Berenice. Morela. O
Visionário. O Rei Peste conto alegórico. Ligéia.
Metzengerstein. A Queda do Solar de Usher. William
Wilson. Eleonor. O Retrato Oval. A Máscara da Morte Rubra. O Coração Delator. O
Gato Preto. O Poço e o Pêndulo. Uma História das Montanhas Ragged. O Enterro Prematuro. O
Caixão Quadrangular. O Demónio da Perversidade. Revelação Mesmeriana. O Caso Do
Senhor Valdemar. O Barril de Amontillado. Silêncio. Sombra. Hop-Frog. A Carta
Furtada. O Escaravelho de Ouro. Os Crimes da Rua Morgue. O Mistério de Maria
Roget. Tu és o homem.
Meus
companheiros asseguravam-me que visitado o túmulo da minha amiga conseguiria,
em parte, alívio para as minhas tristezas. Ebn Zaiat
A desgraça é
variada. O infortúnio da terra é multiforme. Arqueando-se sobre o vasto
horizonte como o arco-íris, as suas cores são como as deste, variadas,
distintas e, contudo, nitidamente misturadas. Arqueando-se sobre o vasto
horizonte como o arco-íris! Como é que de um exemplo de beleza, derivei eu uma
imagem de desencanto? Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? E que,
assim como na ética o mal é uma consequência do bem, da mesma realidade, da
alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de
hoje, ou as amarguras que existem agora têm a sua origem nas alegrias que
podiam ter existido.
Ele mesmo,
por si mesmo unicamente, eternamente Um e único- Platão
Era com
sentimentos de profunda, embora singularíssima afeição que eu encarava minha
amiga Morela. Levado a conhecê-la por acaso, há muitos anos, minha alma, desde o
nosso primeiro encontro ardeu em chamas como nunca antes conhecera; não eram,
porém as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu espírito a
convicção crescente de que eu não podia, de modo algum, olvidar de sua incomum
significação, ou regular-lhe a vaga intensidade. Conhecemo-nos, porém, e o
destino conduziu-nos juntos ao altar; mas nunca falei de paixão ou pensei em
amor. Ela, contudo, evitava companhias e, ligando-se só a mim, fazia-me feliz.
Maravilhar-se é uma felicidade; e é uma felicidade sonhar.
(…)colocava
a mão fria sobre a minha e extraía das cinzas de uma filosofia morta algumas
palavras profundas e singulares, cujo estranho sentido as gravava a fogo em
minha memória.
Aquela
identidade que se chama pessoal, Locke, penso, define-a com realismo, como
consistindo na conservação do ser racional. E que por pessoa compreendemos uma
essência inteligente dotada de razão, e desde que há uma consciência que sempre
acompanha o pensamento, é ela que nos faz, a todos, sermos o que chamamos nós
mesmos, distinguindo-nos por isso de outros pensamentos e dando-nos nossa
identidade pessoal.
Fica a
esperar-me aí! não deixarei de te encontrar nesse profundo vale. Henry King,
Bispo de Chichester: Elegia sobre a morte da sua mulher.
Há
seguramente outros mundos que não este…outros pensamentos que não os
pensamentos da multidão... outras especulações que não as especulações dos
sofistas. Quem discutirá então tua conduta? Quem te censurará por tuas horas
visionárias, ou denunciará aquelas ocupações como uma perda de vida, quando
eram apenas a superabundância de tuas energias eternas?
Quem não se
lembra que em ocasiões de tragédia, os olhos, como um espelho partido,
multiplicam as imagens de seu pesar e vêem, em numerosos lugares distantes, a
desgraça que está ali próxima?
Quem não se
lembra qua em ocasiões como esta, os olhos, como um espelho partido,
multiplicam as imagens de seu pesar e vêem, em numerosos lugares distantes, a
desgraça que está ali próxima?
Morrer rindo
deve ser a mais gloriosa de todas as mortes gloriosas!
Sonhar tem
sido a ocupação da minha vida. Armei, pois, para mim, como vê, um camarim de
sonhos. Poderia construir um melhor no coração de Veneza? O senhor observa em
torno de si, é verdade, uma mistura de adornos arquitectónicos. A castidade da
lônia é ofendida pelas inscrições antediluvianas e as esfinges do Egipto que se
estendem sobre tapetes dourados. Contudo, o efeito só é incongruente para o
tímido. Conveniências de lugares, e especialmente de tempo, são os fantasmas
que afastam a humanidade aterrorizada da contemplação do magnificente. Fui
outrora decorador mas essa sublimação do disparate embotou a minha alma. Tudo
isto é agora o mais apropriado para meu propósito. Como aqueles arabescados
incensários, o meu espírito se estorce em labaredas e o delírio desta cena
está-me amoldando para as mais insensatas visões daquela região de verdadeiros
sonhos para onde estou agora partindo (morte).
Os deuses
suportam nos reis, e permitem, as coisas que odeiam em meio à ralé- Buckhurst
(…) e quando
se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe)…
E ali dentro
está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como
vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela
qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende
inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade. Joseph
Glanvill
De todas as
mulheres que tenho conhecido, era ela, a aparentemente calma, a sempre tranquila
Ligéia, a mais violentamente presa dos tumultuosos abutres da paixão
desenfreada.
(…) Não me
faltava aquilo a que o mundo chama riqueza. Ligéia trouxera-me bem mais,
muitíssimo mais do que cabe de ordinário à sorte dos humanos.
Onde estavam
as almas da altiva família da noiva quando, movidas pela sede do ouro,
permitiram que transpusesse o umbral dum aposento tão ataviado uma jovem e tão
amada filha?
Em aposentos
tais como aquele, numa câmara nupcial tal como aquela, passava eu, com Lady de
Tremaine, as horas não sagradas do primeiro mês do nosso casamento, e passava-as
com muita inquietação. Que minha mulher receava o violento mau-humor do meu
temperamento, que me evitava e que me amava muito pouco eram coisas que eu não
podia deixar de perceber. Mas isso me causava mais prazer que outra coisa. Eu
detestava-a com um ódio que tinha mais de diabólico que de humano. Minha
memória retornava (oh, com que intensa saudade!) a Ligéia, a bem-amada, a
augusta, a bela, a morta. Entregava-me a orgias de recordações da sua pureza,
da sua sabedoria, da sua nobre, da sua etérea natureza de seu apaixonado e idolátrico
amor.
Na excitação
de meus sonhos de ópio (pois vivia habitualmente agrilhoado às algemas da
droga) gritava o seu nome em voz alta, durante o silêncio da noite, ou de dia,
entre os recantos protectores dos vales, como se, pela ânsia selvagem, pela
paixão solene, pelo ardor devorante de meu desejo pela morta, eu pudesse
ressuscitá-la, nas sendas que abandonara nesta terra... será possível que para
sempre?
Vivendo era
o teu açoite – morto, serei a tua morte- Martinho Lutero
O horror e a
fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Porque então datar esta
estória que vou contar? Basta dizer que, no período de que falo, havia, no
interior da Hungria, uma crença bem assentada, embora oculta, nas doutrinas da
metempsicose. Das próprias doutrinas, isto é, de sua falsidade, ou de sua
probabilidade, nada direi. Afirmo, porém, que muito da nossa incredulidade
(como diz La Bruyère, explicando todas as nossas infelicidades), “vient de ne
pouvoir être Seul” (provém de não podermos estar sozinhos N.T).
É coisa
sabida que vizinhos próximos raramente são amigos.
