delícias do céu, uma vez abandonados pelos bens da terra, a
que se aferram de todo o coração.
Persuadidos dos
perdões e das indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem
a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus
numerosos roubos como quando saíram da pia baptismal. Tantos falsos juramentos,
tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas
imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos
se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga
poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações.
Quem já terá visto homens mais tolos, ou melhor, mais
felizes do que os devotos, os quais julgam que entrarão infalivelmente no reino
dos céus, recitando todos os dias sete versículos, que eu não sei quais sejam,
dos salmos sagrados? No entanto, foi um demónio quem fez tão bela descoberta;
mas, um demónio tolo, que tinha mais vaidade do que talento, tanto assim que
cometeu a imprudência de exaltar o seu mágico segredo com São Bernardo, que era
muito mais esperto do que ele.
E todas essas coisas não serão, talvez, excelentes loucuras?
Ah! como isso é verdadeiro! Até eu, que sou a Loucura, não posso deixar de
sentir vergonha. No entanto, não é o público o único a aprovar tão completas
extravagâncias. Sustentam a sua prática, dando o exemplo, os próprios
professores de teologia.
E, já que viajo por esses mares, convém continuar a navegar.
Digamos, assim, algumas palavras sobre a invocação dos santos. É curioso
verificar que cada país se gaba de ter no céu um protetor, um anjo tutelar, de
forma que, num mesmo povo, entre esses grandes e poderosos senhores da corte
celeste, se encontrem as diversas incumbências do protectorado. Um cura dor de
dentes, outro assiste ao parto das mulheres; aquele faz achar os objetos
perdidos, este vela pela segurança e prosperidade do gado; um salva os
náufragos, outro confere a vitória nos combates. Suprimo o resto, porque será
um nunca mais acabar. Além desses, existem outros santos que gozam de um
crédito e um poder universais, encontrando-se entre estes, em primeiro lugar, a
mãe de Deus, a quem o vulgo atribui poder maior que o do seu próprio filho.
Ora, as graças que os homens pedem aos santos não serão,
talvez, insinuadas também pela Loucura?
Ora, bem vedes que ninguém deu graças a Deus, ou à Virgem,
ou a qualquer santo, por ter recuperado o juízo. A loucura tem tantos atrativos
para os homens, que, de todos os males, é ela o único que se estima como um
bem.
Uma palavrinha acerca de uma espécie de doidos, porque seria
um grande mal não os pôr igualmente em cena, quando honram tanto o meu império.
Quero referir-me aos ricos que, vendo chegar o fim dos seus dias, providenciam
grandiosos preparativos para uma passagem magnífica ao túmulo. É com grande
prazer que se observa como esses moribundos se aplicam seriamente às suas
pompas fúnebres. Estabelecem, artigo por artigo, quantos círios e quantas velas
devem arder nos seus funerais, quantas pessoas vestidas de luto, quantos
músicos, quantos carpidores devem acompanhar o féretro, como se, depois de
mortos, ainda pudessem conservar alguma consciência para gozar o espetáculo, ou
soubessem ao certo que os mortos costumam ficar envergonhados quando os seus
cadáveres não são sepultados com a magnificência exigida por seu próprio
estado. Finalmente, parece que esses ricos consideram a morte como um cargo de
edil, que os obrigue a ordenar festas populares e banquetes.
Não posso deixar em
silêncio aqueles que nada distingue de um ínfimo plebeu e que se envaidecem com
um inane título nobiliárquico. Não é raro encontrar, entre estes, os que, com
ânimo abjeto e vilíssimas e plebeias inclinações, vos pasmem à força de
repetir: “Sou um fidalgo”. Convém provar a antiguidade de suas estirpes? Um
descende do piedoso Enéias; outro remonta ao primeiro cônsul de Roma; este
procede, em linha reta, do rei Artur. Além disso, mostram as estátuas e os
retratos dos antepassados: enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os
antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores. Enquanto isso, pouco diferem
eles de uma estátua muda, e eu os diria mesmo quase inferiores às próprias
figuras que vão mostrando.
Esses idiotas fazem
um alto conceito de si mesmos e estão sempre cheios da estéril ideia de sua
ascendência. O que é facto, porém, é que imbuídos dessa quimera, levam uma vida
contente e feliz. Ora, o que contribui, em grande parte, para que em tão boa
conta se tenha esse belo fantasma de nobreza, é justamente o respeito que o vulgo
insano demonstra por eles, parecendo até enxergar nesse género de bestas,
nesses nobres sem mérito, outras tantas divindades.
O amor-próprio do
homem, por toda a parte produz muitos modos felicíssimos. Quantos meios
surpreendentes não possuirá o meu caro amor-próprio, para impedir que o homem
fique desgostoso de si mesmo? Olhai aquele rosto: não há macaco mais feio, nem
mais disforme; no entanto, julga-se um lindo rapaz. E, perto dele, o outro que
traça duas ou três linhas com exatidão, à força de compasso! Intimamente, já se
aplaude, julgando-se um Euclides. E aquele que está cantando, ainda pior que um
galo? Não importa: pensa ter uma voz paradisíaca. Todavia, também essa espécie
de loucura é verdadeiramente agradável.
Alguns que não tendo dotes próprios, glorificam-se com os
dos outros. Tal era, segundo Séneca, aquele rico duplamente feliz que, ao
pretender contar alguma história, tinha sempre ao redor os escravos, que lhe
auxiliavam a memória, sugerindo-lhe os vocábulos adequados, mesmo os mais
comuns. Esse senhor, era, além disso, tão fraco que bastava um pequeno sopro de
vento para levá-lo ao chão: isso, contudo, não impedia que estivesse sempre
disposto a bater-se a socos, fiando-se na força dos escravos, como se esta
fosse sua.
É inútil passar aqui
em revista os que professam as artes, porque com razão podem ser considerados
os prediletos, os favoritos do meu amor-próprio. Em geral, essas pessoas estão
de tal forma fanatizadas por seu pequeno mérito que prefeririam ceder uma parte
do seu património a confessar-se ineptas. Os cómicos, os músicos, os oradores,
os poetas — eis aí, eis os melhores amigos do amor-próprio! Quanto mais
ignorantes, tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em
benefício próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios
louvores.
Mas, não penseis que não encontrem quem os aplauda, pois
toda tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra sequazes.
Quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior
é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se
opõe à razão é justamente o que se adopta com maior avidez. Perguntar-me-eis
por quê? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são
malucos.
A ignorância tem, pois, dois grandes privilégios: um, que
consiste em estar de perfeito acordo com o amor-próprio, e outro, que consiste
em trazer em si a maior parte do género humano.
Por conseguinte, seríeis duas vezes ingénuos se quisésseis
elevar-vos acima do nível comum, com toda a vossa ciência filosófica. Que
pensais que obteríeis com isso? Podeis estar certos de que, além de vos custar
muito caro semelhante propósito, chegaríeis ao ponto de não saberdes tolerar
mais ninguém e de não poderdes por mais ninguém ser tolerados. Resultaria,
enfim, que ninguém seria capaz de apreciar o vosso génio e de penetrar os
vossos sentimentos.
Todo homem, ao nascer, recebe o seu amor-próprio como um dom
da natureza. Mas, essa mãe comum não se limitou apenas ao homem, pois fez o
mesmo presente à sociedade, de maneira que não se encontra uma única nação, uma
única cidade que não tenha o seu gosto particular.(…) Cada nação se compraz em
ser a única verdadeiramente civilizada e sem sombra de barbarismo. Finalmente,
os alemães se pavoneiam por sua natureza gigantesca e por sua habilidade na
ciência da magia.
Estais vendo, agora, se não me engano, como o amor-próprio
difunde por toda parte grandes alegrias, quer nos indivíduos, quer nas nações.
Ao lado do amor-próprio, acha-se sempre a sua boa irmã — a adulação.
Isto posto, respondei-me: em que consiste o amor-próprio? Não consistirá,
porventura, em agradar, em satisfazer, em adular a si mesmo?
Pois bem: quando procedeis dessa forma em relação aos
outros, isso se chama adulação.
Hoje a adulação passa
por uma crise infame, especialmente entre aquelas pessoas que mais se comovem
com as palavras do que com as próprias coisas. Dizem que a adulação não possa
coadunar-se com a fidelidade. Ideia falsa! Pois os próprios animais não nos
mostram o contrário? Em vão se procuraria animal mais cortesão e adulador do
que o cão, e, não obstante, quem pode vangloriar-se de ser mais fiel do que
ele?
Não ignoro que há perniciosa adulação, da qual costumam
servir-se os maliciosos e os caçoadores para arrumar e ridicularizar míseros
tolos e vaidosos.
A minha adulação provém do engenho, da benignidade e da
candura. Reanima os espíritos abatidos, alegra os melancólicos, estimula os
poltrões, desperta os estúpidos, restabelece os enfermos, acalma os furibundos,
forma e mantém os amores. A minha adulação incita as crianças ao trabalho e ao
estudo, e consola os velhos. Sob o manto do louvor, censura e instrui os
monarcas, sem ultrajá-los. Enfim, minha adulação faz com que os homens, como
outros tantos Narcisos, se apaixonem por si mesmos, dando origem à principal
felicidade da vida.
Que afectuoso espectáculo é ver as mulas coçarem-se
mutuamente!
A Adulação é uma grande parte da tão louvada eloquência,
maior ainda É a esse mútuo auxílio na medicina e máxima na poesia. Devo
acrescentar que a adulação é o mel, o condimento de toda a sociedade humana.
Dizem os sábios que é
um grande mal estar enganado; eu, ao contrário, sustento que não estar é o
maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a
felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende
exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão
diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade. Porque,
se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas,
quantas não serão — pergunto — as que perturbam o tranquilidade e os prazeres
da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar
o verdadeiro para correr atrás do falso. O ânimo do homem é de tal maneira
esculpido que muito mais lhe agrada a ficção, do que a verdade. Quereis disso
uma prova sensível e incontrastável? Ide assistir a um sermão, e vereis que,
quando o cacarejador (oh! que injúria! enganei-me, desculpai-me), queria dizer,
quando o pregador aborda o assunto com seriedade e apoiado em argumentos, o
auditório dorme, boceja, tosse, assoa o nariz, relaxa o corpo, inteiramente
enjoado. Se, porém, o orador, como quase sempre é o caso, conta uma velha
fábula ou um milagre da lenda, então o auditório logo se agita, os dorminhocos
despertam, todos os ouvintes levantam a cabeça, arregalam os olhos, prestam
atenção. Nunca observastes que, ao celebrar-se numa igreja a festa de um santo
poético ou fabuloso — por exemplo, de um São Jorge, de um São Cristóvão, de uma
Santa Bárbara — em geral se costuma consagrar-lhe uma pompa e uma devoção bem
maiores que a que se consagra a São Pedro e São Paulo, e ao próprio Nosso
Senhor?
Quão pouco custa o acesso a esta felicidade!
A mínima ciência, como a gramatica, adquire-se à custa de
grande esforço; mas a opinião forma-se facilmente. A opinião, é concebida sem
esforço, insinua-se por si mesma no coração e contribui também, talvez mais do
que a evidência e a realidade das coisas, para a felicidade da vida.
Se um esfomeado come carne podre, cujo fedor obrigaria um outro
a tapar o nariz, se ele a come com tanto gosto como se se tratasse do alimento
mais fino, eu vos pergunto se por isso deve ser considerado menos feliz. Ao
contrário, se um enfastiado comesse excelentes iguarias e, em vez do seu gosto,
sentisse náuseas, onde estaria, nesse caso, a sua felicidade? Para um homem que
tem uma mulher feíssima, mas na qual vê perfeitamente a sua bela, não é o mesmo
que se tivesse desposado uma Vênus? O tolo que possui um mau e miserabilíssimo
quadro, mas acredita possuir uma pintura de Zeuxis ou de Apeles, não se
cansando de comtemplá-lo e admirá-lo, não será incomparavelmente mais feliz que
o outro que, tendo comprado por elevado preço um quadro desses excelentes
pintores, não experimente igual prazer ao contemplar as obras? De um homem que
tem a honra de trazer o meu nome, eu sei que, pouco depois das núpcias, deu de
presente à sua mulher brilhantes falsos. Sendo ele um engraçado tratante, convenceu
a mulher de que as pedras eram preciosas, tendo lhe custado uma grande soma. Ora,
nada faltava ao prazer da esposa. Ela gostava de se enfeitar com aqueles
pedaços de vidro e não se cansava de admirá-los, satisfeitíssima de possuir o
imaginário tesouro, como se este fosse real. Ao mesmo tempo, o marido poupara
uma despesa apreciável e estava contente com o engano da mulher, que lhe
agradecia da mesma forma por que o teria feito se ele lhe tivesse dado um
magnífico presente.
Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna
de Platão. Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas,
admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos. Já os sapientes,
por estarem fora da caverna, não só observam os mesmos objetos como lhes
investigam os mistérios. Não terão uns e outros o mesmo prazer? Se o remendão
Micilo , de que fala Luciano, tivesse podido passar o resto dos seus dias no
belíssimo sonho em que se embalava quando o despertaram, poderia ele desejar
felicidade maior?
Não haveria, pois,
diferença alguma entre os sábios e os loucos, se não fossem mais felizes estes
últimos. Sim, porque estes o são por dois motivos: o primeiro é que a
felicidade dos loucos não custa nada, bastando um pouquinho de persuasão para
formá-la; o segundo porque é uma felicidade que todos podem fruir em comum.
Ora, sabemos que não há felicidade completa que não seja
compartilhada. Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar
deles, e eu desejaria saber mesmo se é possível descobrir algum.
Tenho um culto, sim, um culto que abrange o mundo inteiro e
que todos os mortais me prestam (…)Considero-me tão satisfeita pelo facto de em
toda a parte, e por toda a gente ser tão imitada, que os ânimos me possuem, os
costumes me refelectem, as vidas me representam.(…) De resto, porque hei de
exigir um templo, se possuo um tão vasto e tão belo, que é a terra inteira? Não
me faltam ministros, nem sacerdotes, salvo nos lugares onde não existe nenhum
homem.
Deuses imortais! Que bela e ridícula comédia não resultará
de todos os movimentos dos loucos? Um apaixona-se perdidamente por uma
mulherzinha, e, quanto menos correspondido, tanto mais acesa se torna sua
paixão amorosa; outro casa-se com o dote e não com a moça; outro prostitui a
própria mulher vendendo-a ao primeiro que encontra; outro, finalmente, agitado
pelo demónio do ciúme, espia como um Argos a conduta da esposa. E que coisas estranhas
não se dizem e fazem quando morre um parente próximo? Chega-se ao ponto de pagar
a pessoas que finjam chorar e gesticulem como cómicos. Quanto maior é a alegria
experimentada pelo coração, tanto maior é a tristeza que o rosto aparenta, o
que deu origem ao provérbio grego: Chorar na sepultura da madrasta. Este tira o
quanto pode, seja de onde for, e dá tudo de presente à própria barriga, com o
risco de morrer de fome depois de satisfeita a gulodice; aquele põe toda a sua
felicidade no ócio e no sono; há alguns que, preocupados sempre com os negócios
alheios, descuram inteiramente dos próprios interesses; vêem-se os que contraem
dívidas para pagar as dos outros e, quando se julgam ricos, verificam que estão
falidos; há os que, vivendo pobremente, não conhecem felicidade senão a de
enriquecer os seus herdeiros; outros, ávidos de riquezas, percorrem os mares em
busca de um ganho incerto, confiando às ondas e aos ventos uma vida que nenhum
ouro do mundo poderia resgatar; outros, sedentos de sangue, preferem tentar a
sorte no meio dos perigos e dos horrores da guerra a passar seus dias, cómoda e
tranquilamente, no seio da família; enfim, gabam-se de uma gorda herança,
quando conseguem apoderar-se do ânimo de algum velho que está para morrer sem
herdeiros, ou quando têm a fortuna de cativar a graça e o favor de uma rica
velhota. Mas, depois, como se riem os deuses, ao verem esses pescadores de
dinheiro nas próprias redes! Os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e
estúpidos actores da vida humana: não há coisa mais vil do que a sua profissão,
e, como coroamento da obra, exercem-na da maneira mais porca. São, em geral,
perjuros, mentirosos, ladrões, trapaceiros, impostores. No entanto, devido à
sua riqueza, são tidos em grande consideração e chegam a encontrar frades
aduladores, particularmente entre os mendicantes, que lhes fazem humildemente a
corte e publicamente lhes dão o nome de veneráveis, a fim de lhes abiscoitar
uma parte dos mal adquiridos tesouros. Vêem-se, também, alguns seguidores de
Pitágoras, que adoptando a opinião desse filósofo, segundo a qual todos os bens
são comuns, usurpam conscientemente tudo o que podem, como se conseguissem uma
herança legítima. Outros, imaginando-se ricos, arquitetam belíssimas quimeras
de fortuna e vivem felizes nas suas esperanças. Alguns querem passar por ricos,
embora às vezes lhes chegue a faltar o necessário. Um apressa-se a esbanjar
todos os seus bens, enquanto outro está sempre preocupado em acumular, tudo o
que pode. Há os que anseiam por obter um cargo, e os que, acima de tudo,
preferem viver ociosamente sentados a um canto do lar. Enfurecem-se as partes
com a demora do processo, parecendo apostar qual das duas tem mais a possibilidade
de enriquecer um juiz venal e um advogado prevaricador, cujo intuito não é senão
prolongar a demanda, que só para eles traz vantagens. Os homens agitados e sediciosos
andam sempre atrás de novidades, enquanto os inquietos meditam grandes empresas.
Alguns empreendem uma romaria a Jerusalém, a Roma, a São Tiago, onde não têm
nada que fazer, enquanto deixam abandonados em casa a mulher e os filhos, que
tanto necessitam de sua presença. Se, finalmente, pudésseis observar, do mundo
da lua, como o fez Menipo, as inúmeras agitações dos mortais, decerto
acreditaríeis estar vendo uma densa nuvem de moscas ou de mosquitos brigando,
insidiando-se, guerreando-se, invejando-se, espoliando-se, enganando-se,
fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Não podeis sequer imaginar os
horrores e as revoluções com que enche a terra esse animalzinho, tão pequeno e de
tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem. Frequentemente numa breve
guerra ou numa pestilenta procela perecem aos milhares. Mas, eu própria seria
profundamente estúpida e mereceria que Demócrito se risse de mim a valer, se
pretendesse descrever todas as extravagâncias e loucuras do vulgo.
Passemos, pois, a falar dos que conservam, entre os homens,
uma aparência de sabedoria e possuem, como dizem eles esse ramo de ouro de Virgílio.
Entre esses, ocupam o
primeiro posto os gramáticos, os pedantes! Essa espécie de homens seria decerto
a mais miserável, a mais aflita, a mais malquista pelos deuses, se eu não tivesse
o cuidado de mitigar os incómodos de tal profissão com géneros especiais de loucura.
Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, ou melhor, nas suas cadeias ou
lugares de suplícios e de tormentos, no meio de um rebanho de crianças,
envelhecem de fadiga, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com o fedor
e a imundície. No entanto, quem o diria? Graças a mim, os pedantes julgam-se os
primeiros homens do mundo. Não podeis imaginar o prazer que experimentam fazendo
tremer os seus tímidos meninos com um ar ameaçador e uma voz altissonante.
Armados de chicote, de vara, de correia, não fazem senão decidir o castigo,
sendo ao mesmo tempo partes, juízes e carrascos. Parecem-se mesmo com o burro
da fábula, o qual, por ter às costas uma pele de leão, julgava-se tão valoroso
como este. A sua imundície afigura-se-lhes asseio; o fedor serve-lhes de
perfume; e, acreditando-se reis em meio à sua miserabilíssima escravidão
parece-lhes realeza.
O que, sobretudo, contribui para torná-los felizes é a ideia
de possuírem uma nova doutrina.. Embora não façam senão meter palavras
insignificantes e insulsas frivolidades na cabeça das crianças confiadas aos
seus cuidados — santo Deus! — julgam-se superiores. Nem mesmo sei com que meios
conseguem lisonjear as estúpidas mães e os idiotas pais dos alunos, ao ponto de
serem realmente considerados como os ilustres homens que eles próprios se
inculcam.
Acrescentemos a isso outro género de prazer por eles
experimentado toda vez que conseguem descobrir, num velho papelucho todo sujo e
comido de traças, o nome da mãe de Anquises ou alguma palavra geralmente
desconhecida, — bubsequam, por
exemplo, bovinatorem, manticulatorem — ou quando têm a sorte
de encontrar um pedaço de lápide antiga, na qual se encontrem caracteres
truncados. Ah! por Júpiter imortal! que tripúdio, que triunfo, que aplausos! É
indizível a alegria experimentada por esses pedantes, quando, ao lerem de porta
em porta os seus versos gelados e insulsos, encontram por acaso algum
admirador. Logo se julgam novos Virgílios. Oh! como é bonito vê-los trocar,
entre si, elogio por elogio, admiração por admiração, lisonja por lisonja! Se
acontece que um homem da arte erra em alguma sintaxe e outro mais penetrante do
que ele o percebe — santo Deus! — que cenas, discussões, que injúrias, que
invectivas!
Já os poetas não me devem tanto, se bem que pertençam à
minha facção. Há muito tempo que se diz que “os poetas e os pintores formam uma
nação livre”. Os poetas fazem consistir toda a sua arte em impingir meras
ninharias e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos. Isso não
impede que, apoiados nessas ridicularias, se gabem de obter uma divina
imortalidade e ainda a prometam aos outros.
O amor-próprio e a
adulação são os seus conselheiros indivisíveis, e eu não tenho adoradores mais
fiéis nem mais constantes do que eles.
Os oradores também pertencem à minha seita. Devo, porém
confessar-vos que não são os meus súditos mais fiéis, pois assemelham-se, até
certo ponto, aos filósofos. Apesar disso, além de serem igualmente cheios de
amor-próprio e de vaidade, não deixam de ser fecundos em frivolidades, sendo
que os mais célebres chegaram a escrever a sério extensos tratados sobre a maneira
de gracejar.
Segundo esses escritores, a loucura tem uma força maior do
que a razão, porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum
argumento se obtém com uma chacota.
Outra espécie de pessoas mais ou menos da mesma laia é
constituída pelos que ambicionam uma fama imortal publicando livros. Todos
esses escritores têm parentesco comigo, sobretudo os que só publicam coisas insípidas,
meras bagatelas.
Quanto aos autores que só escrevem para poucos, isto é, para
pessoas de fino gosto e perspicazes, confesso-vos ingenuamente que merecem mais
compaixão do que inveja. Imersos numa contínua meditação, pensam, tornam a
pensar, acrescentam, emendam, cortam, tornam a pôr, burilam, refundem, fazem,
riscam, consultam, e, nesse trabalho, levam às vezes nove e dez anos, antes do
manuscrito ser impresso.
Oh! como me causam piedade tais escritores! Nunca estando
satisfeitos com o seu trabalho, que recompensa podem esperar? Ai de mim! um
pouco de incenso, um reduzido número de leitores, um louvor incerto. Mas,
respondei-me francamente: compensarão essas ténues bagatelas o sacrifício do
sono, mais doce do que tudo, da tranquilidade, dos prazeres, numa palavra, de
todas as doçuras da vida? É preciso acrescentar ainda que esses sonhadores que
andam em busca de imortalidade arruínam a saúde, tornam-se pálidos, magros,
ramelentos e, às vezes, até cegos. São sempre miseráveis, invejados, não têm
prazer algum e, como resultado, só conseguem apressar a velhice e a própria
morte. Malgrado tudo isso, o nosso sábio considera suficiente, como remédio a
tantos males, a aprovação de um ou dois ramelentos da sua espécie.
Mas, falemos, agora, de um autor que escreva sob os meus
auspícios e do qual seja eu a Minerva. Não conhecendo a meditação, nem a
tortura do cérebro, nem as vigílias, escreve tudo o que sonha, tudo o que lhe
vem à cabeça. Tudo lhe parece surpreendente e divino. A pena mal pode
acompanhar a velocidade da imaginação, e dos pensamentos. Não despendendo mais
do que um pouco de papel, escreve um mundo de disparates e de impertinências,
convencido de que, publicando bobagens, granjeará mais facilmente os aplausos
da maioria, isto é, de todos os tolos e de todos os ignorantes. E quem poderá
negar que esse homem seja verdadeiramente feliz?
Responder-me-eis que, assim parecendo, é preciso renunciar
completamente à esperança de ser aplaudido pelos verdadeiros doutos!
Que lhe importa a reprovação de dois ou três doutos que
porventura o leiam? De que valeria a opinião de tão poucos sapientes perante a
turba imensa dos que a aplaudem?
Mais sapientes são ainda os que editam obra alheia por sua.
