“Será admirável o nosso novo mundo? A
quem serve esta civilização que se diz moderna e funcional e, ao aparato das
técnicas, sacrifica o espírito?... O espírito, considerado realidade menor, o
espírito tolerado, quando não reprimido... Qual, o lugar do homem, numa
sociedade dominada pela máquina? Qual, o caminho para o Indivíduo que
reivindique a liberdade interior e o direito à sua... individualidade, à sua
singularidade? Para o Indivíduo que queira caminhar pelos próprios pés? Aldous
Huxley, um dos maiores escritores contemporâneos, descreve, em «Admirável Mundo
Novo», com fantasia e ironia implacável, a sociedade futura totalitarista.
Simplesmente, o universo que o grande romancista inglês ainda pertence, de
certo modo, aos nossos dias. Quase já não pode considerar-se uma ameaça: tomou
corpo. O que empresta à leitura desta obra uma força trágica invulgar. Mundo
novo? Mundo intolerável? Mundo inabitável? Mundo de onde se deve fugir, de
qualquer maneira? Ou, mundo a reconstruir- pedra por pedra? Com uma pureza
reconquistada? Aldous Huxley deixa-lhe este montinho de problemas que o leitor
poderá- se quiser e souber... - resolver...”
Prefácio de
Aldous Huxley:
(…) O
remorso crónico, e com isto todos os moralistas estão de acordo, é um
sentimento bastante indesejável. Se considerais ter agido mal, arrependei-vos,
corrigi os vossos erros na medida do possível e tentai conduzir-vos melhor na
próxima vez. E não vos entregueis, sob nenhum pretexto, à meditação melancólica
das vossas faltas. Rebolar no lodo não é, com certeza, a melhor maneira de
alguém se lavar.
E eis porque
este actual Admirável Mundo Novo é o mesmo que o antigo. Os seus defeitos, como
obra de arte, são consideráveis; mas para os corrigir ser-me-ia necessário
escrever novamente o livro, e durante esse novo trabalho de redacção, ao qual
me entregaria na qualidade de pessoa mais velha e diferente, destruiria
provavelmente não apenas alguns defeitos do romance, mas também os méritos que
ele poderia ter possuído na origem. Por esta razão, resistindo à tentação de me
rebolar no remorso artístico, prefiro considerar que o óptimo é inimigo do bom
e depois pensar noutra coisa.
Verifico,
não menos tristemente que outrora, que a saúde do espírito é um fenómeno muito
raro, estou convencido de que pode ser conseguida e gostaria de a ver mais
espalhada.
Os
benfeitores da humanidade merecem congruentemente a honra e a comemoração.
Edifiquemos um panteão para os professores. Seria bom que ele ficasse situado
entre as ruínas de uma das estripadas cidades da Europa ou do Japão. E no
pórtico de entrada do ossário inscreveria eu, em letras com dois metros de
altura, estas simples palavras:
À MEMÓRIA DOS EDUCADORES DO MUNDO
SI
MONUMENTUM REQUIRIS CIRCUMSPICE
A revolução
verdadeiramente revolucionária realizar-se-á não no mundo exterior, mas na alma
e na carne dos seres humanos.
Admitindo,
pois, que sejamos capazes de tirar de Hiroxima uma lição equivalente à que os
nossos antepassados tiraram de Magdeburgo, podemos encarar um período não
certamente de paz, mas de guerra limitada, que seja apenas parcialmente
ruinosa. Durante esse período pode-se admitir que a energia nuclear seja
aplicada a usos industriais. O resultado - e o facto é bastante evidente- será
uma série de mudanças económicas e sociais mais rápidas e mais completas que
tudo que até agora foi visto. Todas as formas gerais existentes da vida humana
serão quebradas e será necessário improvisar formas novas que se adaptem a esse
facto não humano que é a energia atómica. Procusto moderno, o sábio de pesquisas
nucleares prepara a cama em que a humanidade se deverá deitar; se a humanidade
não se adaptar a ela, tanto pior para a humanidade. Será necessário proceder a
algumas ampliações e a algumas amputações - o mesmo género de ampliações e
amputações que se verificaram desde que a ciência aplicada se pôs realmente a
caminhar com a sua própria cadência. Mas desta vez serão consideravelmente mais
rigorosas que no passado. Estas operações, que estão longe de ser feitas sem
dor, serão dirigidas por governos totalitários eminentemente centralizados. É
uma coisa inevitável, pois o futuro imediato tem grandes probabilidades de se
parecer com o passado imediato, e no passado imediato as mudanças tecnológicas
rápidas, efectuando-se numa economia de produção em massa e entre uma população
onde a grande maioria dos indivíduos nada possui, têm tido sempre a tendência
para criar uma confusão económica e social. A fim de reduzir essa confusão, o
poder tem sido centralizado e o controle governamental aumentado. É provável
que todos os governos do Mundo venham a ser mais ou menos totalitários, mesmo
antes da utilização prática da energia atómica; que eles serão totalitários
durante e após essa utilização prática, eis o que parece quase certo. Só um
movimento popular em grande escala, tendo em vista a descentralização e o
auxílio individual, poderá travar a actual tendência para o estatismo. E não
existe presentemente nenhum sinal que permita pensar que tal movimento venha a
ter lugar.
Não há
nenhuma razão, bem entendido, para que os novos totalitarismos se pareçam com
os antigos. O governo por meio de cacetes e de pelotões de execução, de fomes
artificiais, de detenções e deportações em massa não é somente desumano (parece
que isso não inquieta muitas pessoas, actualmente); é - pode demonstrar-se -
ineficaz. E numa era de técnica avançada a ineficácia é pecado contra o
Espírito Santo. Um estado totalitário verdadeiramente «eficiente» será aquele
em que o todo-poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército
de directores terá o controle de uma população de escravos que será inútil
constranger, pois todos eles terão amor à sua servidão. Fazer que eles a amem,
tal será a tarefa, atribuída nos estados totalitários de hoje aos ministérios
de propaganda, aos redactores-chefes dos jornais e aos mestres-escolas. Mas os
seus métodos são ainda grosseiros e não científicos.