Seu coração
é um alaúde pendurado; tão logo alguém o toca, ressoa - De Béranger
Contemplei o
panorama em minha frente - a casa simples e os aspectos simples da paisagem da
propriedade, as paredes soturnas, as janelas vazias, semelhando olhos, uns
poucos canteiros de caniços e uns poucos troncos brancos de árvores mortas, com
extrema depressão de alma que só posso comparar, com propriedade, a qualquer
sensação terrena, lembrando os instantes após o sonho de ópio. Para quem dele
desperta, a amarga recaída na vida quotidiana, o tombar do véu. Havia um
enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável
tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a
transformar-se em qualquer coisa de sublime.
Que dirá
ela? Que dirá a horrenda consciência, aquele espectro no meu caminho?-
Chambarlain
O pastor
dessa igreja era o diretor da nossa escola. Com que profundo sentimento de
maravilha e perplexidade tinha eu o costume de contemplá-lo do nosso distante
banco na tribuna, quando, com passo solene e vagaroso, subia ele ao púlpito!
Aquele personagem venerando, com seu rosto tão modestamente benigno, com trajes
tão lustrosos e tão clericalmente flutuantes, com sua cabeleira tão
cuidadosamente empoada, tão tesa e tão vasta, poderia ser o mesmo que, ainda há
pouco, de rosto azedo e roupas manchadas de rapé, fazia executar, de palmatória
em punho, as draconianas leis do colégio? Oh gigantesco paradoxo, por demais
monstruoso para ser resolvido!
Encerrado
entre as maciças paredes daquele venerável colégio, passei todavia, sem
desgosto ou tédio, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo
da infância não exige um mundo exterior de incidentes para com ele ocupar-se ou
divertir-se; e a monotonia aparentemente triste de uma escola estava repleta de
mais intensa excitação, que a que minha mocidade mais madura extraiu da luxúria
ou minha plena maturidade do crime.
Em geral, os
acontecimentos da primeira infância raramente deixam uma impressão definida
sobre os homens, na idade madura. Tudo são sombras cinzentas recordações
apagadas e imprecisas, indistinto amontoado de débeis prazeres e de
fantasmagóricos pesares.
Se há na
terra um despotismo supremo e absoluto, é o despotismo de um poderoso cérebro
juvenil sobre o espírito menos enérgicos de seus companheiros.
(…) nos bolsos
do meu roupão, certo número de baralhos exatamente iguais aos que utilizávamos
em nossas reuniões, com a única excepção de que os meus eram da espécie
chamada, tecnicamente, arredondées, sendo as cartas de figuras levemente
convexas nas pontas e as cartas comuns levemente convexas nos lados. Com esta
disposição, o ingénuo que corta, como de costume, ao comprido do baralho
invariavelmente é levado a cortar dando figura a seu parceiro, ao passo que o
jogador profissional, cortando na largura, com toda a certeza nada cortará para
sua vítima que possa servir de vantagem no desenrolar do jogo.
Provenho de
uma raça notável pelo vigor da imaginação e pelo ardor da paixão. Chamaram-me
de louco; mas a questão ainda não está resolvida: se a loucura é ou não a
inteligência sublimada, se muito do que é glorioso, se tudo o que é profundo
não brota do pensamento enfermo, da maneira do espírito exaltado, a expensas da
inteligência geral. Os que sonham de dia conhecem muitas coisas que escapam aos
que sonham somente de noite. Nas suas visões nevoentas, logram vislumbres de
eternidade, e sentem viva emoção, ao despertar, por descobrirem que estiveram
no limiar do grande segredo. Aos poucos, vão aprendendo algo da sabedoria, o
que é bom, e muito mais do simples conhecimento, o que é mau. Penetram,
contudo, sem leme e sem bússola, no vasto oceano da "luz inefável".
(…)Era pois
terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de pintar o
próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e obediente, sentava-se submissa durante horas no escuro e
alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa,
sobre a alva tela. Mas ele, o pintor, regozijava-se com a sua obra, que
continuava de hora em hora, de dia em dia, e era um homem apaixonado, rude e
extravagante, que vivia perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que
caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade
de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela
continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor
(que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava,
dia e noite, por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada
vez mais triste e fraca.(…) E não percebia que as tintas que espalhava sobre a
tela eram tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando já se
haviam passado várias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre
a boca e um colorido nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a
chama dentro de uma lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o
colorido. E durante um instante o pintor ficou extasiado diante da obra que
tinha realizado mas em seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e,
pálido, horrorizado, exclamou em voz alta: "Isto é na verdade a própria
vida. Voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada... Estava morta!
Há no
coração dos mais levianos fibras que não podem ser tocadas sem emoção. Mesmo
para os mais divertidos, para quem a vida e a morte são idênticos brinquedos
assuntos com os quais não se pode brincar.
Há qualquer coisa no amor sem egoísmo
e abnegado de um animal que atinge diretamente o coração de quem tem tido
frequentes ocasiões de experimentar a amizade mesquinha e a fidelidade frágil
do simples Homem.
Certa noite,
de volta a casa, bastante embriagado, de uma das tascas dos subúrbios, supus
que o gato evitava minha presença. Agarrei-o, mas, nisto, amedrontado com a
minha violência ele me deu uma leve dentada na mão. Uma fúria diabólica
apossou-se instantaneamente de mim. Cheguei a desconhecer-me. Parecia que a alma
original me havia abandonado de repente o corpo e uma maldade mais do que
satânica, saturada de álcool, fazia vibrar todas as fibras de meu corpo. Tirei
do bolso do colete um canivete, abri, agarrei o pobre animal pela garganta e,
deliberadamente, arranquei-lhe um dos olhos da órbita! Coro, abraso-me,
estremeço ao narrar a condenável atrocidade.
Quando, com
a manhã, me voltou a razão, quando, com o sono desfiz os fumos da noite de
orgia, experimentei uma sensação meio de horror, meio de remorso pelo crime de
que me tornara culpado. Mas era, quando muito, uma sensação fraca e equívoca e
a alma permanecia insensível. De novo mergulhei em excessos e logo afoguei no
vinho toda a lembrança do meu acto. Enquanto isso o gato, pouco a pouco, foi
sarando. A órbita do olho arrancado tinha, é verdade, uma horrível aparência,
mas ele parecia não sofrer mais nenhuma dor. Andava pela casa como de costume,
mas, como era de esperar, fugia com extremo terror à minha aproximação.
Restava-me
ainda bastante de meu antigo coração, para que me magoasse, a princípio, aquela
evidente aversão por parte de uma criatura que tinha sido outrora tão amada por
mim. Mas esse sentimento em breve deu lugar à irritação. E então apareceu, como
para minha queda final e irrevogável, o espírito da perversidade. Desse
espírito não cuida a filosofia. Entretanto,
tenho menos certeza da existência da minha alma do que de ser essa perversidade
um dos impulsos primitivos do coração humano, uma das indivisíveis faculdades
primárias, ou sentimentos, que dão direção ao caráter do homem.
Quem não se achou centenas de vezes a
cometer um acto vil ou estúpido, sem outra razão senão a de saber que não devia
cometê-lo ? Não temos nós uma perpétua inclinação apesar do nosso melhor
bom-senso, para violar o que é a lei, pelo simples facto de compreendermos que
ela é a Lei? O espírito de perversidade, repito, veio a causar, a minha
derrocada final. Foi esse anelo insondável da alma, de torturar-se a si
próprio, de violentar a sua própria natureza, de praticar o mal pelo mal, que
me levou a continuar e, por fim, a consumar a tortura que já havia infringido
ao inofensivo animal.