Os plagiários que com suas facilidades se apropriam das obras alheias, gozando
da glória que aqueles dos quais eles a roubaram conseguiram com imensa
dificuldade! Não ignoram esses impudentes que, mais dia menos dia, será
descoberto o furto, mas, em compensação, esperam aproveitar-se dele por algum
tempo. É um prazer doido ver como se pavoneiam quando elogiados; quando, ao
passar por um lugar, são apontados e ouvem dizer: — Olhe, aquele ali é um homem
verdadeiramente admirável; quando vêem seus livros bem juntinhos e bem expostos
na loja de algum livreiro. (…)Às vezes, esses generosos campeões injuriam-se
reciprocamente, a fim de aumentarem pela emulação a própria fama.
Entre os eruditos, os advogados revindicam o primeiro lugar,
pois não há gente mais vaidosa. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que
não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um
amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem
crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime o
laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é mais difícil,
resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.
Podemos unir a esses, com toda a honra, os dialéticos e os
sofistas, que fazem mais barulho do que todo o bronze dodóneo, sendo que cada
um deles poderia superar em tagarelice mais de vinte mulheres, mesmo dentre as
que costumam distinguir-se pelo falatório. Não obstante, ainda seria de desejar
que não tivessem outro defeito a não ser o de falar demais; mas, por desgraça
nossa, são sempre discussões de lana-caprina, e, à força de discutir para
sustentar a verdade (como pretendem eles), perdem de vista, o mais das vezes, a
própria verdade. Esses eternos discutidores estão sempre contentes consigo
mesmos e, armados de três ou quatro silogismos, sempre dispostos a desafiar
para a controvérsia quem quer que seja e sobre qualquer argumento. A obstinação
serve-lhes de espada, invencível, pois não cedem nunca.
Seguem-se-lhes, os veneráveis filósofos, respeitáveis pela
barba e pela túnica. Gabam-se de ser os únicos sábios e acreditam que todos os
outros homens não passem de sombras móveis. Rasguemos esse véu de orgulho e de
presunção, e vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos
loucos: quem poderá conter o riso ao ouvi-los sustentar seriamente a edificação
de mundos inumeráveis? O sol, a lua, as estrelas, todos esses globos são por
eles conhecidos tão bem como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio.
Sem duvidar de nada, eles vos dizem a causa do trovão, dos ventos, dos eclipses
e de todos os outros mistérios físicos. Na verdade, ao ouvi-los falar com tanta
convicção, qualquer os julgaria membros do grande conselho dos deuses ou
testemunhas oculares da natureza quando tudo saiu do nada.
Mas, a despeito disso, a natureza, essa hábil produtora do
universo, parece zombar das suas conjecturas. Basta, com efeito, reflectir-se
sobre a estranha diversidade dos seus sistemas, para se dever confessar que
eles não têm nenhuma ideia segura, pois que, enquanto se gabam de saber tudo,
não estão de acordo em nada. Mas como nada sabem, pretendem tudo saber:
ignoram-se a si próprios, e não vêem o fosso ou a pedra óbvia, ou por
debilidades visuais ou por peregrinações da alma. Estragando a vista na contemplação meticulosa
da natureza e com o espírito sempre distante, vangloriam-se de distinguir as
ideias, os universais, as formas separadas, as matérias primas, os quid, os
ecce, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam
distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.
Em nenhuma outra ciência se despreza tanto o vulgo profano
como nas matemáticas, que consistem em triângulos, quadrados, círculos e outras
figuras geométricas semelhantes, que se sobrepõem uma às outras, confundindo
tudo como um labirinto. Por fim, atordoam os idiotas com diversas letras
dispostas como um exército em ordem de batalha e subdivididas em várias
companhias.
Mas, não esqueçamos
os astrólogos, aos quais o céu serve de biblioteca e os astros servem de
livros. Graças a esse estudo, compreendem tudo muito bem e revelam o futuro,
predizendo maiores prodígios do que os magos. E o mais bonito é que ainda têm a
fortuna de encontrar crédulos.
Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é
essa matéria, tão grande é o perigo de tocar em semelhante erva infecta. Esses
supersticiosos intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se
como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos
muito perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós
como ursos furibundos, mordem-vos e não vos largam senão depois de vos terem
obrigado a fazer a vossa palinódia com uma série infinita de conclusões; mas,
se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa
cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não
concordam com eles.
Embora não haja
ninguém que, tanto como eles, dissimule os meus favores, não é menos verdadeiro
que me devem muito. Eis porque impus ao meu amor-próprio favorecê-los mais do
que a todos os outros mortais, e de fato são eles os meus maiores predilectos.
É por isso que, do alto da sua elevação e à maneira de tantos anjos que habitam
o terceiro céu, consideram o resto dos homens como outros tantos animais
bajuladores e têm piedade deles. Cercados de uma série de magistrais
definições, conclusões, corolários, proposições explícitas, em suma, de tudo o
que compõe a malícia da escola sacra, usam de tantos subterfúgios que o próprio
Vulcano não conseguiria embrulhá-los, mesmo empregando a rede de que se serve
para mostrar aos deuses os seus cornos nascentes. Não há nó que esses senhores
não saibam desfazer de um golpe com a mais que tenédia bipene do distinguo:
bipene formada de todos os novos vocábulos sonoros e empolados que nasceram no
seio da subtileza escolástica.
Observemo-los,
repito, a interpretar a seu talante os ocultos mistérios da salvação e por que
motivo foi criado e ordenado o mundo. Trata-se de saber por que canais passou à
posteridade a mancha do pecado original? Trata-se da Encarnação e da
Eucaristia? Ah! tais mistérios são muito batidos e dignos apenas de teólogos
noviços! Eis as questões dignas dos grandes mestres, dos mestres iluminados,
como dizem eles, os quais, ao tratar desses argumentos, se agitam e tomam
fôlego: — Houve algum instante na geração divina? — Jesus Cristo tem muitas
filiações? — É possível esta proposição: — Deus padre odeia o seu filho? — Ter-se-ia
Deus tornado a uma mulher, o diabo, um burro, uma abóbora, a uma pedra? — No
caso de Deus se ter unido à natureza de uma abóbora, como fez com a natureza
humana, de que maneira essa beata e divina abóbora teria pregado, feito
milagres e sido crucificada na cruz? — Como teria ela consagrado São Pedro, se
este tivesse dito missa quando o corpo de Jesus Cristo estava pregado na cruz?
— Poder-se-ia dizer, então, que o Salvador era um verdadeiro homem? — Será
permitido comer e beber depois da ressurreição? (Essa dúvida existe no íntimo
dos nossos reverendos, que muito satisfeitos ficariam com uma resposta a essa
pergunta).
Mas, não consiste
somente nisso o armazém teológico; há ainda inúmeras outras argúcias, não menos
frívolas e subtis do que as supracitadas. Tais são, por exemplo, o instante da
geração divina, as noções, as relações, as formalidades, os quid, os ecce, e
tantas outras quimeras de natureza semelhante. Duvido que alguém seja capaz de
descobri-las, a não ser que tenha uma vista tão penetrante que lhe permita
distinguir, através de densas nuvens, objectos inexistentes.
Acrescentemos a tudo isso a sua moral estranha e contraditória.
Sustentam, por exemplo, que concertar o sapato de um pobre em dia de domingo é
um pecado maior do que estrangular mil pessoas; que seria preferível deixar
cair o mundo no nada de onde veio a proferir a menor mentira, etc. Além disso,
contribuem para subtilizar ainda mais essas subtilíssimas subtilezas todos os
diversos subterfúgios dos escolásticos; Em todas as facções, são tantas as
erudições e tantas as dificuldades, que, se os próprios apóstolos descessem à
terra e fossem obrigados a discutir com os teólogos modernos sobre essas
sublimes matérias, sou de opinião que teriam necessidade de um novo Espírito
Santo totalmente diverso daquele que, em seu tempo, lhes dava a possibilidade
de falar.
São Paulo tinha fé, mas não deu uma definição da fé bastante
magistral quando disse:” A fé é a substância das coisas esperadas e a prova que
não é apreendido pelos sentidos”. No mesmo apóstolo ardia o fogo da caridade,
mas ele não se mostrou bom lógico ao omitir a definição e a divisão dessa
virtude no capítulo XIII da sua primeira epístola aos coríntios.
Os apóstolos
consagravam com devoção e com piedade o sacramento da Eucaristia: se tivessem,
porém, de explicar como Deus pode passar de um lugar para outro por meio da
consagração; como se dá a transubstanciação; como um mesmo corpo pode
encontrar-se ao mesmo tempo em vários lugares; que diferença existe entre o
corpo de Jesus Cristo no céu, na cruz e na Eucaristia; em que momento se
verifica a transubstanciação…
Tiveram os apóstolos, é verdade, a sorte de conviver com a
mãe de Jesus, mas nenhum deles a conheceu tão bem como os nossos teólogos, que
provaram geometricamente ter sido a Virgem fecunda preservada da mancha do
pecado original.
São Pedro recebeu as chaves das próprias mãos do Homem-Deus,
sendo de supor-se que este não tivesse tido a intenção de colocá-las em más
mãos; mas, não sei se o beato pescador conhecia bem o significado daquelas
místicas chaves. Nós, porém, sabemos, com certeza, que ele nunca perguntou a
Deus seu mestre como poderia um grosseiro e ignorante pescador ter as chaves da
ciência.
Os apóstolos baptizavam continuamente, mas, apesar disso,
nunca ensinaram a causa formal, material, eficiente e final do baptismo, nem
fizeram menção do caráter delével e indelével do mesmo. Esses fundadores da
religião cristã adoravam a Deus, mas a sua adoração apoiava-se neste princípio
fundamental do evangelho: Deus é um espírito puro e é preciso adorá-lo em
espírito e verdade.
Parece, igualmente, não ter sido revelado aos apóstolos que
o culto, nas escolas chamado latria, possa prestar-se tanto a Jesus Cristo em
pessoa como às suas imagens rabiscadas na parede com carvão, bastando que
representem o filho de Deus dando a bênção com os dois dedos, índice e médio,
da mão direita levantada, e com a cabeça ornada por uma longa cabeleira e um
tríplice círculo de raios.
Os apóstolos costumam
falar da graça, mas não distinguem a graça gratuita da graça gratificante;
exortam às boas obras, mas não distinguem a obra operante da obra operada;
inculcam a caridade, mas não separam a infusa da adquirida, além de não
explicarem se essa amável e divina virtude é substância ou acidente, criada ou
incriada; detestam o pecado, mas eu quisera morrer se eles já foram capazes de
definir cientificamente o que chamamos de pecado.
Se São Paulo, pelo
qual devemos julgar todos os outros apóstolos, tivesse tido uma boa teoria do
pecado, teria ele condenado com tanta insistência as polémicas, as contendas,
as querelas, as discussões em torno de palavras? Digamos, pois, com franqueza,
que São Paulo não conhecia as argúcias e as qualidades espirituais que distinguem
os modernos, tanto mais quanto as controvérsias surgidas na primitiva Igreja
não passavam de pueris mesquinharias diante do refinamento dos nossos mestres,
que, em matéria de sutileza, ultrapassaram de muito o próprio sofista Crisipo
Façamos, porém, justiça à sua modéstia, pois não condenam o
que os apóstolos escreveram com pouco acerto e precisão, mas limitam-se a
interpretá-lo de modo favorável, para usar de certa consideração para com a
venerável antiguidade e para com o apostolado. Não seria, aliás, razoável
pretender que os apóstolos tratassem dessas difíceis matérias, quando o seu
divino mestre nunca lhes disse uma palavra a esse respeito.
(…)Os nossos teólogos novos(discutidores) em lugar de
adorarem a impenetrável obscuridade dos nossos mistérios (que justamente por
isso são mistérios), pretendem explicá-los. E de que maneira? Com uma linguagem
imunda e argumentos não menos profanos que os dos gentios. Arrogam-se
insolentemente o direito de definir e discutir verdades incompreensíveis,
profanando assim a majestade da teologia com as palavras e sentenças mais
insulsas e triviais. No entanto, esses insignificantes faladores envaidecem-se
com sua vazia erudição e experimentam tanto prazer em ocupar-se dia e noite com
essas suavíssimas nênias que nem tempo lhes sobra para ler ao menos uma vez o
evangelho e as cartas de São Paulo. E o mais bonito é que, enquanto assim
cacarejam em suas escolas, imaginam-se os defensores da Igreja, que cairia na
certa, se cessassem um momento de sustentá-la com a força dos seus silogismos,
exatamente como Atlas, segundo os poetas, sustenta o céu com as costas.