Os jesuítas
gabavam-se, outrora, de poderem, se lhes fosse confiada a instrução da criança,
responder pelas opiniões religiosas do homem. Mas aí tratava-se de um caso de
desejos tomados por realidades. E o pedagogo moderno é provavelmente menos
eficaz, no condicionamento dos reflexos dos seus alunos, do que o foram os
reverendos padres que educaram Voltaire. Os maiores triunfos, em matéria de
propaganda, foram conseguidos não com fazer qualquer coisa, mas com a abstenção
de a fazer. Grande é a
verdade, mas
maior ainda, do ponto de vista prático, é o silêncio a respeito da verdade.
Abstendo-se simplesmente de mencionar alguns assuntos, baixando aquilo a que o
Sr. Churchil chama uma «cortina de ferro» entre as massas e certos factos que
os chefes políticos locais consideram como indesejáveis, os propagandistas
totalitários têm influenciado a opinião de uma maneira bastante mais eficaz do
que teriam podido fazê-lo Por meio de denúncias eloquentes ou das mais
convincentes e lógicas refutações. Mas o silêncio não basta. Para que sejam
evitados a perseguição, a liquidação e outros sintomas de atritos sociais, é
necessário que o lado positivo da propaganda seja tão eficaz como o negativo.
Os mais importantes Manhattan Projects do futuro serão vastos inquéritos
instituídos pelo governo sobre aquilo a que os homens políticos e os homens de
ciência que nele participarão chamarão o problema da felicidade - noutros
termos: o problema que consiste em fazer os indivíduos amar a sua servidão. Sem
segurança económica, não tem o amor pela servidão nenhuma possibilidade de se
desenvolver; admito, para resumir, que a todo-poderosa comissão executiva e os
seus directores conseguirão resolver o problema da segurança permanente. Mas a
segurança tem tendência para ser muito rapidamente considerada como caminhando
por si própria. A sua realização é simplesmente uma revolução superficial,
-exterior. O amor à servidão não pode ser estabelecido senão como resultado de
uma revolução profunda, pessoal, nos espíritos e nos corpos humanos. Para
efectuar esta revolução necessitaremos, entre outras, das descobertas e
invenções seguintes: Primo - uma técnica muito melhorada da sugestão, por meio
do condicionamento na infância e, mais tarde, com a ajuda de drogas, tais como
a escopolamina. Secundo - um conhecimento científico e perfeito das diferenças
humanas que permita aos dirigentes governamentais destinar a todo o indivíduo
determinado o seu lugar conveniente na hierarquia social e económica - as
cunhas redondas nos buracos quadrados (Expressão metafórica inglesa que designa
um indivíduo que está num lugar que lhe não é próprio) possuem tendência para
ter ideias perigosas acerca do sistema social e para contaminar os outros com o
seu descontentamento. Tercio (pois a realidade, por mais utópica que seja, é
uma coisa de que todos temos necessidade de nos evadir frequentemente) - um
sucedâneo do álcool e de outros narcóticos, qualquer coisa que seja simultaneamente
menos nociva e mais dispensadora de prazeres que a genebra ou a heroína. Quarto
(isto será um projecto a longo prazo, que exigirá, para chegar a uma conclusão
satisfatória, várias gerações de controle totalitário) - um sistema eugénico
perfeito, concebido de maneira a estandardizar o produto humano e a facilitar,
assim, a tarefa dos dirigentes. No Admirável Mundo Novo esta estandardização
dos produtos humanos foi levada a extremos fantásticos, se bem que talvez não
impossíveis. Técnica e ideologicamente, estamos ainda muito longe dos bebés em
proveta e dos grupos Bokanovsky de semi-imbecis. Mas quando for ultrapassado o
ano 600 de N. F., quem sabe o que poderá acontecer? Daqui até lá, as outras
características desse mundo mais feliz e mais estável - os equivalentes do
soma, da hipnopedia e do sistema científico das castas - não estão
provavelmente afastadas mais de três ou quatro gerações. E a promiscuidade
sexual do Admirável Mundo Novo também não parece estar muito afastada. Existem
já certas cidades americanas onde o número de divórcios é igual ao número de
casamentos. Dentro de alguns anos, sem dúvida, passar-se-ão licenças de
casamento como se passam licenças de cães, válidas para um período de doze
meses, sem nenhum regulamento que proíba a troca do cão ou a posse de mais de
um animal de cada vez. À medida que a liberdade económica e política diminui, a
liberdade sexual tem tendência para aumentar, como compensação. E o ditador (a
não ser que tenha necessidade de carne para canhão e de famílias para colonizar
os territórios desabitados ou conquistados) fará bem em encorajar esta
liberdade juntamente com a liberdade de sonhar em pleno dia sob a influência de
drogas, do cinema e da rádio, ela contribuirá para reconciliar os seus súbditos
com a servidão que lhes estará destinada. Vendo bem, parece que a Utopia está
mais próxima de nós do que se poderia imaginar há apenas quinze anos. Nessa
época coloquei-a à distância futura de seiscentos anos. Hoje parece
Praticamente possível que esse horror se abata sobre nós dentro de um século.
Isto se nos abstivermos, até lá, de nos fazermos explodir em bocadinhos.
Na verdade,
a menos que nos decidamos a descentralizar e a utilizar a ciência aplicada não
com o fim de reduzir os seres humanos a simples instrumentos, mas como meio de
produzir uma raça de indivíduos livres, apenas podemos escolher entre duas
soluções: ou um certo número de totalitarismos nacionais, militarizados, tendo
como base o terror da bomba atómica e como consequência a destruição da civilização
(ou, se a guerra for limitada, a perpetuação do militarismo), ou um único
totalitarismo internacional, suscitado pelo caos social resultante do rápido
progresso técnico em geral e da revolução atómica em particular,
desenvolvendo-se, sob a pressão da eficiência e da estabilidade, no sentido da
tirania-providência da Utopia. É pagar e escolher. ALDOUS HUXLEY
(…) a divisa
do Estado Mundial: COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE
(…)Era
conveniente, que a ideia fosse o mais resumida possível se se quisesse que,
mais tarde, eles fossem membros disciplinados e felizes da sociedade, dado que
os pormenores, como se sabe, conduzem à virtude e à felicidade, e as
generalidades são, sob o ponto de vista intelectual, males inevitáveis.
Não são os
filósofos, mas sim aqueles que se entregam às construções de madeira e às
colecções de selos, que constituem a estrutura da sociedade.