Certa manhã,
a sangue-frio, enrolei em seu pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore,
enforquei-o com as lágrimas jorrando-me dos olhos e com o mais amargo remorso
no coração. Enforquei-o porque sabia que ele me tinha amado e porque sentia que
ele não me tinha dado razão para ofendê-lo. Enforquei-o porque sabia que, assim
fazendo, estava cometendo um pecado, um pecado mortal, que iria pôr em perigo a
minha alma imortal, colocando-a - se tal coisa fosse possível - mesmo fora do
alcance da infinita misericórdia do mais misericordioso terrível Deus.
(…)E então
eu- homem formado à imagem do Deus Altíssimo- era em verdade um desgraçado,
mais desgraçado que a própria desgraça humana.
Nem mesmo no
túmulo tudo está perdido! De outra forma, não haveria imortalidade para o
homem.
O que eu
via, o que eu ouvia, o que eu sentia, nada tinham da sensação inconfundível do
sonho. Tudo era rigorosamente real. A princípio, duvidando de que estivesse
realmente acordado, iniciei uma série de experiências que logo me convenceram
de que estava efetivamente desperto. Ora, quando alguém sonha, e no sonho
suspeita de que está sonhando, a suspeita nunca deixa de confirmar-se e o
dormente é quase imediatamente despertado. De modo que Novalis não erra em
dizer que : nós estamos quase despertando, quando sonhamos que estamos sonhado;
Tivesse-me ocorrido a visão como a descrevo sem que a suspeitasse de ser sonho,
então um sonho ela poderia verdadeiramente ter sido, mas, ocorrendo como
ocorreu, e suspeitada como era, sou forçado a classificá-la entre outros fenómenos…
Há certos
temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horríveis para os fins
da legítima ficção. O simples romancista deve evitá-los se não deseja ofender
ou desgostar. Só devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a
imponência da verdade os santificam e sustentam. Estremecemos, por exemplo, com
o mais intenso "pesar agradável", diante das narrativas da Passagem
do Beresina, do Terremoto de Lisboa, da peste de Londres, do Massacre de São
Bartolomeu, ou do asfixiamento de cento e vinte três prisioneiros da Caverna Negra
em Calcutá. Mas, nessas narrativas é o facto, é a realidade, é a história o que
excita. Como invenções, olhá-las-íamos com simples aversão.
Mencionei
algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a história
registra. Mas nelas existe a extensão, bem como o caráter, de calamidade, que
tão vivamente impressiona a fantasia.
Não é
necessário lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso catálogo das misérias
humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais
repletos de sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres
generalizados. A verdadeira desgraça, na verdade, o derradeiro infortúnio, é
particular e não difuso. Demos graças a um Deus misericordioso pelo facto de
serem os espantosos extremos da agonia suportados pelo homem-unidade e não pelo
homem-massa!
Há momentos
em que, mesmo aos olhos serenos da razão, o mundo de nossa triste Humanidade
pode assumir o aspecto de um inferno (…)
(…)Teria
sido mais acertado, teria sido mais seguro, classificar (se podemos
classificar) sobre a base daquilo que o homem, usual ou ocasionalmente, fez e
estava sempre ocasionalmente fazendo do que sobre a base daquilo que supomos
que a Divindade tencionava que ele fizesse. Se não podemos compreender Deus nas
suas obras visíveis, como então compreendê-lo nos seus inconcebíveis
pensamentos que dão vida às suas obras? Se não podemos compreendê-lo nas suas
criaturas objetivas, como compreendê-lo então nas suas disposições de ânimo
substantivas e nas suas fases de criação?
(…) um
princípio inato e primitivo da ação humana, algo de paradoxal que podemos
chamar de perversidade (…) Sob a sua influência agimos sem objectivo
compreensível, ou, se isto for entendido como uma contradição nos termos,
podemos modificar a tal ponto a proposição que digamos que sob sua influência
nós agimos pelo motivo de não devermos agir.
Em teoria,
nenhuma razão pode ser mais desarrazoada; mas, de fato, nenhuma há mais forte.
Para certos espíritos, sob determinadas condições, torna-se absolutamente irresistível.
Com a mesma certeza com que respiro, tenho a certeza de ser muitas vezes o
engano ou o erro de qualquer acção a força inconquistável que nos empurra, e a
única que nos impele a continuá-lo. E não admitirá análise ou resolução em
elementos ulteriores esta acabrunhante tendência de praticar o mal pelo mal. É
um impulso radical, primitivo, elementar.
Não há homem
que, em algum momento, não tenha sido atormentado, por exemplo, por um agudo
desejo de torturar um ouvinte por meio de circunlóquios. Sabe que desagrada.
Tem toda a intenção de desagradar. Em geral é conciso, preciso e claro. Luta em
sua língua por expressar-se na mais lacónica e luminosa linguagem. Só com
dificuldade consegue evitar que ela desborde. Teme e conjura a cólera daquele a
quem se dirige. Contudo, assalta-o o pensamento de que essa cólera pode ser
produzida por meio de certas tricas e parêntesis. Basta esta ideia. O impulso
converte-se em desejo, o desejo em vontade, a vontade numa ânsia incontrolável,
e a ânsia (para profundo remorso e mortificação de quem fala e num desafio a
todas as consequências) é satisfeita.
Temos diante
de nós uma tarefa que deve ser rapidamente executada. Sabemos que retardá-la
será ruinoso. A mais importante crise de nossa vida requer, imperiosamente, energia
imediata e acção. Inflamamo-nos, consumimo-nos na avidez de começar o trabalho,
abrasando-se toda a nossa alma na antecipação de seu glorioso resultado. É
forçoso, é urgente que ele seja executado hoje, e contudo, adiamo-lo para
amanhã. Por quê isso? Não há resposta senão a de que sentimos a perversidade do
acto, usando o termo sem compreender-lhe o princípio.
Chega o dia
seguinte e com ela a mais impaciente ansiedade de cumprir o nosso dever, mas
com todo esse aumento de ansiedade chega também um indefinível e positivamente
terrível, embora insondável, anseio extremo de adiamento. E quanto mais o tempo
foge, mais força vai tomando esse anseio.
A última
hora para agir está iminente. Trememos à violência do conflito que se trava
dentro de nós, entre o definido e o indefinido, entre a substância e a sombra.
Mas se a contenda se prolonga a este ponto, é a sombra quem prevalece. Foi vã a
nossa luta. O relógio bate e é o dobre de finados de nossa felicidade.
Ao mesmo
tempo é a clarinada matinal para o fantasma que por tanto tempo nos intimidou.
Ela voa. Desaparece. Estamos livres. Volta a antiga energia. Trabalharemos
agora. Ai de nós porém, é tarde demais!
Estamos à
borda dum precipício. Perscrutamos o abismo e vem-nos a náusea e a vertigem. O
nosso primeiro impulso é fugir ao perigo. Inexplicavelmente, porém, ficamos.
Pouco a pouco, a nossa náusea, a nossa vertigem, o nosso horror confundem-se
numa nuvem de sensações indefiníveis. Gradativamente, e de maneira mais
imperceptível, essa nuvem toma forma, como a fumaça da garrafa donde surgiu o
génio nas Mil e uma Noites. Mas fora dessa nossa nuvem à borda do precipício,
uma forma se torna palpável, bem mais terrível que qualquer génio ou qualquer
demónio de fábulas. Contudo não é senão um pensamento, embora terrível, e um
pensamento que nos gela até à medula dos ossos com a feroz volúpia do seu
horror. É , simplesmente, a ideia do que seriam nossas sensações durante o
mergulho precipitado duma queda de tal altura.