Contam ainda os
nossos discutidores com outro grande motivo de felicidade. Formam e reformam as
letras arcanas, em suas mãos, como um pedaço de cera, pois costumam dar-lhes a
forma e o significado que mais correspondam ao seu génio. Pretendem que as suas
conclusões acerca das sagradas escrituras, uma vez aceitas por alguns outros escolásticos,
devam ser mais respeitadas do que as leis de Sólon e preferíveis aos decretos
dos papas. Erigem-se em censores do mundo e, se alguém se afasta um pouquinho
das suas conclusões, diretas ou indiretas, obrigam-no logo a se retratar,
sentenciando como oráculos: Essa proposição é escandalosa, esta aqui é
temerária, aquela cheira à heresia, aquela outra soa mal. Dessa forma, nem o
evangelho, nem o baptismo, nem Paulo, nem Pedro, nem Jerónimo, nem Agostinho,
nem o próprio Tomás de Aquino, embora aristotélico fanático, saberiam fazer um
ortodoxo sem o beneplácito desses bacharéis, tão necessário é a sua subtileza
para bem decidir da ortodoxia. Quem viria a saber que para eles não é cristão
aquele que julga idênticas estas duas orações: “Penico fede” e “Penicos fedem”?
Como se teria purgado a Igreja de tantos erros, se não
tivesse podido distingui-los antes de ter sido aplicado o grande sigilo da
universidade às proposições condenadas? Não considerareis felicíssimas essas
pessoas? Mas, prossigamos ainda um pouco. Quantas lindas lorotas não vão esses
doutores impingindo a respeito do inferno? Conhecem tão bem todos os seus
apartamentos, falam com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo
eterno, e das diversas incumbências dos demónios, discorrem, finalmente, com
tanta precisão sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos
da mesma durante muitos anos.
Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam o
trabalho de criar ainda novos mundos, como o mostraram formando o décimo céu,
por eles denominado empíreo e fabricado expressamente para os beatos, sendo
mais do que justo que as almas glorificadas tivessem uma vasta e deliciosa
morada para aí gozarem de todo o conforto, divertindo-se juntas e até jogando a
péla quando tivessem vontade.
Os nossos finos pensadores têm a cabeça tão cheia, tão
agitada por essas bobagens, que decerto não estava mais cheia a cabeça de
Plutão quando, ao querer parir Pallas, implorou o socorro do machado de
Vulcano. Não vos admireis, pois, ao vê-los aparecer nas defesas públicas com a
cabeça cuidadosamente cingida com tantas faixas, pois não fazem senão procurar
impedir, por meio desses respeitáveis liames, que ela arrebente de todos os
lados em virtude da porção de ciência de que o seu cérebro se acha
sobrecarregado.
Rio por ver como eles
estabelecem a sua superioridade teológica. Os que falam mais barbara e
grosseiramente e os que balbuciam de modo que ninguém os possa entender, julgam
atingir o cume quando o público não os pode seguir. Gabam-se disso,
chamando-lhe agudeza e dizendo com arrogância que não falam para o vulgo
profano; e acrescentam que a dignidade das santas escrituras não permite
subordiná-las às regras gramaticais.
Admiremos a majestade dos teólogos! Somente a eles é
permitido falar incorretamente e, quando muito, se concede que o vulgo lhes
dispute essa prerrogativa.
Finalmente, os
teólogos colocam-se imediatamente depois dos deuses e quando, por uma espécie
de religiosa veneração, se ouvem chamar nossos mestres, imaginam ver nesse
título alguma coisa daquele inefável nome composto de seis letras e tão adorado
pelos judeus. Nessa presunção, querem que se escreva MESTRE NOSSO, com letras
maiúsculas
Próximo da felicidade dos teólogos está a daqueles que o
vulgo chama religiosos e monges, se bem que seja falsíssimo o cognome, porque
na maior parte estão longe da religião e encontram-se em todos os lugares mais frequentados.
São de tal forma odiados que, quando por acaso são vistos,
costuma-se tomá-los por aves de mau agouro. Isso não impede que cuidem
escrupulosamente da sua conservação e se considerem personagens de alta
importância.
A sua principal
devoção consiste em não fazer nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao
trabalho de entender os salmos, já se julgam demasiados doutos quando lhes
conhecem o número, e, quando os cantam em coro, imaginam enlevar o céu com a
asnática melodia. Entre esse variegado rebanho, alguns se encontram que se
gabam da própria imundície e da própria mendicidade, indo de casa em casa
esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que parecem mais exigir um
crédito do que pedir a esmola. Albergues, lojas, carros, diligências, todos, em
suma, são por eles importunados, com grande prejuízo dos verdadeiros
necessitados.
É dessa forma que pretendem ser, como dizem eles, os nossos
apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua ignorância, toda a sua
grosseria, todo o seu descaramento.
Nada mais ridículo do que a ordem exacta e precisa que
observam em todos os seus actos: tudo é feito por eles a compasso e à medida.
Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa
composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o hábito
de tal forma e de tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro. Além
disso, devem comer a tal hora, tal qualidade e tal quantidade de alimento,
dormir somente tantas horas, etc.
Ora, todos podem compreender muito claramente que é
impossível conciliar tão precisa uniformidade com a infinita variedade de
opiniões e de temperamentos. Pois é nessa metódica exterioridade que os monges
encontram argumento para desprezar os que eles chamam de seculares. Muitas
vezes, dá causa a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto dessas
santas almas que se vangloriam de professar a caridade apostólica se destruírem
mutuamente. E porque? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor mais carregada
da roupa.
Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de
penitência, mas evitam que se veja a finíssima camisa que trazem por baixo;
outros, ao contrário, trazem externamente a camisa e a roupa de lã sobre a
pele.
Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao
verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho
nem as mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se
distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus
pensamentos.
Muito se ofenderiam se lhes dissésseis que obtiveram isto ou
mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a enorme variedade de sobrenomes
e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que se gabam de chamar-se
franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os reformados, os
menores observantes, os mínimos, os capuchinhos; outros se dizem beneditinos;
estes se chamam bernardinos e aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho;
estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas, etc. Como se não lhes bastasse
o nome de cristãos.
Quase todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas
humanas, que um só paraíso lhes parece um prémio muito modesto para os seus
méritos.
No entanto, Jesus Cristo, desprezando todas essas
macaquices, só julgará os homens pela caridade, que é o primeiro dos seus
mandamentos. Em vão, tremendo no dia do juízo final, apresentarão eles a Deus
um corpo bem nutrido por tudo quanto é peixe; em vão lhe oferecerão o canto dos
salmos e os inúmeros jejuns; em vão sustentarão que arrumaram a barriga com uma
única refeição; em vão produzirão uma porção de práticas fradescas, capazes de
carregar pelo menos sete navios; em vão se gabará este de ter passado sessenta anos
sem tocar em dinheiro, a não ser com dois dedos muitos sujos; em vão mostrará
aquele o seu hábito tão sórdido que até um barqueiro se recusaria a vesti-lo;
em vão se gabará outro de ter vivido cinquenta e cinco anos sempre encerrado em
seu claustro, como uma esponja; em vão aquele fará ver que perdeu a voz de
tanto cantar, e este que a longa solidão lhe perturbou o cérebro; em vão dirá
um outro que o perpétuo silêncio entorpeceu-lhe a língua.
Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário seria
um nunca mais acabar), Jesus Cristo porá
fim a tantas glorificações: De que país vem esta nova raça de judeus? Pois não
dei aos homens uma lei única? e somente essa eu reconheço como verdadeiramente
minha. E estes malandros não dizem sequer uma palavra a respeito da minha lei?
Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança
do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância
da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas
obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se
quiserem, um céu aparte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas frívolas
tradições eles preferiram à santidade dos meus preceitos.
— Qual não será a
consternação de todos eles, ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se
lhes antepõem os barqueiros e os carroceiros?
No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com
suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha
bondade para com eles.
Não posso deixar de vos dar, aqui, um conselho salutar:
nunca desprezeis esta vaga geração bastarda, os mendigos, sobretudo, embora
lhes sejam alheias as coisas públicas. É que os frades, por meio do canal que
se chama a confissão, estão ao par de todos os mais íntimos segredos das
pessoas. Não se pode dizer que ignorem ser um delito capital a revelação das
coisas ouvidas no tribunal da penitência. Isso, porém, não impede que o façam
em diversas circunstâncias, sobretudo quando, alegres e esquentados pelo vinho,
querem divertir-se contando histórias engraçadas. É verdade que, para isso,
usam das maiores cautelas, pois em geral não citam os nomes das pessoas.
Desgraçado daquele
que irritar esses zangões da sociedade! A vingança vem pronta como um raio do
céu. Subitamente, no primeiro discurso ao povo, lançam os seus dardos contra o
inimigo, tão bem pintado pelo padre pregador com suas caridosas invectivas que
seria preciso ser cego para não saber a quem visam atingir. E o mastim só
deixará de ladrar quando lhe taparem a boca com fogaças.
Já que falamos desses bons apóstolos no púlpito, dizei-me se
não é verdade que abandonaríeis qualquer charlatão, qualquer saltimbanco, para
ouvir os seus ridículos discursos. Bem poderiam eles chamar-se, com toda a
honra, os macacos dos retóricos, tal é o prazer que experimentam ao imitar as
regras estabelecidas pelos retóricos sobre a arte de falar. Santo Deus!
observai como gesticulam, como são mestres em modular a voz, como cantam, como
se remexem, como ficam senhores do assunto, como fazem retumbar toda a igreja
com os seus socos e os seus berros.
É no silêncio do claustro que eles apreendem essa veemente
maneira de evangelizar, que passa de um fradeco a outro como um segredo de suma
importância. Principiam sempre as suas mixórdias com uma invocação tomada de
empréstimo aos poetas, e fazem um exórdio sem relação alguma com o assunto que
devem abordar. Devem, por exemplo, pregar a caridade? Começam pelo rio Nilo.
Devem pregar sobre o mistério da cruz? Começam pelo Belo, o fabuloso dragão da
Babilónia. Devem pregar o jejum quaresmal? Começam pelas doze constelações do
zodíaco. Devem pregar a fé? Começam pela quadratura do círculo. E assim por
diante.
Eu mesma, que vos
falo, já ouvi uma vez um desses pregadores, homem de uma loucura consumada,
queria dizer de uma doutrina consumada. Esse homem devia explicar o
impenetrável mistério da Trindade, mas, para patentear a sublimidade do seu
engenho e para contentar os ouvidos dos teólogos, não quis seguir o caminho
habitual. E que estrada tomou? Era mesmo preciso um homem da sua envergadura
para fazer a escolha. Começou o discurso pelo alfabeto e, depois de ter, com
prodigiosa memória, recitado exatamente o A B C passou das letras às sílabas,
das sílabas às palavras, das palavras à concordância do sujeito com o verbo e
do substantivo com o adjetivo. Enquanto isso, todo o auditório estava suspenso
e não poucos perguntavam qual poderia ser o objetivo de tantas frioleiras. Mas,
o padre pregador tirou logo a dúvida dos ouvintes mostrando que elementos da
gramática eram o símbolo e a imagem da sacrossanta Trindade. E o mostrou com
evidência igual à que mal poderia conseguir um geómetra nas suas demonstrações.
É preciso confessar,
aliás, que essa demonstração de sublime eloquência custara uma imensa fadiga ao
nosso non plus ultra dos teólogos,
pois empregou em sua tarefa nada menos de oito bons meses. O pobre homem,
porém, ressentiu-se, e os extraordinários esforços feitos por tão bela
obra-prima tornaram-no mais cego do que uma toupeira, atraída que foi por seu
espírito toda a agudeza da vista. Mas, quem o diria? Muito pouco é o seu
desgosto por ter perdido a vista, e até lhe parece ter adquirido a glória por
bom preço.
Tive ainda o prazer
de escutar outro pregador da mesma têmpera. Era venerável teólogo de oitenta
anos, mas miseravelmente corrompido na teologia. O bom velho subira ao púlpito
para explicar o adorável mistério do Santíssimo Nome de Jesus. Ah! saiu-se às
maravilhas! Demonstrou o orador, mas com uma subtileza imperceptível, que tudo
quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras
componentes do seu augustíssimo nome. Sabeis todos, senhores, a língua latina?
Se houver alguém que não a saiba, poderá dormir um pouquinho. Em primeiro
lugar, fez observar o velho catedrático que o substantivo Jesus só tem em sua
declinação três casos diferentes: o nominativo, o acusativo e o ablativo. Rara
e curiosa doutrina! Como lamento a ignorância dos que não podem saboreá-la!
Mas, que significam esses três casos? E isso é coisa que se pergunte? Pois não
se vêem neles, claramente expressas, as três divinas pessoas da mesma natureza?