Quando se
não tem o hábito da história, os factos relativos ao passado parecem quase
sempre inacreditáveis.
Os extremos tocam-se,
pela excelente razão de serem obrigados a tocarem-se.
(…) Por toda
a parte o sentimento do exclusivo, por toda a parte a concentração de
interesses sobre um único assunto, uma estreita canalização dos impulsos e da
energia. "Porém cada um pertence a todos os outros".
(…) O mundo
deles não lhes permitia tomar as coisas ligeiramente, não lhes permitia serem
sãos de espírito, virtuosos, felizes. Com as suas mães e os seus amantes, com
as suas proibições, para as quais não estavam condicionados, com as suas tentações
e os seus remorsos solitários, com todas as suas doenças e a sua dor, que os
isolava infinitamente, com as suas incertezas e a sua pobreza, eram obrigados a
sentir violentamente as coisas. E, sentindo-as violentamente (violentamente e,
o que é pior, na solidão, no isolamento desesperadamente individual), como
podiam ser estáveis?
Não há
civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem
estabilidade individual.
A máquina
gira, gira e deve continuar a girar eternamente. Se ela pára, é a morte. Eram
um bilião a esgravatar a terra. As engrenagens começaram a girar. Ao fim de cento
e cinquenta anos eram dois biliões. Pararam todas as engrenagens. Ao fim de
cento e cinquenta semanas apenas eram, novamente, um bilião: mil milhares de milhares
de homens e mulheres tinham morrido de fome. É preciso que as engrenagens girem
regularmente, mas elas não podem girar sem serem convenientemente cuidadas. É
necessário que haja homens para tratar delas, tão eficazes como as próprias
engrenagens nos seus eixos, homens sãos de espírito, estáveis na sua
satisfação. Gritando: "Meu filho, meu filho, minha mãe, meu verdadeiro,
meu único amor", gemendo -" «Meu pecado, meu Deus terrível",
uivando de dor, delirando de febre, temendo a velhice e a pobreza, como podem
eles cuidar das engrenagens? E, se não podem cuidar das engrenagens..., seria
difícil enterrar ou queimar os cadáveres de mil milhares de homens e mulheres.
(…) o facto
é que já há algum tempo que não sinto muita disposição para ser ... acessível a
todos. Há momentos em que não estamos dispostos a isso... Nunca sentiste isso?
Reprimido, o
impulso transborda e, espalhada a torrente, é o sentimento; espalhada a
torrente é a paixão; espalhada a torrente, é a própria loucura: tudo isso
depende da força da corrente, da altura e da resistência da barragem. O ribeiro
sem obstáculos corre única e simplesmente ao longo dos canais que lhe foram
destinados, em direcção a uma calma euforia. (…)derrubem-se todas essas velhas
e inúteis barragens.
- Feliz
gente nova! Nenhum trabalho foi poupado para tornar a vossa vida emotivamente
fácil, para a preservar, tanto quanto possível, até das próprias emoções.
Discursos
sobre a liberdade do indivíduo… A liberdade de não servir para nada e de ser
miserável. A liberdade de ser uma cunha redonda num buraco quadrado.(…) Ou
então o sistema de castas. Constantemente proposto e constantemente recusado.
Havia uma coisa chamada democracia. Como se os homens fossem iguais, a não ser
físico-quimicamente!
CH3 C6 H2
(NO2)3+Hg (CNO)2=quê, em suma? Um enorme buraco no solo, um monte de alvenaria,
alguns fragmentos de carne e de muco, um pé ainda calçado com o sapato voando e
tornando a cair ...
Os fatos
velhos são detestáveis. Nós deitamos sempre fora os fatos velhos. Mais vale destruir
que conservar, mais vale destruir...
Para
governar, é necessário deliberar, e não perseguir.
Governa-se
com o cérebro, nunca com os punhos.
(…)Todas as
vantagens do cristianismo (…)Podem obter uma fuga da realidade cada vez que
disso sentirem necessidade e voltar a ela sem a menor dor de cabeça nem
vestígios de mitologia.
O carácter
continua constante durante toda a vida.
As palavras
podem ser semelhantes aos raios X se delas nos servirmos convenientemente.
Atravessam tudo. Lê-se e é-se atravessado. (…)pode-se fazer com que as palavras
sejam verdadeiramente perfurantes (…)
Quando as
pessoas se mostram cheias de suspeitas a nosso respeito, começamos também a
suspeitar delas.
É uma bela
coisa pensar que podemos continuar a ser socialmente úteis mesmo depois de
mortos. Para fazer crescer as plantas.
Estar
excitado é estar insatisfeito.
O seu êxtase
era aquele calmo êxtase da perfeição atingida, a paz, não da simples saciedade
e do nada, mas da vida, equilibrada, das energias em repouso e bem contrabalançadas.
Prefiro ser
eu mesmo, mesmo que desagradável. E não qualquer outro, por mais alegre que
seja.
(…) sensação
de ser mais eu. De agir por mim mesmo e não apenas como uma parte de outra
coisa. De não ser simplesmente uma célula do corpo social.
Mas não
sente o desejo de ser livre de outra forma? De uma maneira pessoal, por
exemplo, e não à maneira de todos.
Não deixes
para amanhã o prazer que puderes gozar hoje.
… a
civilização é a esterilização…
Um homem
pode prodigalizar sorrisos e não passar de um celerado. Traidor, devasso,
celerado sem remorsos e sem bondade.
Ser
diferente condena a uma fatal solidão. E a um tratamento abominável.
Quanto maior
é a capacidade de um homem, mais possibilidades tem de desencaminhar os outros.
Mais vale o
sacrifício de um só que a corrupção de muitos.
Como é
difícil conseguir um tom persuasivo quando se grita a plenos pulmões.
Quanto mais
elevada é a posição hierárquica, mais profundo é o ressentimento.
(…) o balão
bem inchado que era a confiança de Bernard em si próprio esvaziava-se por mil
orifícios.
Uma Nova
Teoria da Biologia, tal era o título da memória que Mustafá Mond acabava de
ler. Ficou sentado algum tempo, os sobrolhos franzidos meditativamente. Depois
pegou na caneta e escreveu transversalmente na página do título: «A maneira
como o autor trata matematicamente a concepção de fim é nova e altamente
engenhosa, mas herética, e, no que respeita à presente ordem social,
potencialmente perigosa e subversiva. Não publicar.» Sublinhou estas palavras.