E esta
queda, este aniquilamento vertiginoso, envolve essa mais espantosa e mais
repugnante de todas as espantosas e repugnantes imagens de morte e de
sofrimento que jamais se apresentaram à nossa imaginação, faz com que mais
vivamente a desejemos. E porque nossa razão nos desvia violentamente da borda
do precipício, por isso mesmo mais impetuosamente nos aproximamos dela. Não há
na natureza paixão mais diabolicamente impaciente como a daquele que, tremendo
à beira dum precipício, pensa dessa forma em nele se lançar. Deter-se, um
instante que seja, em qualquer concessão a essa ideia é estar inevitavelmente
perdido, pois a reflexão ordena-nos que fujamos sem demora e, portanto, digo-o,
é isto mesmo que não podemos fazer. Se não houver um braço amigo que nos
detenha, ou se não conseguirmos, com súbito esforço recuar da beira do abismo,
nele nos atiraremos e destruídos estaremos.
Examinando ações
semelhantes(…) descobriremos que elas resultam tão-somente do espírito de
Perversidade. Nós as cometemos porque sentimos que não deveríamos fazê-lo.
Além, ou por trás disso, não há princípio inteligível, e nós podíamos, de fato,
supor que essa perversidade é uma direta instigação do demônio se não
soubéssemos, realmente, que esse princípio opera em apoio do bem.
" Morte
por visita de Deus." (Death Visitation of God é a expressão com que os
médicos legistas indicam, nos atestados de óbito, a morte natural. N.T.)
P. -Que
perguntarei então?
V. - Deve começar pelo começo.
P. - O começo? Mas onde é o começo?
V. - O começo, como sabe, é Deus.
P. - Que é
Deus, então? Deus é espírito?
V. - Enquanto estava desperto(…), eu sabia o
que queria dizer com a palavra "espírito", mas agora parece-me apenas
uma palavra tal, por exemplo, como verdade, beleza: quero dizer, uma qualidade.
P. - Não é
Deus imaterial?
V. - Não há imaterialidade; é uma simples
palavra. O que não é matéria não é absolutamente, a menos que as qualidades
coisas.
P. - Deus,
então, é material?
V. - Não.
P - Então
que é ele? V - Vejo... mas é uma coisa difícil de dizer. Ele não é espírito,
porque existe. Nem é matéria, tal como você entende. Mas há gradações da
matéria de que o homem não conhece nada, a mais densa impelindo a mais sutil, a
mais sutil invadindo a mais densa. A atmosfera, por exemplo, movimenta o
princípio elétrico, ao passo que o princípio elétrico penetra a atmosfera.
Estas gradações da matéria aumentam em raridade ou subtileza até chegarmos a
uma matéria imparticulada - sem partículas -, indivisível - una - e aqui a lei
de impulsão e de penetração é modificada. A matéria suprema ou não particulada
não somente penetra todas as coisas, mas movimenta todas as coisas, e assim é
todas as coisas em si mesma. Esta matéria é Deus. Aquilo que os homens tentam
personificar na palavra "pensamento" é esta matéria em movimento.
P. - Os
metafísicos sustentam que toda ação é redutível a movimento e pensamento, e que
este é a origem daquele.
V. - Sim. E
agora vejo a confusão de ideias. O movimento é a ação do espírito e não do
pensamento. A matéria imparticulada ou Deus, em estado de repouso (tanto quanto
podemos concebê-lo ) é o que os homens chamam espírito. E o poder do auto
movimento (equivalente com efeito à volição humana) é, na matéria
imparticulada, o resultado de sua unidade e de sua omnipotência; como não sei,
e agora vejo claramente que jamais o saberei. Mas a matéria imparticulada,
posta em movimento por uma lei ou qualidade existente dentro de si mesma, é
pensamento.
P. Poderá
dar-me a ideia mais precisa do que chama você matéria imparticulada?
V. As
matérias de que o homem tem conhecimento escapam aos sentidos gradativamente.
Temos, por exemplo, um metal, um pedaço de madeira, uma gota de água, a
atmosfera, um gás, o calórico, a eletricidade, o éter luminoso. Ora, chamamos
todas essas coisas matérias e abrangemos toda a matéria numa definição geral;
mas a despeito disto, não pode haver duas ideias mais essencialmente distintas
do que a que ligamos a um metal e a que ligamos ao éter luminoso. Quando
alcançamos este último, sentimos uma inclinação quase irresistível a
classificá-lo como espírito ou como o nada. A única consideração que nos retém
é nossa concepção de sua constituição atómica, e aqui mesmo temos necessidade
de buscar auxilio na nossa noção de um átomo, como algo que possui, com
pequenez infinita, solidez, palpabilidade, peso. Suprimamos a ideia do éter
como uma entidade ou, pelo menos, como matéria. À falta de melhor palavra
podemos denominá-lo espírito. Dê agora um passo para além do éter luminoso.
Conceba uma matéria como muito mais rarefeita do que o éter, assim como o éter é
muito mais rarefeito do que o metal, e chegaremos imediatamente (a despeito de
todos os dogmas da escola) a uma única massa, uma matéria imparticulada. Pois,
embora possamos admitir infinita pequenez nos próprios átomos, a infinidade da
pequenez nos espaços entre eles é um absurdo. Haverá um ponto, haverá um grau
de rarefação no qual, se os átomos são suficientemente numerosos, os
interespaços devem desaparecer e a massa unificar-se de todo. Mas, sendo agora
posta de lado a consideração da constituição atômica, a natureza da massa
resvala inevitavelmente para aquilo que concebemos como espírito. E claro, que
ela é tão matéria ainda quanto antes. A verdade é que não se pode conceber o
espírito sem que seja possível imaginar o que não é. Quando nos lisonjeamos por
haver formado essa concepção, apenas iludimos a nossa inteligência com a
consideração da matéria infinitamente rarefeita.
P. -
Parece-me haver uma insuperável objeção à ideia de unidade absoluta, e ela é a
da bem pouca resistência sofrida pelos corpos celestes nas suas revoluções pelo
espaço, resistência agora verificada, é verdade, como existente em certo grau,
mas que é, não obstante, tão leve a ponto de ter sido completamente desdenhada
pela sagacidade do próprio Newton. Sabemos que a resistência dos corpos está
principalmente com a sua densidade. A absoluta unificação é a absoluta
densidade. Onde não há interespaços não pode haver passagem. Um éter
absolutamente denso oporia um obstáculo infinitamente mais eficaz à marcha de
um astro do que o faria um éter de diamante ou de ferro.
V. - Sua
objeção é respondida com uma facilidade que está quase na razão da sua aparente
irresponsabilidade. Quanto à marcha de um astro, não faz diferença se o astro
passa através do éter ou se o éter através dele. Não há erro astronómico mais
inexplicável do que o que relaciona o conhecido retardamento dos cometas com a
ideia de sua passagem através de um éter; porque, por mais rarefeito que se
suponha esse éter, oporia ele obstáculo a qualquer revolução sideral em um período
bem mais breve do que tem sido admitido por aqueles astrônomos que têm tentado
tratar pela rama um ponto que eles acham impossível compreender. O retardamento
realmente experimentado é, por outro lado, quase igual àquele que pode resultar
da fricção do éter na sua passagem instantânea através do orbe. No primeiro
caso, a força retardadora é momentânea e completa dentro de si mesma; no outro,
é infinitamente crescente.
P. - Mas, em
tudo isso, nesta identificação da simples matéria como Deus, não haverá algo de
irreverência?
V. - Pode
dizer por que a matéria seria menos respeitada do que o pensamento? Mas você
esquece que a matéria de que falo é, a todos os respeitos, o verdadeiro
"pensamento" ou "espírito" das escolas, no que se refere às
suas altas capacidades, e é, além disso a "matéria" dessas escolas ao
mesmo tempo. Deus com todos os poderem atribuídos ao espírito não é senão a
perfeição da matéria.