Mas, ainda há outra coisa! O primeiro desses três casos, reflecti bem, termina
em s, Jesus; o segundo em m, Jesum; e o terceiro em u, Jesu. Grandes mistérios,
meus irmãos! Essas três letras finais significam que o Salvador é ao mesmo
tempo o Sumo, o Médio e o Último. Restava, porém, resolver uma dificuldade mais
espinhosa que todos os problemas de matemática, e, não obstante, ele o
conseguiu de forma surpreendente. O velho bajoujo teve a felicidade de separar
o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-Su. Mas, que faremos daquele s que,
tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco de
paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn:
ora, em bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! — exclamou o pregador —
quem será tão incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do
mundo? Com essa explicação tão profunda quanto imprevista, todos os ouvintes,
sobretudo os teólogos, foram tomados de total surpresa.
Os nossos doutíssimos
frades, acreditariam passar por maus retóricos se o preâmbulo, como dizem eles,
tivesse a menor conexão com o resto do argumento, não pondo os ouvintes na
necessidade de perguntar: Aonde irá ele chegar por esse caminho?
Também propõem, em forma de narração, algum trecho do
Evangelho, mas superficialmente e de fugida, e, se bem que devesse ser esse o
seu principal dever, eles o tratam de passagem, quase que incidentalmente. De
seguida, como se representassem uma nova personagem, levantam uma questão
teológica, que embora não se coadune muito com o assunto, é por eles julgada
tão necessária que lhes pareceria um pecado contra a arte a não inclusão dessa
digressão. É nessas passagens que os nossos pregadores franzem soberbamente as
teológicas sobrancelhas e atordoam os ouvidos do auditório com magníficos
epítetos dedicados aos seus doutores: solenes, subtis, subtilíssimos,
seráficos, santos, irrefragáveis, etc., etc. É também nessas passagens que,
como uma saraivada, descarregam uma tempestade de silogismos, de maiores, de
menores, de consequências, de corolários, de suposições; e, como bons
intrujões, impingem essas insípidas e insolentes bagatelas da sua escola a uma
multidão de ignorantes.
Eis-nos chegados, ao acto final da comédia, no qual, mais do
que nunca, é mister que se mostrem valentes na arte. Desentranham, então, do armazém
da sua memória, alguma estranha e portentosa fabulazinha, provavelmente tirada
do Espelho Histórico ou dos Feitos Romanos, e a vão remendando e interpretando
no sentido alegórico, tropológico, anagógico, até que, dessa maneira, terminam
o discurso, o qual, com muita propriedade, pela surpreendente variedade de suas
partes, se poderia chamar de verdadeiramente monstruoso.
Façamos, agora, em conjunto, o exame dos seus sermões. Os
nossos reverendos aprenderam, não sei dizer de quem, que a introdução do
discurso deve ser feita devagar e em voz baixa. Em virtude dessa regra, falam
tão baixinho no exórdio que sou capaz de apostar que nem mesmo eles ouvem o que
dizem, como se se dispusessem a falar para não serem entendidos por ninguém.
Além disso, ouviram dizer que, para despertar as emoções, o orador deve
empregar, de vez em quando, a veemência da exclamação. E assim é que, como
fiéis, mas maus observadores desse preceito, quando todos os julgam muitos
tranquilos, eles, de repente e sem nenhuma razão, começam a gritar como
verdadeiros maníacos. É com toda a sinceridade que vos digo que, ao se
mostrarem assim mais doidos do que pregadores, bem se poderia prescrever-lhes
uma boa dose de heléboro, pois bem se pode considerar louco aquele que grita
por gritar.
Ao mesmo tempo, convencidos de que o orador deve animar-se
com o desenvolvimento do discurso, dizem pausadamente os primeiros períodos de
cada parte, mas, logo depois, sempre sem haver razão para isso, levantam a voz
com tanta força que, ao terminarem, a impressão é de que vão desmaiar.
Finalmente, sabendo que as regras da retórica prescrevem que, de vez em quando,
se despertem os ouvintes com alguma engraçada pilhéria, esforçam-se os nossos
pregadores por motejar, mas — santo Deus! — como o conseguem maravilhosamente!
Fazem justamente como o burro da fábula, ao querer tocar a lira.
Às vezes, esses cães da Igreja também sabem morder, mas sem
fazer mal, porque mais parecem beliscar do que ferir.
De duas uma: ou os charlatães aprenderam retórica com os nossos
pregadores, ou os nossos pregadores estudaram eloquência com os charlatães.
Apesar de tudo, nunca faltam os ouvintes. Os que mais concorrem para ouvi-los
são as mulheres e os negociantes, cujo afecto os bons pregadores procuram
conquistar. Os negociantes, vendo-se adulados e justificados, prestam-lhes de
bom grado uma porção de benefícios imerecidos, pois encaram tais donativos como
uma espécie de restituição. Quanto às mulheres, têm elas vários motivos
secretos para amar os religiosos, quando mais não fosse por encontrarem neles
um bálsamo e um consolo contra os desgostos e o enjôo do laço conjugal.
Parece que já
demonstrei suficientemente quanto me devem essas cabeças encapuzadas que, com
vãs devoções, com cerimônias ridículas, com berros e ameaças, exercem sobre o
povo uma particular tirania, na ânsia de serem comparados aos Paulos e aos
Antônios. Mas, percebo que já falei muito sobre esses cómicos ingratos, que
sabem tão bem dissimular os meus favores como fingir-se sinceramente
religiosos. Deixo-os, pois, com muito prazer.
Já é tempo de dizer alguma coisa sobre os príncipes e os
grandes, que são justamente o oposto dos velhacos e impostores de que acabei de
falar, pois prestam-me o seu culto sem nenhuma reserva e com a franqueza
própria do seu estado. Se esses felizes semideuses tivessem na cachola meio
grama apenas de cérebro, que haveria no mundo de mais triste e miserável que a
sua condição? Quem quer que se desse ao trabalho de refletir atentamente sobre
os deveres de um bom monarca, bem longe de querer usurpar uma coroa com o falso
juramento, o parricídio, o liberticídio, em suma, com os mais execrandos
delitos, tremeria ante o aspecto de um cargo tão enorme.
Com efeito,
observemos em que consistem as obrigações de um homem que é posto à testa de
uma nação. Deve dedicar-se dia e noite ao bem público e nunca ao seu interesse
privado; pensar exclusivamente no que é vantajoso para o povo; ser o primeiro a
observar as leis de que é autor e depositário, sem desviar-se nunca de nenhuma
delas; observar, com firmeza e com os próprios olhos, a integridade dos
secretários e dos magistrados; ter sempre presente que todos têm os olhares
fixos na sua conduta pública e privada, podendo ele, à maneira de um astro
salutar, influir beneficamente sobre as coisas humanas, ou, como um infausto
cometa, causar as maiores desolações. Não deve esquecer-se nunca de que os
vícios e os delitos dos súbditos são infinitamente menos contagiosos que os do
senhor, e repetir diariamente, a si mesmo, que o príncipe se acha numa elevação,
razão por que, quando dá maus exemplos, a sua conduta é uma peste que se
comunica rapidamente, fazendo enormes estragos; refletir que a fortuna de um
monarca o expõe continuamente ao perigo de abandonar o justo caminho; resistir
aos prazeres, à impureza, à adulação, ao luxo, pois nunca estará
suficientemente preparado para reprimir tudo o que pode seduzi-lo. Deve,
finalmente, conservar sempre na memória que, além das insídias, dos ódios, dos
temores, de todos os males a que o príncipe se acha exposto a cada momento por
parte dos seus súbditos, deverá ele, mais cedo ou mais tarde, apresentar-se perante
o tribunal do Rei dos reis, no qual lhe serão pedidas contas exatas de todos os
seus menores actos, sendo ele julgado com rigor proporcional à extensão do seu
domínio.
Repito, pois, mais uma vez, que, se um príncipe refletisse
bem sobre tudo isso, como o teria feito se fosse um pouquinho sábio, decerto
não poderia comer nem dormir tranquilamente um só dia em sua vida. Mas, não vos
arreceeis, pois consegui um remédio para isso. Com o favor da minha inspiração,
os príncipes descansam tranquilos sobre o seu destino e sobre os seus
ministros, vivendo na ociosidade e só mantendo relações com pessoas que possam
contribuir para diverti-los de qualquer aflição ou aborrecimento.
Acham eles que
cumprem bastante os deveres de um bom rei divertindo-se diariamente nas
caçadas, possuindo belíssimos cavalos, vendendo em benefício próprio os cargos
e os empregos, servindo-se de expedientes pecuniários para devorar as energias
do povo e engordar à custa do sangue dos escravos. Não se pode negar que usem
de cautela na aplicação dos impostos, pois alegam sempre títulos de
necessidade, pretextos de urgência, e, embora essas exacções não passem, no
fundo, de mera ladroeira, esforçam-se, todavia, por encobri-las com o véu do
interesse público, da justiça e da equidade. Dirigem ao povo belas palavras,
chamando de bons, fiéis, afeiçoadíssimos os seus súbditos, e, enquanto furtam
com uma das mãos, acariciam com a outra, prevenindo assim os seus lamentos e
acostumando-os, aos poucos, a suportar o jugo da tirania.
Dito isso, quero fazer uma suposição: imaginai no trono (coisa
que, aliás, acontece frequentemente), imaginai no trono, dizia eu, um homem
ignorante das leis, quase inimigo do bem público, que só tem em mira o seu
interesse pessoal, escravo dos prazeres, menosprezador das ciências, que
despreza a verdade, que não pode escutar uma linguagem sincera, que tem a
felicidade dos escravos como último dos prazeres, que não segue senão suas
paixões, que mede cada coisa pela própria utilidade. Colocai nesse homem a
gargantilha de ouro, ornamento que significa o complexo e a união de todas as
virtudes; colocai-lhe na cabeça a coroa enriquecida de pedras preciosas, o que
o adverte de estar na obrigação de superar todos os outros em toda sorte de
heróicas virtudes; ponde-lhe o ceptro na mão, ceptro que é o símbolo da justiça
e de uma alma perfeitamente incorruptível; vesti-o, finalmente, com a minha
púrpura, que denota um vivo amor ao povo e um ardentíssimo zelo por sua
felicidade. Se o príncipe comparasse todas estas insígnias com a sua vida,
coraria, não poderia deixar de sentir vergonha, e recearia sempre que um
malicioso intérprete transformasse todo este culto trágico numa comédia hilariante.
O que direi dos grandes da corte, dos cortesãos? Não há
escravidão mais vil, mais repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se
submete essa ridícula espécie de homens, que, não obstante, costuma ganhar para
si, de alto a baixo, o resto dos mortais.
Convenhamos, porém, que são modestíssimos num único ponto: é
que, satisfeitos de possuir o ouro, as pedras, a púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude,
cedem facilmente aos outros o cuidado
da sabedoria e da virtude.
Para eles, a maior
felicidade consiste em ter a honra de falar ao rei, de chamá-lo de Senhor e
Mestre absoluto, de fazer-lhe um breve e estudado cumprimento, de poder
prodigalizar-lhe os títulos faustosos de Vossa Majestade, Vossa Alteza Real,
Vossa Serenidade, etc. etc.
Toda a habilidade dos cortesãos consiste em trajar-se com
propriedade e magnificência, em andar sempre bem perfumados e, sobretudo, em
saber adular com delicadeza. Quanto ao espírito e aos costumes, são verdadeiros
Feáceos, verdadeiros amantes de Penélope, a esse respeito, sabeis o que diz
Homero, e, melhor do que eu, vo-lo repetirá a ninfa Eco.
O vil escravo do monarca, quando não deva fazer a corte ao
senhor (pois nesse caso se levantaria ao primeiro canto do galo), costuma
dormir até ao meio-dia, e, mal desperta, o mercenário capelão, que já esperava
por esse momento, resmunga-lhe às pressas uma missa. Em seguida, passa a cuidar
do almoço, e daí a pouco, do jantar, ao qual sucedem imediatamente os jogos de
dados e de xadrez, os bobos, as cortesãs, os divertimentos inconvenientes e
todos os outros prazeres chamados passatempos. Esses devotos exercícios não se
fazem sem uma ou duas merendas; depois, vem a ceia, e se passa a noite no meio
das garrafas. E assim, sem pensar que se nasce para morrer, a vida passa
rapidamente. As horas, os dias, os meses, os anos, os lustros transcorrem para
eles sem nenhum aborrecimento, como um relâmpago.
O que a esses indivíduos mais agrada é terem pesadas
correntes de ouro à volta do pescoço, ostentando assim mais a robustez do que a
virtude.
Êmulos dos príncipes, os sumos pontífices, os cardeais e os
bispos quase os superam.