«O autor será sujeito a uma vigilância especial. Poderá tornar-se necessária a
sua transferência para a Estação de Biologia Marítima de Santa Helena.» «É
pena», pensou, enquanto assinava. Era um trabalho magistral. Mas desde que se
começam a admitir explicações de ordem finalística, hum, não se sabe até onde
isso pode levar. É este género de ideias que poderia facilmente descondicionar
os espíritos menos solidamente fixados entre as classes superiores, que poderia
fazê-los perder a fé na felicidade como supremo bem e fazê-los acreditar, ao
invés disso, que o fim está em qualquer parte para além, em qualquer parte fora
da esfera humana presente, que o objectivo da vida não é a manutenção do
bem-estar, mas sim um certo reforço, um certo refinamento da consciência, algum
aumento do saber... « Coisa que -pensou o Administrador - pode muito bem ser
verdade, mas é inadmissível nas circunstâncias actuais.» Pegou de novo na
caneta e sob as palavras Não publicar riscou um segundo traço, mais grosso,
mais negro que o primeiro. Depois suspirou: «Como isto seria divertido se não
fosse obrigado a pensar na felicidade!»
(…) E
amanheceu. Bernard voltou a encontrar-se no meio das misérias do espaço e do
tempo. Foi num estado de desencorajamento total que tomou o táxi, dirigindo-se
ao seu trabalho no Centro de Condicionamento. Tinha-se evaporado a embriaguez
do sucesso; voltara a ter, em jejum, o seu eu antigo. E, em contraste com o
balão temporário das últimas poucas semanas, o eu antigo parecia ser, como
nunca o fora, mais pesado que a atmosfera ambiente.
(…) a
verdade do que lhe dizia agora o Selvagem acerca do valor nulo desses amigos
que podiam transformar-se em inimigos perseguidores por causa de uma tão
pequena afronta.
Uma das
principais funções de um amigo consiste em suportar (sob uma forma mais suave e
mais simbólica) os castigos que desejaríamos, mas não podemos, infligir aos
nossos inimigos.
Esse bom
velho - Shakespeare - faz parecerem inteiramente tolos os nossos melhores
técnicos de propaganda! (…) Porque é que esse bom velho era um tão maravilhoso
técnico de propaganda? Porque dispunha de bastantes coisas insensatas,
loucamente dolorosas, pelas quais se podia exaltar. É preciso estar-se ferido,
perturbado, pois sem isso não se encontram as expressões verdadeiramente boas,
penetrantes, as frases de raios X.
Nada se pode
alcançar sem perseverança.
A
dificuldade realça as delícias.
(…) as pessoas casam-se. (…) Para sempre. As
pessoas prometem viver juntas para sempre. (…)Durando mais que o brilho
exterior da beleza, com uma alma que se renova mais depressa que o sangue se
destrói.
O antro mais
sombrio, o lugar mais propício - a voz da consciência declamava poeticamente -,
tudo o que o nosso demónio nos possa propor de pior, não fará nunca transformar
a minha honra em vis desejos. Nunca, nunca!
"Porquê
esses seios que, através das grades das janelas, perturbam os olhos dos homens
... " As palavras cantantes, ribombantes, mágicas, faziam-na parecer
duplamente perigosa, duplamente tentadora. Doces, doces, mas quão penetrantes!
Furando e brocando a razão, abrindo um túnel através da sua resolução.
"Quando o sangue está inflamado, os juramentos mais inflamados não são
mais que palha."
Oh, flor tão
gracilmente bela, tão deliciosamente odorífera, que inebrias os sentidos! Esse
soberbo velino, esse admirável livro, foi feito para que se lhe escrevesse por
baixo meretriz!
A felicidade
real parece sempre bastante sórdida quando comparada com as largas compensações
que se encontram na miséria. E é evidente que a estabilidade, como espectáculo,
não chega aos calcanhares da instabilidade. E o facto de se estar satisfeito
não tem nada do encanto mágico de uma boa luta contra a desgraça, nada do
pitoresco de um combate contra a tentação ou de uma derrota fatal sob os golpes
da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.
- Pergunto a
mim próprio - disse o Selvagem - como consegue tolerá-los (tipos asquerosos) no
final de contas, dado poder produzir aquilo que quiser nessas provetas, já que
está entregue a essa função, porque não faz de cada um deles um Alfa-Mais-Mais
(Pessoas Distintas)?
Mustafá riu
novamente. - Porque não temos vontade nenhuma de nos fazer estrangular -
respondeu. - Acreditamos na felicidade e na estabilidade. Uma sociedade
composta de Alfas não poderia deixar de ser instável e miserável. Imagine uma
fábrica onde todo o pessoal fosse constituído por Alfas, quer dizer, por
indivíduos distintos, sem relações de parentesco, de boa hereditariedade e
condicionados de forma a serem capazes (dentro de certos limites) de escolher
livremente e de arcar com responsabilidades. Imagine isso!- repetiu.
O Selvagem tentou imaginar, mas sem grande
sucesso.
- É um absurdo. Um homem decantado em Alfa,
condicionado em Alfa, enlouqueceria se tivesse de fazer o trabalho de um
Epsilão semiaborto, enlouqueceria ou começaria a destruir tudo. Os Alfas podem
ser completamente socializados, mas com a condição de só os obrigarem a fazer
trabalhos de Alfas. Só a um Epsilão se pode pedir que faça os sacrifícios de um
Epsilão, pela boa razão de que se não trata de sacrifícios. É a linha da menor resistência. O seu condicionamento
traçou a via que terá de percorrer. Não tem outro remédio, está fatalmente
predestinado. Mesmo depois da decantação, está sempre dentro de uma proveta, de
uma invisível proveta de fixações infantis e embrionárias. Cada um de nós, já
se vê - prosseguiu meditativamente o Administrador -, atravessa a vida dentro
de uma proveta. Mas se acontece sermos Alfas, a nossa proveta, relativamente, é
enorme. Sofreríamos intensamente se estivéssemos condicionados num espaço mais
limitado. Não se pode deitar pseudochampanhe para castas superiores em provetas
da casta inferior. É teoricamente evidente.