P. - Você afirma então que a matéria
imparticulada em movimento é pensamento?
V. - Em geral, esse movimento é o pensamento
universal da mente universal. Esse pensamento cria. Todas as coisas criadas são
apenas os pensamentos de Deus.
P. - Você diz "em geral".
V. - Sim. A
mente universal é Deus. Para as novas individualidades a matéria é necessária.
P. - Mas
você agora fala de "espírito" e "matéria", como fazem os
metafísicos.
V. - Sim,
para evitar confusão . Quando eu digo espírito, significa a matéria
imparticulada ou suprema; por matéria, entendo todas as outras espécies.
P. - Você
dizia que "para novas individualidades a matéria é necessária".
V. - Sim,
pois o espírito, existindo incorporeamente, é simplesmente Deus. Para criar
seres individuais pensantes foi necessário encarnar porções do espírito divino.
Por isso o homem é individualizado. Desvestido do invólucro corpóreo seria
Deus. Ora, o movimento particular das porções encarnadas da matéria
imparticulada é o pensamento do homem, assim como o movimento do todo é o de
Deus.
P. - Diz
você que desvestido do corpo o homem seria Deus?
V. - Eu não podia ter dito isso. É um absurdo.
P. - Você disse que "desvestido do invólucro
corpóreo o homem seria Deus".
V. - Isto é
verdade. O homem, assim despojado seria Deus, seria desindividualizado. Mas ele
nunca pode ser assim despojado - pelo menos nunca será - a menos que devêssemos
imaginar uma ação de Deus voltando sobre si mesma, uma ação fútil e sem
objetivo. O homem é uma criatura. As criaturas são pensamentos de Deus. E é da
natureza do pensamento ser irrevogável.
P.- Não
compreendo. Você diz que o homem nunca se despojará do corpo?
V. - Digo
que ele nunca estará sem corpo.
P. - Explique-se.
V. - Há dois corpos: o rudimentar e o completo,
correspondendo às duas condições da lagarta e da borboleta. O que chamamos
"morte" é apenas a dolorosa metamorfose. Nossa atual encarnação é
progressiva, preparatória, temporária. A futura é perfeita, final, imortal. A
vida derradeira é o fim supremo. J
P. - Mas nós temos conhecimento palpável da
metamorfose da lagarta.
V. - "Nós", certamente, mas não a lagarta.
A matéria de que nosso corpo rudimentar é composta está ao alcance dos órgãos
rudimentares que estão adaptados à matéria de que é formado o corpo rudimentar,
mas não à de que é composto o corpo derradeiro. O corpo derradeiro escapa assim
aos nossos sentidos rudimentares e percebemos apenas o casulo que abandona, ao
morrer, a forma interior, e não essa própria forma interior; mas esta forma
interior, bem como o casulo, é apreciável por aqueles que já adquiriram a vida
derradeira.
P. - Você
disse muitas vezes que o estado magnético se assemelha muito de perto à morte.
Como é isso?
V. - Quando digo que ele se assemelha à morte,
quero dizer que se parece com a vida derradeira, pois quando estou no sono
magnético os sentidos de minha vida rudimentar ficam suspensos e percebo as
coisas externas diretamente, sem órgãos, por um meio que empregarei na vida
derradeira e inorgânica.
P.-
Inorgânica?
V.- Sim. Os
órgãos são aparelhos pelos quais o indivíduo é posto em relação sensível com
certas categorias e formas da matéria, com exclusão de outras categorias e
formas. Os órgãos do homem estão adaptados à sua condição rudimentar e a ela
somente; sua condição última, sendo inorgânica, é de compreensão ilimitada em
todos os pontos, exceto um: a natureza da vontade de Deus. Isto é, matéria imparticulada.
Você pode ter uma ideia distinta do corpo derradeiro concebendo-o como sendo
totalmente cérebro. "Ele" não é isso; mas uma concepção dessa
natureza aproximará você de uma compreensão do que ele "é". Um corpo
luminoso comunica vibração ao éter luminoso. As vibrações geram outras
semelhantes na retina; estas, por sua vez, comunicam outras semelhantes ao
nervo ótico; o nervo leva outras semelhantes ao cérebro; o cérebro também
outras iguais à matéria imparticulada que o penetra. O movimento desta última é
pensamento, do qual a percepção é a primeira vibração. Este é o modo pelo qual
o pensamento da vida rudimentar se comunica com o mundo exterior e este mundo
exterior é limitado, para a vida rudimentar, pelas reações de seus órgãos. Mas,
na vida derradeira e inorgânica, o mundo exterior comunica-se com o corpo
inteiro (que é de uma substância afim da do cérebro como já disse), sem nenhuma
outra intervenção que não a de um éter infinitamente mais rarefeito, do que
mesmo o éter luminífero e com esse éter, em uníssono com ele, todo o corpo
vibra, pondo em movimento a matéria imparticulada que o penetra. É à ausência
de órgãos reactivos, contudo, que devemos atribuir a quase ilimitada percepção
da vida derradeira. Para os seres rudimentares os órgãos são as gaiolas
necessárias para encerrá-los até que estejam emplumados.
P. - Você
fala de seres rudimentares. Há outros seres rudimentares e pensantes além do
homem?
V. - A
conglomeração numerosa de matéria dispersa em nebulosas, planetas, sóis e
outros corpos que nem são nebulosa, nem planetas, tem como único fim suprir o
pabulam para a reação dos órgãos de uma infinidade de seres rudimentares. Sem a
necessidade do rudimentar, anterior à vida derradeira, não teria havido corpos tais
como esses. Cada um deles é ocupado por uma distinta variedade de criaturas
orgânicas, rudimentares e pensantes. Em todas, os órgãos variam com os
característicos do habitáculo. Na morte ou metamorfose, estas criaturas,
gozando da vida derradeira da imortalidade - e conhecedoras de todos os
segredos, menos o único, operam todas as coisas e se movem por toda a parte por
simples ato de vontade. Habitam, não as estrelas, que para nós parecem as
únicas coisas tangíveis e para conveniência, cegamente cremos que o espaço foi
criado, mas o próprio espaço, esse infinito cuja imensidão verdadeiramente
substantiva absorve as sombras estelares, apagando-as como não entidades da
visão dos anjos.
P. - Você
diz que "sem a necessidade da vida rudimentar” não teria havido estrelas.
Mas qual a razão dessa necessidade?
V. - Na vida
inorgânica, bem como geralmente na matéria inorgânica, nada há que impeça a
ação de uma lei simples e única: a Divina Vontade. Com o fim de criar um
empecilho, a vida orgânica e a matéria (complexas, substanciais e oneradas por
leis ) foram criadas.
P. - Mais
ainda, que necessidade havia de criar esse empecilho?
V. - O resultado da lei inviolada é perfeição,
justiça, felicidade negativa. O resultado da lei violada é imperfeição,
injustiça, dor positiva. Por meio dos empecilhos produzidos pelo número,
complexidade e substancialidade das leis da vida orgânica e da matéria, a
violação da lei se torna, até certo ponto, praticável. Esta dor, que na vida
inorgânica é impossível, torna-se possível na orgânica.
P. - Mas em
vista de que resultado bom se torna possível a dor?