Imaginai, agora, que um bispo, por divertimento, se pusesse
a considerar o seu cortejo e ornamentos pontificais. Mas se algum reflectisse que a sua veste de
linho, branca como a neve, significa uma vida completamente imaculada; que a
mitra bicórnia, cujas extremidades se unem em um nó, denota profundo
conhecimento do Velho e do Novo Testamento; que as mãos enluvadas exprimem um
coração depurado de todo contágio mundano na administração dos sacramentos; que
a cruz dos sapatos o adverte de que deve velar continuamente pelo rebanho sob a
sua guarda; que a cruz prelatícia que lhe pende do peito é sinal de vitória
completa sobre as paixões humanas, — se o nosso prelado, repito, reflectisse
sobre todas essas belas coisas e muitas outras que eu suprimo, não será verdade
que se tomaria magro, pensativo, macilento, hipocondríaco? Chegaria a causar
piedade!
Mas, não, não duvideis, eu remediei tudo. Aconselhei a esses
pretensos sucessores dos apóstolos que seguissem um caminho inteiramente
oposto, e ninguém jamais soube aproveitar melhor os meus conselhos.
Com efeito, o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e
Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, quanto ao rebanho, que dele
cuide Jesus Cristo. Aliás, já não possuem os arcediagos, os vigários gerais, os
confessores, os frades e mil outros fiéis mastins, que estão sempre em guarda
contra o lobo do inferno?
Os bispos chegaram a esquecer que o seu nome, tomado ao pé
da letra, significa trabalho, zelo, solicitude pela redenção das almas. Mas —
por Baco! — nunca se esquecem das honrarias e do dinheiro, abrindo então os
olhos.
Gabam-se os veneráveis cardeais de descenderem em linha reta
dos apóstolos, mas eu desejaria que filosofassem um pouco sobre os seus
hábitos, e fizessem a si mesmos esta apóstrofe: “Se eu descendo dos apóstolos,
porque não faço, então, o que eles fizeram? Não sou dono, mas simples
distribuidor das graças espirituais, e muito breve terei de prestar contas da
minha administração. Que significa esta nívea candidez do meu vestido, se não
uma suma pureza de costumes? Que quer dizer esta sotaina de púrpura, se não um
ardente amor a Deus? Que denota esta capa da mesma cor (tão ampla e espaçosa
que bastaria para cobrir não somente a mula do eminentíssimo, mas até um camelo
junto com o cardeal), se não uma caridade ilimitada e sempre pronta a socorrer
o próximo, isto é, a instruir, a exortar, a acalmar o furor das guerras, a
resistir aos maus princípios, a dar de boa vontade o próprio sangue e as
riquezas pelo bem da Igreja? Para que tantos tesouros? Aqueles que pretendem representar
o antigo colégio dos apóstolos não deveriam, antes de tudo, imitar a sua pobreza?”
Afirmo que, se os cardeais
fizessem a si mesmos semelhante apóstrofe, reflectindo seriamente sobre todos esses
pontos, de duas uma: ou não ambicionariam o lugar que ocupam e de boa vontade o
deixariam, ou levariam uma vida solícita e laboriosa, justamente como faziam os
primeiros apóstolos da Igreja.
Prosternemo-nos, agora, aos pés do Sumo Pontífice, e
beijemos-lhes religiosamente as santas pantufas. Os papas dizem-se vigários de
Jesus Cristo, mas, se procurassem conformar-se à vida de Deus seu mestre; se
sofressem pacientemente os seus padecimentos e a sua cruz, mostrando o mesmo
desprezo pela vida; se reflectissem seriamente sobre o belo nome de papa, isto
é, de pai, e sobre o santíssimo epíteto com, que são honrados, —quem seria mais
infeliz do que eles? Quem desejaria comprar, com todos os haveres, esse cargo
eminente, ou quem, uma vez elevado ao mesmo, desejaria, para sustentar-se nele,
empregar a espada, os venenos e toda sorte de violências? Ai! quantos bens
perderiam eles se a sapiência se apoderasse por um instante do seu ânimo!
A sapiência?! Bastaria que tivessem um grãozinho apenas
daquele sal de que fala o Salvador. Perderiam, então, aquelas imensas riquezas,
aquelas honras divinas, aquele vasto domínio, aquele gordo património; aquelas
faustosas vitórias, todos aqueles cargos, aquelas dignidades e aqueles ofícios
de que participam; todos aqueles impostos que recebem, quer nos próprios
Estados, quer nos alheios; o fruto de todos aqueles favores e de todas aquelas
indulgências, com as quais vão traficando tão vantajosamente; aquela numerosa
corte de cavalos, de mulas, de servos; aquelas delícias e aqueles prazeres de
que gozam continuamente. Observai, observai quantas coisas precisariam perder,
sendo que isso é apenas uma sombra da felicidade pontifícia. Todos esses bens
seriam logo sucedidos pelas vigílias, pelos jejuns, pelas lágrimas, pelas preces,
pelos sermões, pelas meditações, pelos suspiros e mil outros trabalhos de
natureza semelhante.
Acrescentemos ainda que tantos escritores, tantos copistas,
tantos notários, tantos advogados, tantos promotores, tantos secretários,
tantos banqueiros, tantos escudeiros, tantos palafreneiros, tantos rufiões
(silêncio neste ponto, pois é preciso respeitar os ouvidos castos), em suma,
toda aquela prodigiosa turba de pessoas de toda classe, que arruínam (que
honram, queria eu dizer) a sé de Roma, — sim, digamos também que toda essa
turba só poderia esperar morrer de fome. Seria o mais bárbaro, o mais
abominável, o mais detestável de todos os delitos querer reduzir à sacola e ao
bastão os supremos monarcas da Igreja, os verdadeiros luminares do mundo.
Dizem eles que a Pedro e a Paulo competia viver de esmolas,
ficando com todo o peso do pontificado, mas eles podem comodamente sustentá-lo,
reservando-se eles, para si, somente o que no mesmo existe de esplendoroso e
voluptuoso.
Agora, pergunto: não fazem muito bem? Graças a mim, por
conseguinte, é que nunca houve um papa que vivesse no ócio e na moleza. Como as
funções episcopais consistem em ornamentos misteriosos e quase teatrais, em
cerimónias, em títulos faustosos de beatíssimo, reverendíssimo, santíssimo, em
bênçãos e maldições, julgam eles que já fazem bastante a vontade de Jesus
Cristo, sem suspeitarem o que lhes poderá este dizer-lhes um dia.
Agora não é mais necessário fazer milagres; instruir o povo
dá muito trabalho; ensinar as escrituras cheira à escolástica; para pregar,
seria preciso tempo; chorar convém somente às mulheres; ser pobre, oh! que
coisa feia! deixar-se vencer é vergonhoso demais e indigno de um homem que mal
admite que lhe beijem o beatíssimo pé os reis mais poderosos; finalmente,
morrer, oh! é a mais amarga de todas as coisas! ser crucificado — irra! — é uma
infâmia horrível!
Restam-lhe só como
armas as doces bênçãos de que falou São Paulo, as anatematizações as pinturas
vingadoras e aquele terribilíssimo castigo pelo qual um beatíssimo padre pode
mandar à vontade qualquer alma para o inferno.
Os nossos santíssimos padres em Cristo e vigários de Cristo empregam ainda com maior zelo esse espantoso
castigo do no caso daqueles que, à instigação do demónio, tentam diminuir ou
danificar o património de São Pedro. (Se bem que ele, bom apóstolo dizia ao seu
Mestre: — Deixamos tudo para seguir-te.)
É por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios, e
rececebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica
aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que
nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus Cristo,
desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para
sustentar as suas razões.
Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem
derramar o sangue cristão. — Mas, que importa? — respondem os papas — Estamos
defendendo apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas quando
tivermos vingado a esposa (Igreja) de Jesus Cristo contra os seus inimigos.
Eu desejaria saber, porém, se haverá para a Igreja inimigos
mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar
Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis
lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o
destroem com exemplos pestilentos. Além disso, assim como a Igreja cristã foi
fundada com sangue, confirmada com sangue, dilatada com sangue, assim também os
papas a governam com sangue, como se nunca Jesus Cristo tivesse existido para
protegê-la e sustentá-la.
A guerra é, por natureza, tão cruel, que muito mais conviria
às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a atribuíram às fúrias
do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes; tão iníqua que a
fazem melhor perversos ladrões do que homens probos e virtuosos; finalmente,
tão ímpia que nenhuma relação possui com Jesus Cristo nem com sua moral. Isso
não impede que alguns pontífices abandonem todas as funções pastorais para
consagrar-se inteiramente a esse flagelo da humanidade. Entre esses papas
guerreiros, encontram-se até velhos que agem com todo o vigor da juventude, que
nenhuma consideração têm pelo dinheiro alheio, que suportam corajosamente a
fadiga e não têm o menor escrúpulo em fazer subverter as leis, a religião e a
humanidade.
Mas, não faltam eruditos aduladores para dar a esse
manifestíssimo delírio o nome de zelo, piedade, valor. E acham razões para
provar que desembainhar a espada e cravá-la no coração de um irmão não é
absolutamente infringir o grande mandamento da caridade para com o próximo.
(…)chegam a sustentar que é dever de um bispo entregar a
alma a Deus para defender a honra da sua dignidade. Os padres também estão, em
geral, animados pelo mesmo espírito, não querendo de modo algum degenerar da
santidade dos prelados. Assim, não podeis imaginar com que coragem empunham as
armas toda a vez que se trata dos seus dízimos: espadas, fuzis, pedras, nada
lhes escapa.
Esses ministros do altar não cabem em si de alegria quando
descobrem, nas obras dos antigos, alguma passagem com que possam aterrar as
consciências e provar ao vulgo que lhes deve ainda muito mais do que os
dízimos.
Não há mais perigo de que lhes entre na cabeça o que leram
em muitíssimos lugares sobre os seus deveres para com o povo. Deveriam ao menos
lembrar-se de que a tonsura significa a obrigação de viverem livres de qualquer
paixão humana, para se consagrarem totalmente às coisas do céu.
Muito longe de fazerem tais reflexões, incidem em toda a sorte
de volúpia e julgam cumprir plenamente os seus deveres e as obrigação de
praticar o bem, como dizem eles, quando murmuram, às pressas e entre os dentes,
o ofício divino.
Santo Deus! aposto que não há nenhuma divindade que queira
escutá-los e, muito menos, que possa compreendê-los. Nenhuma divindade?! Estou
convencida de que nem eles próprios se entendem entre si quando zurram em coro.
Mas, tanto os sacerdotes
como os profanos sabem muito bem quais são os seus direitos e os seus
emolumentos. O que é incómodo os senhores padres costumam, prudentemente,
descarregar sobre as costas alheias, numa devolução recíproca (…) os ministros
dos santuários costumam, modestamente, descarregar sobre o povo o peso da
devoção e da piedade, e o povo, por sua vez, passa-o aos que denomina pessoas
religiosas, como se não tivesse nenhuma relação com a Igreja e não tivesse
feito nenhum voto no batismo. (…)finalmente, todos se põem de acordo e
pretendem que a devoção pertença aos mendicantes, que acabam por enviar a bola aos cartuxos, em cujo retiro se
pode afirmar, efectivamente, que a piedade está sepultada, de tal forma se
esforçam eles por viverem escondidos do mundo.
Conduta semelhante têm os generais da milícia clerical. Os
papas, sempre ativos e incansáveis em sua tarefa de receber dinheiro,
descarregam sobre os bispos tudo o que há de incómodo no apostolado; os bispos
sobre os párocos; os párocos sobre os vigários; os vigários sobre os frades
mendicantes; e os mendicantes, finalmente, enviam as ovelhas aos pastores
espirituais, que sabem tosquiá-las e tirar-lhes proveito da lã.
A sabedoria só pode inspirar temor, o que faz com que a
condição de um verdadeiro filósofo chegue a causar piedade aos homens de bom
senso. Com o cérebro repleto de belíssimas e sólidas especulações, quer
físicas, quer morais, sente o estômago doer de fome e nem sequer sabe onde
encontrar o necessário. Além disso, é abandonado, desprezado, odiado, evitado
por todos, enquanto os tolos, verificando que o precioso metal que os anima
constitui o móvel maior da sociedade civilizada, são elevados aos empregos
públicos e em tudo favorecidos pela fortuna.
Eis porque os que se
consideram felizes quando acolhidos pelos grandes não têm necessidade alguma da
sabedoria, que é a coisa mais detestada nas cortes e nos paços.
Quereis enriquecer-vos no comércio? Renunciai à sabedoria,
porque, do contrário, como poderíeis fazer um falso juramento sem vos sentirdes
dilacerar por um horrível remorso? Como poderíeis deixar de enrubescer quando
surpreendidos numa mentira? Como sufocaríeis os ásperos e tormentosos
escrúpulos que sentem os sábios pelo furto e pela usura? Como poderíeis deixar
de travar convosco uma contínua guerra íntima?