Mas é coisa
que está igualmente demonstrada na vida real. O resultado da experiência de
Chipre foi convincente.
- Mas que
experiência foi essa? -perguntou o Selvagem.
Mustafá Mond
sorriu.
- Pode-se,
sem dúvida e se o quisermos, designá-la como uma experiência de
reemprovetamento. A experiência começou no ano 473 de N. F. Os Administradores
fizeram evacuar da ilha de Chipre os habitantes existentes e recolonizaram-na
com um lote especialmente preparado de vinte e dois mil Alfas. Confiou-se-lhes
um equipamento agrícola e industrial muito completo e deixou-se-lhes a responsabilidade
de gerirem os seus negócios. Os resultados estiveram em completo acordo com
todas as previsões teóricas. A terra não foi convenientemente trabalhada, houve
greves em todas as fábricas, as leis valiam menos que nada, desobedeciam às
ordens dadas, todas as pessoas destacadas para efectuar uma missão de categoria
inferior passavam o tempo a fomentar intrigas, tentando obter trabalho de
categoria mais elevada, e todas as pessoas dos cargos superiores fomentavam
contraintrigas para poderem continuar, por qualquer preço, nos lugares que
ocupavam. Em menos de seis anos estavam embrulhados numa guerra civil de
primeira ordem. Quando, dos vinte e dois mil, foram mortos dezanove mil, os
sobreviventes fizeram uma petição unânime aos Administradores Mundiais a fim de
estes retomarem o governo da ilha. Foi o que se fez. E assim terminou a única
sociedade de Alfas de que o mundo teve conhecimento.
O Selvagem
soltou um profundo suspiro.
- A
população óptima - continuou Mustafá Mond - deve obedecer ao modelo do iceberg:
oito nonos abaixo da linha de flutuação, um nono acima da linha.
- E os que
estão abaixo da linha de flutuação sentem-se felizes?
Mais felizes
que os de cima.
- Apesar do
trabalho horrível?
- Horrível?
Mas essa não é a opinião deles. Pelo contrário, agrada-lhes. É leve e de uma
simplicidade infantil. Nenhum esforço excessivo nem para o espírito, nem para
os músculos. Sete horas e meia de um trabalho leve, nada esgotante, e depois a
ração de soma (droga), os desportos, a cópula sem restrições e o cinema
perceptível. Que mais podiam eles pedir? É certo - acrescentou - que poderiam
pedir uma jornada de trabalho mais curta. E, bem entendido, podíamos
conceder-lha. Tecnicamente, seria perfeitamente possível reduzir a três ou
quatro horas a jornada de trabalho das castas inferiores. Mas isso torná-las-ia
mais felizes? Não, em nada. A experiência foi tentada há mais de século e meio.
Toda a Irlanda foi colocada no regime da jornada de quatro horas. E qual foi o
resultado? Perturbações e um acréscimo notável do consumo de soma. Mais nada.
Estas três horas e meia de folga suplementar estavam tão longe de ser uma fonte
de felicidade que as pessoas se viam obrigadas a evadir-se pelo soma.
O Gabinete
de Invenções regurgitava de planos de dispositivos destinados a poupar a mão-de-obra.
Há milhares - Mustafá Mond fez um gesto largo. - E porque não os pomos em
execução? Para bem dos trabalhadores. Seria pura crueldade proporcionar-lhes
folgas excessivas. E acontece o mesmo com a agricultura. Poderíamos fabricar por
síntese a mais ínfima parcela dos nossos alimentos, se o quiséssemos. Mas não o
fazemos. Preferimos conservar no trabalho da terra um terço da população. Para
seu próprio bem, porque é preciso mais tempo para obter os elementos a partir
da terra do que utilizando as fábricas. Além de que precisamos de pensar na
nossa estabilidade. Não queremos mudar. Qualquer mudança é uma ameaça para a
estabilidade. Aqui está uma outra razão para que estejamos tão pouco inclinados
a utilizar invenções novas. Qualquer descoberta da ciência pura é
potencialmente subversiva; qualquer ciência tem de ser, às vezes, tratada como
um possível inimigo. Sim, mesmo a ciência.
A ciência? O
Selvagem franziu os sobrolhos.
- Sim -
dizia Mustafá Mond -, esta é outra parcela no passivo da estabilidade. Não é
apenas a arte que é incompatível com a felicidade. Há também a ciência. A
ciência é perigosa; somos obrigados a mantê-la cuidadosamente acorrentada e
amordaçada.
(…) Pela
minha parte, era muito bom físico, nos meus tempos. Muito bom, suficientemente
bom para me aperceber de que toda a nossa ciência não passa, afinal, de um
livro de cozinha, com uma teoria ortodoxa da arte culinária de que ninguém tem
o direito de duvidar e uma lista de receitas às quais é preciso nada
acrescentar, a não ser com a autorização especial do Primeiro Chefe. Agora, sou
eu o Primeiro Chefe. Mas houve tempo em que não passava de um jovem bicho de
cozinha, cheio de curiosidade. E comecei a cozinhar à minha maneira. Cozinha
heterodoxa, cozinha ilícita. Um pouco de ciência verdadeira, em suma.
(…) a mais
interessante sociedade de homens e mulheres existente em qualquer parte do
mundo, todas as pessoas que, por esta ou aquela razão, tomaram individualmente
excessiva consciência do seu eu para poderem adaptar-se à vida em comum, todas
as pessoas insatisfeitas com a ortodoxia, que têm ideias independentes, bem
pessoais, todos aqueles que, numa palavra, são alguém. N
- Deram-me a
escolher: ser enviado para uma ilha, onde me seria possível continuar os meus
estudos de ciência pura, ou então ser admitido no Conselho Supremo, com a
perspectiva de ser promovido em tempo oportuno a um cargo de Administrador.
Escolhi isto e abandonei a ciência. - Depois de um breve silêncio, acrescentou:
- Às vezes tenho pena de ter deixado a ciência. A felicidade é uma soberana
exigente, sobretudo a felicidade dos outros. Uma soberana bastante mais
exigente, se não estamos condicionados para a aceitar sem discussões, que a
verdade. - Suspirou, recaindo no silêncio. Depois continuou em tom vivaz: -
Enfim, o dever é o dever.