V. - Todas as coisas são boas ou más por
comparação. Uma análise suficiente mostrará que o prazer, em todos os casos é
apenas o contraste da dor. Prazer positivo é mera ideia. Para ser feliz até
certo ponto, devemos ter sofrido na mesma proporção. Jamais sofrer equivaleria
a não ter jamais sido feliz. Mas está demonstrado que na vida inorgânica a dor
não pode existir; daí a necessidade da dor para a vida orgânica. A dor da vida
primitiva da terra é a única base da felicidade da derradeira vida no Céu.
P. -
Contudo, ainda há uma de suas expressões que não acho possibilidade de
compreender: "a imensidão verdadeiramente substantiva do infinito".
V. - É
provavelmente, porque não tem a concepção suficientemente genérica do próprio
termo substância. Não devemos olhá-la como uma qualidade, mas como um
sentimento: é a percepção, nos seres pensantes, da adaptação da matéria à
organização deles. Há muitas coisas sobre a Terra que seriam nada para os
habitantes de Vénus; muitas coisas visíveis e tangíveis em Vénus que não
poderíamos ser levados a apreciar como absolutamente existentes. Mas para os
seres inorgânicos - para os anjos - o todo da matéria imparticulada é
substância, isto é, o todo do que chamamos "espaço" é para eles a
mais verdadeira substancialidade; os astros, entretanto, do ponto de vista de
sua materialidade, escapam ao sentido angélico, justamente na mesma proporção
em que a matéria imparticulada, do ponto de vista de sua imaterialidade, escapa
ao sentido orgânico.
Mas quando
se aventurou ele a insultar-me, jurei vingar-me. Vós, que tão bem conheceis a
natureza de minha alma, não havereis de supor, porém, que proferi alguma
ameaça. Afinal, deveria vingar-me. Isso era um ponto definitivamente assentado,
mas essa resolução, definitiva, excluía ideia de risco. Eu devia não só punir,
mas punir com impunidade. Não se desagrava uma injúria quando o castigo cai
sobre o desagravante. O mesmo acontece quando o vingador deixa de fazer sentir
sua qualidade de vingador a quem o injuriou.(…)
Se é a
brincadeira que faz engordar ou se há algo na própria gordura que predispõe à
pilhéria, nunca fui capaz de determiná-lo totalmente, mas o certo é que um
trocista magro é uma rara avis in terris.
O tempo que
é muito mais lento de passar nas cortes que em qualquer outra parte.
(…) tinha o
cacoete de chamar de "esquisito" tudo quanto além de sua compreensão
e por isso vivia em meio duma completa legião de "esquisitices"
- O menino a
quem me refiro ganhava todas as bolas da escola. Tinha ele, sem dúvida algum
meio de adivinhação e este consistia na simples observação e comparação da
astúcia de seus adversários.
- Uma identificação do intelecto do
raciocinador com o de seu antagonista-disse eu
Quando
perguntei ao menino por que era efetuada aquela perfeita identificação na qual
consistia seu êxito, recebi a resposta que se segue: “Quando eu quero descobrir
quando alguém é sensato, ou estúpido, ou bom, ou perverso, ou quais são seus
pensamentos no momento, componho a expressão de meu rosto, tão cuidadosamente
quanto possível, de acordo a expressão dele, e então espero ver que pensamentos
ou sentimentos são despertados na minha mente ou no meu coração, como para se
equiparar ou corresponder à "minha fisionomia"
- E a identificação - disse eu - do
intelecto do raciocinador com o de seu adversário depende, se bem o compreendo,
da exatidão com que é apreciado o intelecto do adversário.
- Para seu
valor prático, depende efetivamente disso -respondeu Dupin -, e se o Chefe de
Polícia e a sua corte são frequentemente mal sucedidos é, primeiro, por falta
dessa identificação, e, em segundo lugar, pela má apreciação, ou antes, não
apreciação do intelecto com que se estão medindo. Consideram somente as suas
próprias ideias engenhosas e, na procura do oculto, só cuidam dos meios de que
eles se teriam servido ocultá-lo. Têm bastante razão nisto de ser sua própria
engenhosidade uma representação fiel da massa; mas quando a astúcia do
malfeitor é particular, é de caráter diverso da deles, o malfeitor naturalmente
os "enrola". Isso sempre acontece quando essa astúcia está acima da
deles e, muito comumente, quando está abaixo. Eles não variam de princípios em
suas investigações; no máximo, quando premidos por alguma emergência insólita,
por alguma recompensa extraordinária, ampliam ou exageram seus velhos métodos
de ação, sem mexer-lhes nos princípios.
Toda a ideia pública, toda convenção
aceite é uma tolice, porque conveio ao número maior.
- Contesto a
eficácia, e portanto o valor, daquele raciocínio que se cultiva por qualquer
forma especial que não seja a lógica abstrata. Contesto, em particular, o
raciocínio deduzido pelo estudo matemático. As matemáticas são a ciência da
forma e da quantidade; o raciocínio matemático é simplesmente lógico se
aplicado à forma e à quantidade. O grande erro está em supor que mesmo as
verdades do que se chama álgebra pura são verdades gerais ou abstratas. E esse
erro é tão evidente que me espanta a universalidade de sua aceitação. Os axiomas
matemáticos não são axiomas de verdade geral. O que é uma verdade de relação
(de forma e quantidade) é muitas vezes enormemente falso, com respeito à moral,
por exemplo.
Nesta última ciência, é muito comumente
inverídico que a soma das partes seja igual ao todo. Também na química esse
axioma falha. Na apreciação de motivos, falha, porque dois motivos, cada um de
um dado valor, não têm, necessariamente, quando unidos, um valor igual à soma
de seus valores separados. Há numerosas outras verdades matemáticas que só são
verdades dentro dos limites da relação. Mas os matemáticos mentem com suas
verdades finitas pelo hábito, como se elas fossem de uma aplicabilidade
absolutamente geral, tal como o mundo em verdade imagina que sejam.
Bryant, em
sua mui erudita Mitologia menciona uma outra fonte análoga de erro quando diz
que, embora as fábulas pagãs não sejam criadas, esquecemo-nos, contudo,
continuamente, e tiramos deduções delas como de realidades existentes. Entre os
algebristas, porém, que são igualmente pagãos, as fábulas pagãs" são
criadas, e as inferências são feitas, não tanto de falta de memória como por
causa de uma inexplicável perturbação do cérebro.
Em suma,
nunca encontrei um simples matemático em quem pudesse ter confiança fora das
raízes quadradas, nenhum que, clandestinamente, não mantivesse, como um ponto
de fé que x2+px era absoluta e incondicionalmente igual a q.
Diga a algum
desses cavalheiros, só para experimentar, se lhe aprouver, que você acredita
possam ocorrer ocasiões em que x2 + px não seja igual a q, e tendo feito com
que ele compreenda o que você quer dizer, coloque-se fora de seu alcance, com
toda a rapidez conveniente, pois sem dúvida ele tentará atirá-lo ao chão.
Há um jogo de
adivinhação que se exerce sobre um mapa. Um parceiro, que joga, pede ao outro
para descobrir uma dada palavra, um nome de cidade, rio, estado ou império;
qualquer palavra, em suma, sobre a matizada e intrincada superfície do mapa. Um
novato no jogo procura, geralmente, embaraçar os seus parceiros dando-lhes os
nomes de letras mais miúdas, o veterano escolhe palavras de grandes caracteres
que se estendem de uma extremidade a outra do mapa. Estes, como os letreiros e
tabuletas de rua, com grandes letras, escapam à observação por serem
excessivamente evidentes.
