(…) o seu saber e as suas virtudes estão acima dos meus
elogios, e sua reputação é tão brilhante que celebrar o seu mérito seria, como
diz o provérbio, abrir uma porta aberta.
Sua alma está aberta a todos; mas nutre por seus amigos
tanta benevolência, amor, fidelidade e devotamento que poder-se-ia
qualificá-lo, muito justamente, como o perfeito modelo da amizade. Modesto e
sem fingimentos, simples e prudente, sabe falar com espírito, e seu gracejo não
é nunca uma injúria.
Os homens em geral ,só abrem mão de seus bens já velhos e na
agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não
mais podem reter.
Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido que
muitos dos que vestem a púrpura possam dizer o mesmo. Muita gente ambiciona os
favores do trono; e sendo assim, os príncipes não sentirão falta, se eu e dois
ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.
É evidente, Rafael,
que não procurais riquezas nem poder, e não tenho menos admiração e estima por
um homem como vós, do que por aquele que está à frente de um império.
Parece-me, entretanto, que seria digno de um espírito tão generoso, tão
filósofo, como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direção dos negócios
públicos, embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a
maneira de o fazer com mais proveito, é ainda a de entrar para o conselho de
algum grande príncipe; estou certo de que a vossa boca não se abrirá jamais,
senão para a virtude e para a verdade.
Vós o sabeis, o príncipe é a fonte de onde o bem e o mal
jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possuís tanta ciência e tantos
talentos que, embora não tivésseis o hábito dos negócios, daríeis, mesmo assim,
um excelente ministro para o rei mais ignorante.
- Incidis num duplo erro, caro Morus, replicou Rafael; e não
só quanto ao fato em si como quanto à pessoa; estou longe de ter a capacidade
que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifício de meu
sossego seria inútil à causa pública. Em primeiro lugar, os príncipes cuidam
somente da guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho nenhum desejo de
conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar
novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o profano, o
crime e o sangue, não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito pouco de bem
administrar os Estados submetidos à sua dominação.
Quanto aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a sua
composição: Uns calam-se por inépcia, e teriam até mesmo grande necessidade de
ser aconselhados. Outros, são mais dotados, e sabem que o são; mas partilham sempre
do parecer dos anteriores, que está em melhores graças, e aplaudem, com
entusiasmo, as pobres imbecilidades que estes têm por bem propinar; vis
parasitas só têm uma finalidade: ganhar, por uma baixa e criminosa lisonja, a
proteção do favorito do Rei. Há ainda, os escravos de seu amor-próprio que
escutam apenas a própria opinião, o que não é de admirar, pois a natureza leva a cada homem a afagar com amor aquilo
mesmo que cria. É assim que o corvo sorri à sua ninhada, e o macaco aos seus
filhotes. Que sucede então no seio desses conselhos onde reinam a inveja, a
vaidade e o interesse? Se alguém entende apoiar uma opinião razoável na
história dos tempos passados, ou nos costumes dos outros países, logo outros
conselheiros se mostram surpresos e atónitos; e com o amor próprio alarmado
como se fossem perder a reputação de sábios e passar por imbecis. Eles quebram
a cabeça até encontrar um argumento contraditório, e, se a memória e a lógica
lhes minguam, entrincheiram-se neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram e
assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois
assentam-se, pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar um oráculo.
Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a sociedade vai perecer se surgir um homem mais
sábio que os seus antepassados. Enquanto isso, permaneçamos indiferentes,
deixando subsistir as boas instituições que eles nos legaram; e quando surge um
melhoramento novo agarramo-nos à antiguidade para não acompanhar o progresso.
Vi, em quase toda a parte, desses julgadores rabugentos, covardes, insensatos
ou presunçosos.
A morte neste caso é
uma pena injusta e inútil; é bastante cruel para punir o roubo, mas bastante
fraca para impedi-lo. O simples roubo não merece a forca, e o mais horrível
suplício não impedirá de roubar o que não dispõe de outro meio para não morrer
de fome. Nisto, a justiça de Inglaterra e de muitos outros países se assemelha
aos maus professores que espancam os alunos em lugar de instruí-los. Fazeis
sofrer aos ladrões pavorosos tormentos; não seria melhor garantir a existência
a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade
imperiosa de roubar primeiro, e de morrer, depois?
- A sociedade previu o
fenómeno, replicou o meu legista; a indústria, a agricultura oferecem ao povo
inúmeros meios de existência; existem, porém, seres que preferem o crime ao
trabalho.
- Era aí mesmo onde
eu vos esperava. Não falarei dos que voltam das guerras civis ou estrangeiras
com o corpo mutilado. Quantos soldados, entretanto, na batalha de Cornualha, ou
na campanha de França, perderam um ou vários membros a serviço do rei e da
pátria! Esses infelizes tornaram-se fracos demais para exercer o seu antigo
ofício e velhos demais para aprender um novo. Mas deixemos isso, as guerras só
se reacendem a longos intervalos. Olhemos o que se passa cada dia ao redor de
nós. A principal causa da miséria pública reside no número excessivo de nobres,
zangões ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de outrem e que, para
aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras, escorchando os
rendeiros até à carne viva. Não conhecem outra forma de economia. Mas,
tratando-se de comprar um prazer, são pródigos, até à loucura. E não menos funesto
é o fato de arrastarem consigo uma turba de lacaios e mandriões sem estado e
incapazes de ganhar a vida. Caiam doentes esses lacaios, ou venha o seu patrão
a morrer, e são jogados no olho da rua; porque é preferível “nutri-los” para
não fazer nada, do que alimentá-los enfermos; muitas vezes o herdeiro do senhor
não está em condições de manter toda a criadagem do pai.