Não se pode
consultar as preferências pessoais. Interesso-me pela verdade, amo a ciência.
Mas a verdade é uma ameaça, a ciência é um perigo público. Ela é actualmente
tão perigosa como já foi benfazeja. Deu-nos o equilíbrio mais estável que a
história registou. (…) não podemos permitir à ciência que desfaça o bom
trabalho que realizou. Aqui está porque estabelecemos com tanto cuidado os
limites das suas investigações (…) Apenas lhe permitimos que se ocupe dos
problemas mais urgentes do momento. Todas as outras pesquisas são
cuidadosamente desencorajadas.
É curioso
-continuou depois de uma curta pausa - ler o que se escrevia na época de Nosso
Ford (1908) acerca do progresso científico. Parece que pensavam que se lhe podia
permitir que se processasse indefinidamente, sem consideração por qualquer
outra coisa. O saber era o deus mais alto, a verdade o valor supremo. Tudo o
mais era secundário e subordinado. É verdade, também, que as ideias começaram a
modificar-se a partir dessa época. Nosso Ford (Henry Ford) fez muito para tirar
à verdade e à beleza a importância que lhe concediam, transferindo essa
importância para o conforto e para a felicidade. A produção em massa exigia
esta transferência. A felicidade universal mantinha as engrenagens em
funcionamento muito regular, a verdade e a beleza não eram capazes de tal. E,
esclareça-se, cada vez que as massas se apoderavam do poder político era a
felicidade, mais que a verdade e a beleza, o que importava. Todavia, e apesar
de tudo, as investigações científicas sem restrições eram ainda autorizadas.
Continuava-se sempre a falar da verdade e da beleza como se fossem os bens
supremos. (…) Foi então que a ciência começou a ter as rédeas apertadas. (…) Isso
não foi lá grande coisa para a verdade, claro. Mas foi excelente para a
felicidade. É impossível conseguir-se alguma coisa por nada. A felicidade tem
de ser paga.
(…) - Mas
Deus não muda.
- Mas mudam
os homens.
- E que diferença faz isso?
Um mundo
inteiro de diferença.
O Céu e a
Terra encerram mais mistérios que os que a filosofia pode imaginar!
- Houve um
homem, que se chamou cardeal Newman (John Henry) que escreveu: «Nós não
pertencemos a nós próprios mais do que nos pertence aquilo que possuímos. Não
fomos nós que nos fizemos, não podemos ter a jurisdição suprema sobre nós
mesmos. Não somos senhores de nós. Pertencemos a Deus. Não é para nós uma
felicidade encararmos as coisas desta maneira? Será, por qualquer razão, uma
felicidade, um conforto, considerarmos que pertencemos a nós mesmos? Aqueles
que são jovens e os que estão em estado de prosperidade podem acreditá-lo.
Esses podem acreditar que é uma grande coisa poder realizar tudo de acordo com
os seus desejos, como eles supõem, não depender de ninguém, não ter de pensar
em nada fora do alcance da vista, não ter de se preocupar com a gratidão
contínua, com a oração contínua, com a obrigação contínua de atribuir à vontade
de outrem o que fazem. Mas à medida que o tempo se escoa apercebem-se, como
todos os homens, de que a independência não foi feita para o homem, que ela é
um estado antinatural, que pode satisfazer por um momento, mas que não nos leva
em segurança até ao fim ... »
É de um
homem que se chamava Maine de Biran (Grançois-Pierre ). Era um filósofo: «Envelhecemos,
temos o sentimento radical da fraqueza, da atonia, do mal-estar devido ao peso
dos anos, e dizemo-nos doentes, embalamo-nos na ideia de que este estado penoso
é devido a uma causa particular, de que esperamos curar-nos como nos curamos de
uma doença. Vãs cogitações! A moléstia é a velhice, e ela é miserável.
Precisamos de nos resignar... Diz-se que se os homens se tornam religiosos ou
devotos com o avançar dos anos é porque têm medo da morte e do que a deve
seguir na outra vida. Mas tenho, quanto a mim, a consciência de que, sem nenhum
terror semelhante, sem nenhum efeito de imaginação, o sentimento religioso se
pode desenvolver à medida que avançamos em idade, porque, tendo-se acalmado as
paixões, a imaginação e a sensibilidade menos excitadas ou excitáveis, a razão
é menos perturbada no seu exercício, menos ofuscada pelas imagens ou afeições
que a absorviam. Então Deus, Supremo Bem, sai como das nuvens, e a nossa alma
sente-O, vê-O, voltando-se para Ele, fonte de toda a luz, porque, tudo
desaparecendo no mundo sensível, a existência fenomenológica deixando de ser
sustentada pelas impressões externas e internas, sentimos a necessidade de nos
apoiarmos em qualquer coisa que permanece e não engane, numa realidade, numa
verdade absoluta, eterna. Porque, enfim, este sentimento religioso, tão puro,
tão doce de sentir, pode compensar todas as outras perdas...»
"Não se
pode prescindir de Deus, a não ser durante a juventude e a prosperidade.
"Pois bem (no admirável mundo novo), eis que temos juventude e prosperidade
até ao último dia de vida. Que resulta daí? É manifesto que não podemos ser
independentes de Deus. «O sentimento religioso compensará todas as nossas
perdas.» Mas não há, para nós, perdas a ser compensadas; o sentimento religioso
é supérfluo. E, porque iriamos nós atrás de um sucedâneo dos desejos juvenis,
quando os desejos juvenis nunca nos faltaram? De um sucedâneo de distracções,
quando continuamos a gozar todas as velhas tolices até ao fim? Que necessidade
temos nós de repouso, quando o nosso corpo e o nosso espírito continuam a
deleitar-se na actividade? De consolação, quando temos a soma? De qualquer
coisa imutável, quando há a ordem social?
- Então acredita que não há Deus?
- Não.
Acredito que há, muito provavelmente, um.
- Então,
porque ... ? Mustafá Mond interrompeu-o. - Mas ele manifesta-se de maneira
diferente aos diferentes homens. Nos tempos pré-modernos, manifestava-se como o
ser descrito nestes livros.
Agora ... Como se manifesta Ele agora? -
perguntou o Selvagem.