(…)Digo que
a similaridade dessa coincidência deixou-me estupefacto por algum tempo. Tal é
o efeito comum de coincidências tais. A mente luta para estabelecer uma
relação, uma sequência de causa e efeito e, sendo incapaz de fazê-lo,
experimenta uma espécie de paralisia temporária. Mas quando voltei a mim desse
estupor(…)
As
faculdades do espírito, denominadas analíticas, são , em si mesmas, bem pouco
suscetíveis de análise. Apreciamo-las somente em seus efeitos. O que delas
sabemos, entre outras coisas, é que são sempre, para quem as possui em grau
extraordinário, fonte do mais intenso prazer. Da mesma forma que o homem forte
se rejubila com suas aptidões físicas, deleitando-se com os exercícios que põem
em atividade seus músculos, exultam os analistas com essa atividade espiritual,
cuja função é destrinçar enredos. Acha prazer até mesmo nas circunstâncias mais
triviais desde que ponham em jogo seu talento. Adora os enigmas , as advinhas,
os hieróglifos, exibindo nas soluções de todos eles um poder de acuidade, que,
para o vulgo, toma o aspecto de coisa sobrenatural. Seus resultados, alcançados
apenas pela própria alma e essência, têm, na verdade, ares de intuição.
Essa
faculdade de resolução é, talvez, bastante revigorada pelo estudo da matemática
(…)
(…) os mais
altos poderes do intelecto reflexivo
põem-se mais decidida e mais utilmente à prova no modesto jogo de damas
do que em todas as complicadas frivolidades do xadrez. Neste último jogo, em
que as peças têm movimentos diferentes e estranhos, com diversos e variados
valores, o que é complexo - erro
bastante comum - se confunde com o que é profundo. A atenção é nele posta
poderosamente em jogo. Se ela se distrai por um instante, comete-se um erro que
resulta em perda ou em derrota.
Como os
movimentos possíveis não são somente múltiplos, como também intrincados, as
possibilidades de tais enganos se multiplicam. E em nove casos dentre dez é o
jogador mais atento, e não mais hábil, quem ganha. No jogo de damas, pelo
contrário, os movimentos que são únicos e pouco variam, as probabilidades de
engano ficam diminuídas e, a atenção não estando de todo absorvida, todas as
vantagens obtidas pelos jogadores só o são graças a uma perspicácia superior.
Concretizando
o que dissemos, suponhamos um jogo de dama em que as pedras fiquem reduzidas a
quatro damas, e onde, sem dúvida, não se deve esperar engano algum. É evidente
que aqui a vitória pode ser decidida - estando as duas partes em iguais
condições - somente por algum movimento muito hábil, resultado dum forte esforço
intelectual. Privado dos recursos habituais, o analista coloca-se no lugar de
seu adversário, identifica-se com ele não poucas vezes descobre, num simples
relance de vista, o único meio - às vezes absurdamente simples - de induzi-lo a
um erro ou precipitálo num cálculo errado.
Observar
atentamente equivale a recordar com clareza.
(…) Mas é
nas questões acima dos limites da simples regra que se evidencia o talento do
analista. Em silêncio, faz ele uma série enorme de observações e inferências. O
mesmo talvez façam seus parceiros e a diferença de extensão das informações
obtidas não se encontra tanto na validade da dedução como na qualidade da
observação. O necessário é saber o que se tem de observar. Nosso jogador não se
confina no seu jogo, nem rejeita deduções nascidas de coisas externas ao jogo,
somente porque é o jogo o seu objetivo do momento.
Examina a
fisionomia do parceiro, comparando-a cuidadosamente com a de cada um de seus
adversários. Considera a maneira pela qual são arrumadas as cartas em cada mão;
e muitas vezes conta pelos olhares lançados pelos seus possuidores às suas
cartas, os trunfos e figuras que têm. Nota cada movimento do rosto, à medida
que o jogo se adianta, coligindo um cabedal de ideias, graças às diferenças
fisionômicas indicativas de certeza, surpresa, triunfo, ou pesar. Da maneira de
recolher uma vasa, adivinha se a pessoa pode fazer outra da mesma espécie.
Reconhece um jogo fingido da maneira com que é lançada a carta na mesa. Uma
palavra casual ou inadvertida, uma carta que cai acidentalmente, ou que é
virada, e o consequente olhar de ansiedade ou despreocupação com que é
apanhada, a contagem das vasas pela sua ordem de arrumação, embaraço, a
hesitação, a angústia ou a trepidação, tudo isso são sintomas para sua percepção
aparentemente intuitiva, do verdadeiro estado das coisas. Realizadas as duas ou
três primeiras jogadas, está ele na posse completa das cartas que estão em cada
mão e portanto, joga as suas cartas com uma tão absoluta precisão como se o
resto dos jogadores houvesse mostrado as suas.
O poder
analítico não se deve confundir com a simples engenhosidade porque, se bem que
seja o analista necessariamente engenhoso, muitas vezes acontece que o homem
engenhoso é notavelmente incapaz de análise. (…) Entre o engenho e a habilidade
analítica existe uma diferença muito maior, na verdade, do que entre a fantasia
e a imaginação, mas de caráter estritamente análogo.
Verificar-se-á,
com efeito, que os homens engenhosos são sempre fantasistas e os
verdadeiramente imaginativos são, por sua vez, sempre analíticos.
(…)Enfraquecia
sua visão, por aproximar demasiado o objeto. Podia ver, talvez, um ou dois
pontos com uma clareza maravilhosa, mas, ao assim fazer, perdia necessariamente
de vista o caso em seu conjunto total. Tal é o que acontece quando se é
demasiado profundo. A verdade não está sempre dentro dum poço. (…)
É pelos
cumes, acima do plano ordinário, que a razão tacteia seu caminho.
Devemos
recordar-nos de que, em geral, o objectivo dos nossos jornais é antes criar uma
sensação, lavrar um tento, do que favorecer a causa da verdade. Este último fim
só é visado quando parece coincidir com os primeiros. O órgão de imprensa que
simplesmente se ajusta às opiniões comuns (por mais bem fundadas que possam
essas opiniões ser) adquire para si o descrédito da população. A massa popular
olha como profundo apenas quem lhe sugere contradições agudas - ideias
generalizadas. Na lógica, não menos do que na literatura - é o epigrama que se
torna mais imediata e mais universalmente apreciado. E em ambas está na mais
baixa ordem de merecimento.
O corpo humano em geral, não é muito mais
denso nem muito menos denso do que a água; isto é, a gravidade especifica do
corpo humano, é quase igual à massa de água doce que ele desloca. Os corpos das
pessoas gordas e carnudas, de ossos pequenos, e os das mulheres, geralmente,
são menos densos do que os da pessoas magras, de ossos compridos, e os dos
homens; a gravidade específica da água de um rio é um tanto influenciada pela
presença do fluxo marítimo. Mas, deixando a maré de parte, pode-se dizer que
muito poucos corpos humanos se afundarão completamente mesmo na água doce, por
si mesmos. Quase todos, caindo num rio serão capazes de flutuar, se deixam que
a gravidade específica da água perfeitamente se coloque em equilíbrio com a sua
própria isto é, se suportam que sua pessoa fique imersa inteiramente, com a
mínima exceção possível.
A posição
mais conveniente para quem não sabe nadar é a posição erecta de quem anda em
terra, com cabeça completamente atirada para trás e imersa, só permanecendo à
tona a boca e as narinas. Em tais circunstâncias, acharemos que flutuamos sem
dificuldade e sem esforço. É evidente, contudo, que as gravidades do corpo e da
massa de água deslocada são muito delicadamente equilibradas, e que uma
ninharia pode fazer com que uma delas predomine. Um braço, por exemplo, erguido
fora da água e assim privado de seu suporte equivalente, é um peso adicional
suficiente para imergir toda a cabeça, ao passo que a ajuda casual do menor
pedaço de madeira habilitar-nos-á a elevar a cabeça, para olhar em derredor.