Ambicionais as
dignidades e os bens eclesiásticos? Um burro e uma besta poderiam consegui-los
mais facilmente que um filósofo. Amais a volúpia? As mulheres que a têm como
principal alvo procuram de alma e coração os tolos e fogem dos sábios como dos
escorpiões.
Quem, finalmente, deseje gozar os prazeres da vida, deve
cortar qualquer relação com os sábios e preferir tratar com a escória popular.
Em suma, para resumir tudo numa única ideia, voltai-vos para
todos os lados, e vereis que os papas, os príncipes, os juízes, os magistrados,
os amigos, os inimigos, os grandes, os pequenos, todos, sem exceção, agem em
virtude do ouro sonante. E, como o filósofo, fora do estritamente necessário,
considere como esterco esse metal, não é de admirar que todos desprezem a sua
intimidade.
Horácio: É um grande
prazer ser louco quando se deseja sê-lo.
Cícero: Todas as
coisas estão cheias de loucura.
Eclesiastes, capítulo
I: o número dos loucos é infinito.
Jeremias: Todos os homens
tornaram-se loucos à força de sabedoria. E atribui a sabedoria somente a
Deus, deixando aos homens a loucura como predicado. Um pouco antes, diz ele: O homem não deve gabar-se da sua sabedoria.
Mas, porque dizeis isso, oh santo, oh divino oráculo do futuro? É porque (assim
me parece ouvi-lo responder) o homem não tem nenhuma ideia da sabedoria.
Voltemos ao Eclesiastes. Quando Salomão, esse grande monarca
iluminado do céu, faz aquela patética exclamação moral: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade! — não vedes, senhores, que, sem
gaguejar, ele declara que a vida humana, como também eu já vos disse tantas
vezes, não é outra coisa senão um divertimento da Loucura?
E quando o citado
Eclesiastes diz ainda que o louco muda
como a lua e o sábio é estável como o sol, — que imaginais que isso
signifique? Não significará, talvez, que todos os homens são loucos e que
somente a Deus pertence o título de sábio? Com efeito, por lua entendem os
intérpretes a natureza humana, e por sol a fonte da verdadeira luz, que é Deus.
Também o Salvador apoia essa verdade quando diz, no Evangelho, que o epíteto de
bom só cabe a Deus. Ora, segundo os estóicos, sábio e bom são dois sinónimos;
portanto, todos os homens, sendo maus, são também, por uma consequência
necessária, todos malucos.
Diz ainda Salomão no capítulo XV: A tolice é a alegria do tolo, o que significa que, sem a loucura,
nada se acha de agradável na vida. E em outra passagem: Progredir na ciência é o mesmo que progredir na dor, e, onde há muito
sentimento, há também muita contrariedade. Não repetirá esse mesmo
excelente pregador, no capítulo VII, o mesmo pensamento? — A tristeza — diz ele — mora
no coração do sábio, e a alegria no do tolo. Não contente de ter conhecido
a fundo a sabedoria, teve ele o desejo de conhecer também a loucura. Pensais que eu esteja
gracejando? Ouvi o oráculo, capitulo I: Apliquei-me
ao conhecimento da prudência e da doutrina, dos erros e da loucura. É
preciso notar que, nessa passagem, sou citada em último lugar, a fim de me ser
conferida a honra que mereço, como posso prová-lo. De facto, foi o Eclesiastes
que o escreveu: ora, na ordem
eclesiástica, segundo o cerimonial em uso, o primeiro em dignidade é o que
ocupa o último posto, de acordo com o preceito de Cristo.
Que a loucura é realmente superior em dignidade à sabedoria
prova-o, à evidência, o autor do Eclesiastes, seja ele quem for, no capitulo
XLIV : O homem que esconde a própria
loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria.
Dizei-me, por favor, o que será melhor ocultar: as coisas
raras e preciosas, ou as vis e triviais. Como, não respondeis? Porque
permaneceis imóveis como se não passásseis de estátuas? Mas, não será o vosso
silêncio que me fechará a boca. Os gregos responderão por vós e dirão que a bilha se deixa sem receio à porta, ao
passo que as coisas preciosas se conservam escondidas. Receando, porém, que
profaneis essa sentença, rejeitando-a, acho conveniente advertir-vos que é de
Aristóteles, o deus dos nossos mestres.
Continuemos: haverá aqui alguém bastante louco que, de bom
grado, seja capaz de abandonar na rua o seu dinheiro e as suas jóias? Não o
creio, naturalmente! Todos vós, ao contrário, me pareceis, se não me engano,
desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de precioso e
que só se descuidam das coisas que pouco ou nada importa perder. Assim, pois,
exigindo a prudência que se escondam as coisas de valor e que não se deixem
expostas senão as coisas de pouca valia, a minha causa venceu, triunfou!
O Eclesiastes ordena que se manifeste a sabedoria e se
oculte a loucura.
Mas, isso não basta. As sagradas escrituras atribuem ainda
ao louco a candura de ânimo, da qual não é susceptível o sábio, embora se
julgue sempre melhor do que os outros. É, pelo menos, como interpreto a
seguinte passagem do Eclesiastes, capítulo X:
Ao passear, o louco supõe que todos os que encontra sejam loucos como ele.
Quem pode deixar de admirar essa candura e essa sinceridade?
Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos, mas a
loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos
os outros homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito. Salomão julgava ter
chegado a tanta perfeição, dizendo no capítulo XXX: Eu sou o mais louco de todos os homens. São Paulo, esse
evangelista, esse apóstolo das gentes, não passou sem atribuir-se o meu nome,
pois disse aos coríntios: Falo como fora
de mim, ou ainda mais(de tal maneira considerava ele vergonhoso ser
superado em loucura).
São Paulo falando de si mesmo, diz: Suportai pacientemente os tolos... Considerai-me também um tolo... Não
falo segundo Deus, mas como se fosse tolo... Somos tolos por Jesus Cristo.
Que glória para mim é o facto de um autor de tanto peso referir-se tão
favoravelmente à Loucura! No entanto, o mesmo São Paulo, não contente com isso,
passa a recomendar a loucura como coisa sumamente necessária à salvação. Aquele, dentre vós que quiser parecer sábio,
deve tomar-se louco, para poder fazer-se sábio. Não chamou Jesus Cristo
loucos, em São Lucas, àqueles dois discípulos com os quais se encontrou na
estrada, depois da ressurreição?
Não obstante, isso não
me causa tanta surpresa como o que disse o apóstolo São Paulo: A loucura de Deus é melhor que a loucura
dos homens.
Ora, de acordo com a interpretação de Orígenes, não se pode
aplicar essa loucura à opinião dos homens. Do mesmo género é esta passagem: O mistério da cruz é uma loucura para os que
perecem. Mas, porque hei de me cansar invocando tantos testemunhos? Cristo
já nos salmos místicos, diz ao Pai,: Conheces
a minha loucura? Não é, pois, sem motivo, ou melhor é visivelmente por essa
razão que os loucos são os prediletos de Deus. Nesse particular, o Ser Supremo
assemelha-se aos príncipes da terra que em geral, não gostam nada das pessoas
sensatas e honestas. No entanto, apreciaam muito os estúpidos, os simples e os
imbecis. Cristo, igualmente, condena sempre e detesta os sábios que só confiam
na própria prudência.
São Paulo disse nítida e claramente: Deus elegeu o que, para o mundo, ou ainda: Deus quis salvar o mundo pela loucura E assim o fez, decerto, porque
não teria podido fazê-lo com a sabedoria. O próprio Deus diz pela boca do
profeta Isaías: Eu confundirei a
sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes. E a humanidade
de Jesus dá graças a si mesmo por ter ocultado aos sábios o mistério da
salvação, para revelá-lo aos pequenos, isto é, aos maluquinhos, com toda a força
e energia do vocábulo grego… Pela mesma razão, podemos explicar ainda a
contínua guerra que, segundo o evangelho, fez o Salvador aos doutores da lei,
aos escribas e aos fariseus, ao mesmo tempo que tomava o partido do vulgo
ignorante. Desgraçados de vós, ó escribas e fariseus! Não significará essa
imprecação o mesmo que desgraçados de vós, ó sábios? Finalmente, o Senhor do
universo só costumava conversar com os meninos, as mulheres e os pescadores.
Também Jesus Cristo preferia, entre tantas espécies de animais, os que mais se
afastavam da sagacidade da raposa: escolheu um burrinho para o seu carro de
triunfo, quanto teria podido cavalgar um soberbo leão. O Espírito Santo da
Santíssima Trindade, desceu não em forma de águia ou de gavião, mas de pomba.
Além disso, as sagradas escrituras falam frequentemente de animais que têm um
instinto muito limitado, que são os veados e os cordeiros. E não é de ovelhas
que Jesus Cristo chama os que são eleitos para gozar com ele do reino dos céus?
Ora, onde haverá animal mais estúpido do que a ovelha? Antigamente, por
desprezo e injúria, costumava-se dar esse nome às pessoas estúpidas e idiotas.
Ainda mais: em virtude da comparação dos eleitos com as ovelhas, Jesus Cristo
vangloria-se do título de pastor e gosta muitíssimo do nome de Cordeiro. De
fato, é com esse nome que São João Batista o faz conhecer, quando diz: Eis o Cordeiro
de Deus! E sob essa forma é ele igualmente representado em diversas visões do Apocalipse.
Mas, quais são as nossas conclusões do que aqui fica dito?
Ei-las: Todos os mortais são loucos, até mesmo os pios.
Jesus Cristo, que é a sabedoria do Pai, procede como tolo ao
unir-se à natureza humana da forma por que o fez, isto é, tornando-se pecador
para redimir o pecado. Observai como o Salvador executou dignamente o seu
projeto. Tendo estabelecido, em seus decretos, que salvaria os homens com a
loucura da cruz, utilizou nessa tarefa apóstolos grosseiros e idiotas,
recomendando-lhes calorosamente que evitassem a sabedoria e
seguissem a loucura, e indicando-lhes o exemplo das crianças, dos lírios, e dos
passarinhos, seres sem nenhum artifício e sem inquietações que só se orientam
pelas leis da natureza e pelo mecanismo do instinto.
Não quer que sejam solícitos, no caso de terem de responder
perante os tribunais; não quer que se preocupem com os cuidados do tempo e do
momento; não quer que confiem na prudência, mas que lhes confiem inteiramente
as almas.
E foi por essa razão que o grande Arquiteto do universo
proibiu que o primeiro e lindo par de esposos, por ele feitos e unidos em
matrimónio, provassem o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, sob pena de
sua desgraça e morte. É a melhor prova de que a ciência é o veneno da
felicidade.
São Paulo rejeita abertamente a ciência, como perniciosa e
causadora de vaidade, e creio que São Bernardo exprimiu o mesmo sentimento
desse apóstolo, ao chamar monte do saber àquele monte no qual o soberbo Lúcifer
fixou sua morada.
Não me parece que deva silenciar sobre o sumo crédito de que
a loucura goza no céu, pois que aí facilmente se obtém o perdão com o meu nome,
ao passo que não é favorável o da sabedoria.
Pecou um homem com conhecimento de causa? Não penseis que
procure alegar suas luzes, pois pode considerar-se feliz quando pode cobrir-se
com o manto da loucura.
É por isso que Aarão, no livro XII dos Números, se não me
engano, querendo implorar o perdão para si e para a sua mulher, exclama: Rogo-vos, Senhor, que não nos condeneis por
esse pecado que cometemos por loucura!
O mesmo fez Saul, para desculpar-se com David: Logo se vê que agi como louco! O próprio
David procurando evitar a vingança divina, exclamou: Senhor! Suplico-vos que canceleis a iniquidade da partida do vosso
servo, pois agimos como loucos! Bem vedes que não podia esperar ser
favorecido, se não aduzisse como desculpa a sua tolice e a sua ignorância.
Mas, de todas as
provas, a mais decisiva é a prece do Salvador na cruz pelos seus crucificadores:
— Perdoai-lhes, Pai, — disse ele, e o
Deus moribundo não aduziu em favor deles outra desculpa senão a da loucura,
acrescentando: porque não sabem o que
fazem.
Disse São Paulo a Timóteo: Deus usou de misericórdia para comigo porque a minha incredulidade era
efeito da minha ignorância. Mas, que significa essa ignorância? Não
significará mais estultice do que malícia? Qual é o sentido destas palavras:
Deus usou de misericórdia para comigo porque, etc? Não será, talvez, o de
demonstrar claramente que, sem o crédito e a recomendação da loucura, São Paulo
não teria obtido nenhuma misericórdia? O místico salmista mostrou-se,
igualmente, da minha opinião naquela passagem que eu me esqueci de pôr no seu
lugar: Dignai-vos Senhor, esquecer os
delitos da minha juventude e das minhas ignorâncias. Escusa-se por dois
títulos: um, pela juventude, idade de que sou a fiel e inseparável companheira;
outro, pela ignorância, e notai que exprime a sua ignorância no plural, o que
mostra a força imensa da sua loucura.