-Pois bem,
manifesta- se como ausência, como se em absoluto não existisse.
- Isso é por
culpa sua.
- Diga que é
culpa da civilização. Deus não é compatível com as máquinas, a medicina
científica e a felicidade universal. É preciso escolher. A nossa civilização
escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade. Por isso se torna necessário
que eu conserve estes livros fechados no cofre-forte. São indecentes. O povo
ficaria escandalizado se... O Selvagem interrompeu-o.
- Mas não é
uma coisa natural sentir que há um Deus?
- Você
poderia perguntar da mesma forma se é natural fechar as calças com um fecho
éclair - disse o Administrador, sarcasticamente. Você faz-me lembrar um outro
desses antigos, um tal Bradley. Ele definia a filosofia como a arte de
encontrar uma má razão para aquilo em que se acredita instintivamente. Como se
se acreditasse, seja no que for, instintivamente! Acredita-se nas coisas porque
se foi condicionado para acreditar nelas. A arte de encontrar más razões para
aquilo em que se crê, em virtude de outras más razões, isso é filosofia. Crê-se
em Deus porque se foi condicionado para crer em Deus.
- No entanto, apesar de tudo - insistiu o
Selvagem -, é natural acreditar-se em Deus quando se está só, sozinho, à noite,
quando se pensa na morte ...
- Mas agora
nunca se está só - volveu Mustafá Mond. - Procedemos de forma que as pessoas
detestem a solidão e dispomos a vida de tal maneira que seja mais ou menos
impossível nunca a conhecer. O Selvagem aquiesceu tristemente com a cabeça. Em
Malpaís ele sofrera porque o tinham excluído das actividades comuns do pueblo;
na Londres civilizada, sofria porque não podia eximir-se a essas actividades
comuns, porque nunca podia estar tranquilo e só. - Lembra-se desta passagem do
Rei Lear? - perguntou por fim o Selvagem:
- "Os
deuses são justos e dos nossos vícios amáveis fazem instrumentos para nos
atormentarem; o lugar sombrio e corrupto em que ele te concebeu custou-lhe os
olhos."
E Edmund
responde - o senhor lembra-se, ele está ferido e agonizante: "Tu disseste
a verdade; é a verdade. A roda completou o seu giro; e aqui estou."
Que diz
agora o senhor? Não lhe parece que há um Deus dirigindo as coisas, punindo,
recompensando?
- Ah! A si,
parece-lhe? interrogou por sua vez o Administrador. - Você pode entregar-se
como uma neutra a todos os vícios amáveis que quiser, sem se arriscar a ter os
olhos vazados pela amante do seu filho: "A roda completou o seu giro; e
aqui estou." Mas onde estaria Edmund nos nossos dias? Sentado numa
poltrona pneumática, rodeando com o braço a cintura de uma mulher, mastigando a
sua goma de mascar de hormona sexual, assistindo a um filme perceptível. Os
deuses são justos. Sem dúvida. Mas o seu código de leis é ditado, em última
instância, pelas pessoas que organizam a sociedade. A Providência recebe a palavra
de ordem dos homens.
- Está certo disso? - perguntou o Selvagem. -
Está bem certo de que Edmund, nessa poltrona pneumática, não seria tão
severamente punido como o Edmund ferido e esvaindo-se em sangue? Os deuses são
justos. Não utilizaram eles esses vícios amáveis para o degradar?
- Degradá-lo de que situação? Como cidadão
feliz, assíduo ao trabalho, consumidor de riquezas, é perfeito. É claro que, se
escolher um modelo de existência diferente do nosso, então talvez possamos
dizer que foi degradado. Mas é preciso que cinjamos a uma série de postulados.
Não se pode jogar golf electromagnético seguindo as regras da bola centrífuga.
- Mas o
valor não reside na vontade particular - retorquiu o Selvagem. - Ele provém da
estima e da dignidade, tão preciosas para aquele que sabe apreciá-las.
- Vamos,
vamos - protestou Mustafá Mond -, isso é ir um pouco longe, não lhe parece?
- Se o
senhor deixasse ir o seu pensamento até Deus, não se deixaria degradar por
vícios amáveis. Teria uma razão para suportar pacientemente as coisas, para
fazer as coisas com coragem! Vi isso entre os índios.
- Acredito -
disse Mustafá Mond. - Mas também não somos índios. Um homem civilizado não tem
nenhuma necessidade de suportar seja o que for seriamente desagradável. E
quanto a fazer as coisas, Ford (um deus) o guarde de ter jamais tal ideia na
cabeça! Toda a ordem social seria desorganizada se os homens começassem a fazer
coisas por iniciativa própria.
É a renúncia, então? Se tivessem um Deus,
teriam uma razão para a renuncia.
- Mas a civilização industrial só é possível
quando não há renúncias. O gozo até aos limites extremos impostos pela higiene
e pelas leis económicas. Sem isso, as rodas deixariam de girar.
- Teriam um
motivo de castidade! - disse o Selvagem, corando ligeiramente ao pronunciar
estas palavras.
- Mas quem
diz castidade diz paixão; quem diz castidade, diz neurastenia. E a paixão e a
neurastenia são a instabilidade. E a instabilidade é o fim da civilização. Não
se pode ter uma civilização durável sem uma boa quantidade de vícios amáveis.
- Mas Deus é a razão de ser de tudo quanto é
nobre, belo, heróico. Se tivesse um Deus ...
- Meu caro
amigo - disse Mustafá Mond -, a civilização não tem a menor necessidade de
nobreza ou de heroísmo. Essas coisas são sintomas de incapacidade política.