Ora, nos
esforços de alguém não acostumado a nadar os braços são invariavelmente
atirados para o alto, ao mesmo tempo que se faz uma tentativa para conservar a
cabeça em sua habitual posição perpendicular. O resultado é a imersão da boca e
das narinas, e a introdução de água nos pulmões durante os esforços para
respirar, enquanto sob a superfície. Muita água é também recebida pelo estômago
e o corpo inteiro se torna mais pesado, dada a diferença entre o peso do ar que
primitivamente distendia aquelas cavidades e o do fluido que então as enche . A
diferença é suficiente para levar o corpo a afundar-se, como regra geral; mas é
insuficiente no caso de indivíduos de ossos pequenos e anormal quantidade de
matéria flácida ou gorda. Tais indivíduos flutuam mesmo depois de afogados.
Supondo-se que o cadáver esteja no fundo do
rio, ele ali permanecerá até que, por algum meio, sua gravidade específica de
novo se torne menor do que a do volume de água que ele desloca. Este efeito é
provocado quer pela decomposição, quer por outro meio. O resultado da
decomposição é a geração de gás, que distendem os tecidos celulares e todas as
cavidades e dá ao cadáver o aspecto de inchado, que é tão horrível. Quando essa
distensão se avolumou de modo que o volume do cadáver é sensivelmente aumentado
sem correspondente aumento da massa, sua gravidade específica torna-se menor do
que a da água deslocada e ele aparece imediatamente à superfície.
Mas a
decomposição é modificada por inúmeras circunstâncias, é apressada ou retardada
por inúmeros agentes. Por exemplo, pelo calor ou pelo frio da estação, pela
impregnação mineral ou pureza da água, pela sua maior ou menor profundidade, pela
corrente ou estagnação, pela temperatura do corpo, pela sua infecção, ou
ausência de doença antes da morte.
Assim é evidente não podemos marcar o tempo,
com exatidão, para que o cadáver se eleve, em consequência da decomposição. Sob
certas circunstância esse resultado poderá processar-se dentro de uma hora; sob
outras, pode não se realizar de modo algum.
Há infusões
químicas por meio das quais o sistema animal pode ser preservado para sempre da
corrupção. O bicloreto de mercúrio é uma delas. Mas, separadamente da
decomposição, pode haver, e geralmente há, uma geração de gás dentro do
estômago, pela fermentação acética de matérias vegetais (ou dentro de outras
cavidades e por outras causas,), suficiente para originar uma distensão que
trará o corpo à tona.
O efeito
produzido por um tiro de um canhão sobre o local onde o cadáver se encontra é o
de simples vibração. Pode fazer o cadáver desprender-se da lama mole, ou da
vasa em que está atolado, permitindo assim que ele se eleve, quando outros
agentes já o prepararam para assim fazer; ou pode vencer a tenacidade de
algumas porções putrescentes do tecido celular, permitindo que as cavidades se
distendam sob a influência do gás.
Demonstrei
como acontece que o corpo de um homem que se afoga se torna especificamente
mais pesado do que seu volume de água, e que ele não afundará absolutamente, a
não ser que lute, elevando os braços acima da superfície da água, e faça
esforços para respirar, enquanto se acha debaixo de água, esforços que
substituem por água o lugar do ar nos pulmões. Mas esta luta e estes esforços
não ocorrem nos corpos "atirados dentro da água logo depois de uma morte
violenta. De modo que, neste último caso, o corpo, em regra geral, não afundará
absolutamente.
Quando a
decomposição alcançou um ponto bem adiantado, quando a carne já se despregou
dos ossos em grande parte, então, de facto, mas não até então, nós vemos o
cadáver desaparecer.
Eu desejaria
observar aqui que muito do que é rejeitado como prova de um tribunal é a melhor
evidência para a inteligência. Porque o tribunal, guiando-se pelos princípios
gerais de prova - os princípios reconhecidos e livrescos - mostra-se adverso a
inclinar-se em favor de provas particulares. E esta firme adesão aos
princípios, com severo desprezo da excepção contraditória, é a maneira segura
de atingir o máximo de verdade atingível em uma longa consequência de tempo. A
prática, em massa, é, por isso, filosófica, não é menos certo que engendra
vasto erro individual.
É erro comum,
em investigações, limitar a pesquisa ao imediato, com total desprezo pelos
acontecimentos colaterais ou circunstâncias. É mau costume dos tribunais
confinar a instrução e discussão nos limites da relevância aparente. Contudo a
experiência tem mostrado e uma verdadeira filosofia sempre mostrará que uma
vasta e talvez a maior porção de verdade brota das coisas aparentemente
irrelevantes. É pelo espírito desse princípio se não precisamente pela sua
letra, que a ciência moderna tem resolvido calcular sobre o imprevisto. A
história do conhecimento humano tem tão ininterruptamente mostrado que devemos
aos acontecimentos colaterais, fortuitos ou acidentais as mais numerosas e as
mais valiosas descobertas que se tornou afinal necessário, na perspectiva do
progresso vindouro, fazer não somente grandes, mas as maiores concessões às
invenções que surgem por acaso, e completamente fora das previsões ordinárias.
Já não é filosófico basear-se sobre o que tem sido uma visão do que deve ser. O
acidente é admitido como uma das subestruturas. Fazemos do acaso matéria de
cálculo absoluto. Sujeitamos o inesperado e o inimaginável às fórmulas
matemáticas das escolas.
Vá alguém
que, sendo de coração amante da natureza, que ainda encadeado pelos deveres ao
calor e ao pó da grande cidade, vá esse alguém tentar, mesmo durante os dias da
semana, saciar sua sede de solidão entre os panoramas de encanto natural que de
perto nos circundam. A cada passo encontrará o feitiço nascente, rompido pela
voz ou pela intromissão pessoal de algum rufião ou bando de vadios embriagados.
Buscará o recolhimento entre as mais densas folhagens, mas tudo em vão. Estão
ali os próprios esconderijos, em que a ralé é mais abundante, esses são os
templos mais profanados. Com angústia no coração, o passeante voará de volta à
poluída Paris, latrina de poluição menos imprópria, porque menos odiosa. Mas se
a vizinhança da cidade é tão frequentada durante os dias de trabalho da semana,
quanto mais não o será aos domingos! É especialmente então que, libertada das
cadeias do trabalho, ou privadas das costumeiras oportunidades para o crime, a
vadiagem da cidade busca-lhe os arredores, não pelo amor do campo, que no
íntimo ela despreza, mas como um meio de escapar às restrições e
convencionalismos sociais.
Deseja menos
o ar fresco e as árvores verdejantes do que a extrema licença campestre. Ali,
na estalagem, à beira da estrada ou sob a folhagem das árvores, ela se entrega,
sem ser refreada por qualquer olhar, excepto o de seus alegres companheiros, a
todos os loucos excessos de uma hilaridade contrafeita, produto conjunto da
liberdade e da aguardente.
Não há no
meu coração nenhuma fé no sobrenatural. Que a Natureza e Deus sejam dois,
nenhum homem que pensa poderá negá-lo. Que este, criando aquela, pode, à
vontade, controlá-la, ou modificá-la, é também incontestável. Digo "à
vontade", pois a questão é de vontade, e não de poder, como certos lógicos
absurdos o têm suposto. Não é que a Divindade não possa modificar suas leis,
mas nós a insultamos imaginando uma possível necessidade de modificação. Na sua
origem essas leis foram feitas para abarcar todas as contingências que poderiam
fazer no futuro. Com Deus tudo é presente.