Para terminar logo uma enumeração que por natureza não
acabaria nunca, quero vos fazer ver, sucintamente, que a religião cristã se
coaduna perfeitamente com a loucura e não tem a menor relação com a sabedoria.
Como essa proposição pareça um verdadeiro paradoxo, não serei tão irrazoável
que pretenda me acrediteis baseados apenas em minha boa fé. Vamos, pois, às
provas.
Em primeiro lugar, vemos os que, com maior solicitude,
intervém nos sacrifícios e outras cerimónias de culto, não são as pessoas mais
sensatas, mas as crianças, os velhos as mulheres e os ignorantes. E de onde
lhes vem o desejo de se aproximarem tanto do altar e o transporte que
experimentam pela devoção? Vem de um impulso totalmente mecânico da natureza.
Em segundo lugar, os fundadores da religião cristã, fazendo
profissão de uma maravilhosa simplicidade, eram os inimigos mais declarados do
estudo das ciências.
Finalmente, é impossível achar loucos mais extravagantes que
os que se abandonam inteiramente ao ardor da piedade cristã. Jogam fora o
dinheiro como a água, desprezam as injúrias, deixam-se enganar, não fazem
distinção entre os amigos e os inimigos, sentem horror pela volúpia: a
abstinência, as vigílias, as lágrimas, os padecimentos, os ultrajes, eis todas
as suas delícias; além disso, odeiam a vida e desejam a morte, ao ponto de
parecerem absolutamente privados de senso comum, não passando de corpos sem
alma e sem sentimento. Que nome lhes daremos, se o de loucos não lhes fica bem?
Não devemos, pois, estranhar que os judeus tenham considerado
os apóstolos como ébrios de vinho doce. O juiz Festus não teria razão ao tomar
São Paulo por um extravagante.
Sustentemos, diante dessa ilustre sociedade de loucos, uma
tese inteiramente nova e inesperada. Sim, meus caros senhores, quero
mostrar-vos que a felicidade dos cristãos, essa felicidade almejada com tantas
penas e tantos trabalhos, não é senão uma espécie de loucura.
Como! vós me olhais de soslaio e com desdém?
Devagar, devagar: não
nos apeguemos às palavras, que não passam de sons articulados e arbitrários.
Limitemo-nos ao exame da coisa.
Entro no assunto: O
sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha aquela
dos platónicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma
está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida
pelo peso da máquina orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar
a verdade. É por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a
meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam a nossa alma
das coisas visíveis e corporais. Por isso, quando a alma emprega os órgãos do
corpo de acordo com a economia natural, costuma dizer-se sábia e sã; mas,
quando, rompendo os liames, procura fugir do cárcere, pôr-se em liberdade,
então diz-se em estado de loucura.
Quando essa desordem
provém de enfermidade ou alteração dos órgãos, dão-lhe por unanimidade o nome
de loucura. Vemos então esses felicíssimos loucos que predizem o futuro, que
conhecem línguas e ciências sem nunca as terem aprendido, e que mostram ter em
si mesmos algo de divino. E de onde provém esse prodígio?
Creio não haver
dúvida de que provém da alma, que, tornando-se um pouco mais livre da servidão
do corpo, começa a utilizar sua força natural. Creio provir igualmente dessa
causa a faculdade que têm os moribundos de dizer coisas prodigiosas, como que
inspirados.
O amor e o zelo da piedade produzem também essa alienação
dos sentidos, que não parece ser, o mesmo género de loucura, mas desta se
aproxima de tal forma que em geral se lhe dá o mesmo nome.
Com efeito, quem não trataria como loucos, e como loucos em
último grau, aqueles homenzinhos que levam uma vida totalmente diversa da dos
outros mortais? E aqui vem muito a propósito a ideia de Platão. Imaginou ele
uma caverna repleta de pessoas presas, da qual conseguiu fugir um dos
prisioneiros. Este, depois de levar muito tempo vagando sem destino, voltou e
gritou em altas vozes aos companheiros: — Meus caros amigos! Como me inspirais
piedade! Só vedes sombras e fantasmas, em suma, sois verdadeiramente tolos. Bem
diversa é a minha situação, pois só vi coisas sensíveis existentes, reais. —
Então, do seu canto, os encarcerados, que nunca mais saíram do subterrâneo,
entreolhando-se com surpresa, exclamaram: — Que nos quer dizer com isso esse
louco? Com certeza perdeu o juízo e expulsam-no.
O mesmo acontece com
o vulgo. Estão ligados às coisas corporais, e julgam que só elas existem;
os pios, pelo contrário, desprezam tudo quanto se refere ao
corpo, e estão encantados com a contemplação das coisas invisíveis.
A principal ocupação dos primeiros (vulgo) é acumular sempre riquezas e contentar em tudo
e por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja
existência, por ser ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida.
Já as pessoas
inflamadas pelo fogo da religião seguem um caminho totalmente oposto e
depositam toda a sua confiança em Deus, que é o mais simples de todos os seres:
depois dele e dependendo dele, pensam na alma, como sendo a coisa que mais próxima;
não pensam no corpo e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam;
E quando, por dever, são obrigados a tratar destas coisas, procedem contra a
vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem
como se não possuíssem;
Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que
se ocupam somente com o corpo e os que se entregam inteiramente à pia
cultivação da alma. Para melhor distinguirmos esses graus, estabeleçamos um
princípio incontestável. Embora todos os sentimentos da alma tenham uma
correspondência necessária com o corpo, há contudo duas espécies: uns são
materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato e o paladar; outros têm
menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a vontade.
Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica
mais ou menos a esses diversos sentimentos.
Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim como os que
se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos
sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda
sensibilidade, — como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia
azeite por vinho sem perceber, — assim também o vulgo tem um grande vigor de
ânimo pelos sentidos do corpo e uma fraqueza extrema pelos da alma.
Além disso, há algumas paixões que afectam o corpo mais de
perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberba, a inveja,
contra as quais movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua
guerra, ao passo que os adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas
coisas.
Existem ainda outras que têm um lugar intermédio e são
consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os parentes, os filhos
diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo dessas
paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpar do ânimo, ou a a
erguê-los à mais pura região da alma. Amam o progenitor, não como progenitor,
porque ele só gerou o corpo, que por sua vez deve ao Deus pai; Ama o progenitor
como um homem em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o
bem supremo e fora da qual nada existe de amável nem de desejável.
É também com essa regra que as pessoas de mortificação
misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em geral
todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das
invisíveis. Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do
culto, não existiria a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que
seja quase nada a abstinência das carnes e da ceia, se bem que a maioria faça
consistir nesses dois pontos toda a obrigação do preceito. Os devotos dizem-vos
que é preciso jejuar com o espírito, dominar as próprias paixões, suprimir a
cólera e o orgulho, a fim de que a alma, mais desembaraçada da massa do corpo,
possa melhor gozar dos bens do céu. O mesmo acontece em relação à missa: — Se
bem que não desprezemos — dizem eles — tudo o que é visível nesse sacrifício,
todavia, os sinais não seriam menos inúteis que as cerimónias, quando não
perniciosos, se não fosse o socorro do espirito. Representando esse mistério a
paixão do Salvador, faz-se mister que a representem também os fiéis, dominando,
extinguindo e sepultando suas paixões, a fim de ressurgirem numa nova vida e se
unirem a Cristo e aos seus membros. Os devotos costumam assistir à santa missa
com a referida disposição, mas o mesmo não acontece com a maior parte dos
homens, que, não reconhecendo nesse sacrifício senão a obrigação de comparecer,
contentam-se em olhar, ouvir, prestar atenção ao canto e às cerimónias.
Mas, não é só no que diz respeito às coisas que acabo de vos
referir a título de exemplo que os anjos mortais rompem toda relação com os
corpos e com a matéria: para se elevarem aos bens eternos, e invisíveis e
espirituais, fazem o mesmo com tudo o que acontece no curso da vida. Vós mesmos
não podereis negar, quando eu vo-lo tiver brevemente demonstrado, que a
infinita recompensa desejada que buscam com tanta ansiedade não é senão uma
espécie de loucura.
Imaginai que Platão
teve um sonho semelhante quando escreveu: O
furor dos amantes é a felicidade mais perfeita. Com efeito, um amante
apaixonado não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu
coração, e, quanto mais sai de si mesmo para transfundir-se no objeto do seu
amor, tanto mais sente redobrar-se o seu prazer. Não teremos igualmente razão de
qualificar com o nome de loucura o próprio estado de uma alma devota que arde
de desejo por alcançar a perfeição evangélica e que não procura senão sair do
seu corpo pelo desprezo dos sentidos? Trazei à vossa memória os modos de dizer
frequentemente usados: Está fora de si... Voltou a si... Caiu em si... Além
disso, segundo a ideia de Platão, pelo grau de amor é preciso medir a grandeza
do furor (loucura) e da felicidade.
Qual será, pois, a
vida dos beatos no paraíso, vida pela qual suspiram as almas devotas com tanto
transporte? Como, naquele estado de gozo perfeito e sempre novo, a alma
vitoriosa e triunfante absorverá o corpo, resulta que esse absoluto domínio,
bem longe de causar o menor sofrimento, torna-se natural, e o espírito se
achará como no seu reino e gozará o fruto dos esforços feitos para reduzir o
corpo a uma perfeita escravidão. Além disso, a alma verá de maneira incompreensível,
como que absorta naquela suprema inteligência por que é infinitamente superior.
E assim é que o homem ficará fora de si e não será feliz
senão quando, não se achando mais em si mesmo, receber uma inexprimível
felicidade daquele supremo Bem que tudo atrai a si. Mas, como essa felicidade
só pode ser destruída pela união da alma com o corpo, e sendo a vida dos santos
na terra uma contínua meditação e uma sombra das alegrias inefáveis do paraíso,
resulta que principiam a gozar antecipadamente, neste mundo, a recompensa que
lhes é prometida. É bem verdade que, em confronto com a felicidade eterna, não
passa de uma gota e de uma sombra a que experimentam os devotos nesta terra.
Não obstante, essa gota, essa sombra é incomparavelmente superior a todos os prazeres
dos sentidos, mesmo que se pudessem gozar todos ao mesmo tempo, porque todas as
coisas espirituais superam infinitamente as materiais e os bens invisíveis
ultrapassam de muito os visíveis. É, aliás, o que promete um profeta, quando
diz: Os olhos não viram, os ouvidos não
escutaram, o coração do homem não pressentiu o que Deus prepara para os que o
amam. É esse género de loucura que, bem longe de se perder quando se passa
da terra ao céu, alcança, ao contrário, seu último grau de perfeição.
Para vos falar novamente daqueles aos quais Deus, por um
favor todo especial, concede a graça de gozar antecipadamente as delícias da
beatitude dir-vos-ei que são eles em número muito reduzido e que, além disso,
estão sujeitos a certos sintomas que muito se assemelham aos da loucura: suas
palavras são desconexas e fora do uso humano, ou, mais claramente, não sabem o
que dizem; sua fisionomia transforma-se a cada momento, e ora estão alegres,
ora melancólicos; choram, riem, suspiram, numa palavra, estão inteiramente fora
de si. Quando regressam a si protestam que positivamente não sabem de onde vêm
nem se existem somente na alma ou também no corpo, nem se estarão acordados ou
dormindo. E de tudo depois que viram, ouviram, disseram, ou não se recordam ou
fazem uma ideia tão confusa como se tivessem sonhado.
Só sabem de uma
coisa: que se acham felicíssimos no seu delírio. Eis porque sofrem a
convalescença do cérebro e tudo sacrificariam de bom grado para serem
perpetuamente loucos nessas condições. No entanto, toda essa felicidade não
passa de uma tenuíssima migalha da mesa celeste: imaginai, agora, o que não
será o eterno banquete!
Provérbio dos gregos:
Muitas vezes, também o homem louco raciocina bem a não ser que pretendais que,
nesse provérbio, não estejam incluídas as mulheres.
Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo
isso em vossas fisionomias. Mas, sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu
tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi. Em
lugar de um epílogo quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira,
antiquíssima, é esta: Odeio o convívio de
boa memória. E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte que nada esquece. Posto isto adeus. Aplaudi,
vivei, bebei, ó amigos celebérrimos da Loucura.