Numa sociedade convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem
oportunidade de ser nobre ou heróico. É necessário que as coisas se tornem
essencialmente instáveis para que semelhante ocasião se possa apresentar. Onde
houver guerras, onde houver juramentos de fidelidade múltiplos e divididos,
onde houver tentações às quais é necessário resistir, objectos de amor pelos
quais é preciso lutar ou que é preciso defender, aí, manifestamente, a nobreza
e o heroísmo têm um sentido. Mas hoje já não há guerra. Toma-se o maior cuidado
para evitar amar exageradamente seja quem for. Não há nada que se assemelhe a
um juramento de fidelidade múltipla, está-se de tal modo condicionado, que
ninguém pode deixar de fazer o que tem a fazer. E se aquilo que há a fazer é,
no conjunto, tão agradável, deixa-se uma tão grande margem a um tão grande
número de impulsos naturais que não há verdadeiramente tentações a que seja
necessário resistir. E se alguma vez, por qualquer infelicidade, acontece, por esta
ou aquela razão, algo de desagradável, pois bem, há sempre o soma para permitir
uma fuga da realidade, há sempre o soma para acalmar a cólera, para fazer a
reconciliação com os inimigos, para dar paciência e para ajudar a suportar os
dissabores. Outrora não se podiam conseguir todas estas coisas senão com grande
esforço e depois de anos de penoso treino moral. Agora tomam-se dois ou três
comprimidos de meio grama, e é tudo. Pode-se trazer connosco, num frasco, pelo
menos metade da própria moralidade. O cristianismo sem lágrimas, eis o que é o
soma.
- Mas as
lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Othello? "Se depois
de qualquer tempestade nascem tais calmarias, então que soprem os ventos até
acordarem a morte!" Há uma história que nos contava um velho índio a
propósito da filha de Matsaki. Os jovens que desejavam desposá-la deviam passar
uma manhã a mondar com uma enxada. Isto parecia fácil; mas havia moscas e
mosquitos encantados. Na maioria, os jovens eram absolutamente incapazes de
suportar as picadelas. Mas aquele que fosse capaz obtinha a rapariga.
- Encantador! Mas nos países civilizados
-,disse o Administrador - podemos ter as raparigas sem mondar para elas com uma
enxada, e não há moscas nem mosquitos que nos piquem. Há séculos que nos
livrámos completamente deles.
O Selvagem
fez com a cabeça um sinal de aquiescência e franziu os sobrolhos. Livraram-se
deles. Sim, é bem a vossa maneira de agir. Livrarem-se de tudo o que é
desagradável, em vez de procurarem acomodar-se. Saber que é mais nobre para a
alma sofrer os golpes e as flechas da fortuna adversa ou pegar em armas contra
um oceano de desgraças e, fazendo-lhe frente, destruí-las ... Mas não fazem uma
coisa nem outra. Vocês não sofrem nem enfrentam. Suprimem apenas os golpes e as
flechas. É demasiado fácil. - O que lhes falta - continuou o Selvagem - é, pelo
contrário, qualquer coisa que comporte lágrimas, que sirva como compensação.
Nada se compra bastante caro, aqui. Expor o que é mortal e incerto a tudo
quanto podem arrostar a fortuna, a morte e o perigo, até mesmo por uma
bagatela. Não é isto alguma coisa? - perguntou, levantando os olhos para
Mustafá Mond. - Mesmo abstraindo-nos de Deus. E, no entanto, Deus constituiria,
bem entendido, uma razão. Não é alguma coisa viver perigosamente?
- Acredito
bem que é alguma coisa! - respondeu o Administrador. - Os homens e as mulheres
precisam de que se lhes estimulem de vez em quando as cápsulas supra-renais.
Como? -
perguntou o Selvagem, que não compreendera.
-É uma das
condições da saúde perfeita. Foi por isso que tornámos obrigatórios os
tratamentos de S. P. V. - S. P. V. ? Sucedâneo de paixão violenta.
Regularmente, uma vez por mês, irrigamos todo o organismo com uma torrente de
adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os
efeitos tónicos provocados pelo assassínio de Desdémona e pelo facto de ser
assassinada por Othello, sem nenhum dos seus inconvenientes.
-Mas os
inconvenientes agradam-me.
-Mas não a
nós - volveu o Administrador. - Nós preferimos fazer as coisas com todo o
conforto.
- Mas eu não
quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a
liberdade, quero a bondade, quero o pecado.
- Em suma - disse Mustafá Mond -, você reclama
o direito de ser infeliz.
- Pois bem,
seja assim! - respondeu o Selvagem em tom de desafio. - Reclamo o direito de
ser infeliz. - Sem falar no direito de envelhecer, de ficar feio e impotente,
no direito de ter a sífilis e o cancro, no direito de não ter de comer, no
direito de ter piolhos, no direito de viver no temor constante do que poderá
acontecer amanhã, no direito de apanhar a febre tifóide, no direito de ser
torturado por indizíveis dores de todas as espécies. Reclamo-os a todos -
disse, por fim, o Selvagem.
- Ora vejam!
Você tem realmente um aspecto de doente! Comeu alguma coisa que lhe fez mal? O
Selvagem fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Comi a
civilização. E envenenou-me.
Estava a
cavar no seu jardim. Cavava também no espírito, trazendo laboriosamente à
superfície a substância dos seus pensamentos. «A morte.» E enterrava a pá uma
vez, e depois outra, e outra ainda. "E todos os nossos dias passados
iluminaram aos tolos o caminho poeirento da morte." Ribombava através
destas palavras um trovão confirmador. Levantou outra pá de terra. Porque tinha
morrido Linda? Porque tinham permitido que se tornasse gradualmente menos que
humana, e por fim...» Estremeceu. "Um cadáver putrefacto, bom para
beijar?"
Apoiou o pé na pá e enterrou-a furiosamente no
chão duro. "Como as moscas para as crianças más, eis o que somos para os
deuses; matam-nos para se divertirem. De novo o trovão; palavras que se
proclamavam verdadeiras, mais verdadeiras, de qualquer maneira, que a própria
verdade. E todavia, este mesmo Gloucester tinha-os designado sempre como deuses
sempre benignos. " Contudo, o melhor do repouso é o sono, e tu próprio o
provocas; no entanto, temes a morte, que não é mais que o sono." Nada mais
que o sono. Dormir. Sonhar, talvez..." A pá bateu contra uma pedra; baixou-se
para a apanhar ... "Porque neste sono da morte, quantos sonhos?" Um
zumbido acima da sua cabeça tinha-se transformado num rugido. E subitamente
ficou na sombra, qualquer coisa se interpôs entre ele e o Sol. Levantou os
olhos e estremeceu. Abandonou o seu trabalho com a pá, deixando os seus
pensamentos, e ergueu os olhos num assombro deslumbrado, o espírito errando
ainda nestoutro mundo mais verdadeiro que a verdade, ainda concentrado nas
imensidões da morte e dos deuses. (…)
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