Ei-los então expostos a morrer de fome se acaso não têm
coragem de roubar. Terão eles, na realidade, outras possibilidades? Gastam a saúde
e a vida sempre na espera da melhoria; e quando se tornam descorados pelas
moléstias e cobertos de farrapos, os nobres têm-lhes horror, desprezando os
seus serviços. Nem os camponeses os querem empregar. Os camponeses sabem que um
homem que vive molemente na ociosidade e nos prazeres, habituado a trazer a
espada e o escudo, a olhar superiormente os vizinhos e a desprezar todo mundo, um
tal homem não é apto a manejar a pá e a enxada, a trabalhar, fielmente, por um
salário insignificante e uma parca alimentação, ao serviço de um pobre
lavrador.
- É precisamente essa
espécie de gente que o Estado deve manter e multiplicar com mais cuidado. Há
neles mais ânimo e nobreza da alma que no artesão e no lavrador. São maiores e
mais robustos e constituem, portanto, a força do exército na hora de combater.
- Seria o mesmo que dizer, que se deve, para a glória e o
êxito dos vossos exércitos, multiplicar os ladrões. Porque esses mandriões são
uma sementeira inesgotável para o exército. Com efeito, os ladrões não são os
piores soldados, como os soldados não são os mais tímidos ladrões; há muita
analogia entre esses dois ofícios. Infelizmente, esta praga social não é
particular à Inglaterra; corrói quase todas as nações.
Voltemos aos nossos soldados lacaios (escudeiros soldados).
Têm eles, dizeis, mais coragem e grandeza da alma do que os artesãos e os
trabalhadores. Eu, de mim, não creio que um lacaio faça muito medo nem a uns
nem a outros, a não ser àqueles em que a fraqueza do corpo paralisa o vigor da
alma e cuja energia foi aniquilada pela miséria. Os lacaios, dizeis ainda, são
maiores e mais robustos. Mas não é uma lástima ver homens fortes e belos
(porque os nobres escolhem as vítimas de sua corrupção) consumirem-se na
inação, amolecerem-se em ocupações de mulheres, quando fácil seria torná-los
laboriosos e úteis, dando-lhes um ofício honrado e habituando-os a viver do
trabalho de suas mãos.
De qualquer maneira que se encare a questão, esta massa
imensa de gente ociosa parece-me inútil ao país, mesmo na hipótese de uma
guerra, que poderíeis, aliás, evitar todas as vezes que o quisésseis. Ela é,
além do mais, o flagelo da paz; e a paz merece que se trate dela, tanto quanto
da guerra.
Os inumeráveis rebanhos de carneiros (…) Eles subtraem
vastos tratos de terra à agricultura e os convertem em pastagens; abatem as
casas, as aldeias, deixando apenas o templo para servir de estábulo para os
carneiros. Transformam em desertos os lugares mais povoados e mais cultivados.
Temem, sem dúvida, que não haja bastantes parques e bosques e que o solo venha
a faltar para os animais selvagens.
Colocai um freio ao avarento egoísmo dos ricos; tirai-lhes o
direito do açambarcamento e monopólio. Que não haja mais ociosos entre vós. (…)Se
não remediardes os males que vos assinalo, não vos vanglorieis de vossa
justiça; é ela uma mentira feroz e estúpida.
Abandonais milhões de crianças aos estragos de uma educação
viciosa e imoral. A corrupção faz murchar, à vossa vista, essas jovens plantas
que poderiam florescer para a virtude, e, vós as matais, quando, tornadas
homens, cometem os crimes que germinavam desde o berço em suas almas. E, no
entanto, o que é que fabricais? Ladrões,
para terdes o prazer de os enforcar depois.
Minha convicção íntima, é que é injusto matar-se um homem
por ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana não pode ser
organizada de modo a garantir para cada um uma igual porção de bens.
Deus proibiu o assassínio e nós, nós matamos tão facilmente
por causa do furto de algumas moedas!
A própria lei de Moisés, lei de terror e vingança, feita
para escravos e homens embrutecidos, não punia de morte o simples roubo.
Evitemos pensar que, sob a lei cristã, lei de perdão e caridade, em que Deus
ordena como pai, nós temos o direito de ser mais desumanos, e de derramar, sob
qualquer pretexto, o sangue de nosso irmão.
O celerado vê que não há menos a temer furtando do que
assassinando; então, ele mata aquele a quem apenas despojara; e mata-o para a
sua própria segurança. Assim agindo, ele se descarta do seu principal
denunciador, e tem maior probabilidade de esconder o crime. Eis o belo efeito
desta justiça implacável: aterrorizando o ladrão com a expectativa da forca,
fez dele um assassino!
Platão disse: A
humanidade será feliz um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis
forem filósofos.
Os Filósofos não são bastante egoístas para esconder a
verdade; muitos a têm revelado em seus escritos; e se os senhores do mundo
estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e compreender.
Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e dos falsos
princípios, em que se formaram e dos quais foram infectados desde a infância.
Platão não ignorava isso; sabia, como nós, que os reis nunca seguiam os
conselhos dos filósofos, a menos que eles próprios o fossem.
Suponhamos pois que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe
os decretos mais salutares; esforço-me por arrancar de seu coração e de seu
império todos os germes do mal. Acreditais que não me expulsará da corte ou que
não me exporá ao riso dos cortesãos?
(…) se, dirigindo-me ao próprio monarca, o fizesse ver que
essa paixão de guerrear, que transtorna as nações, depois de ter esgotado as
finanças e arruinado o povo, poderia ocasionar à França as consequências mais
fatais; se lhe dissesse: Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos
concede, cultivai o reino de vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a
riqueza e a força; amai vossos súditos, e que o amor deles faça a vossa
alegria; vivei como pai no meio deles e não comandeis nunca como déspota;
deixai em paz os outros reinos; aquele que vos coube por herança é
suficientemente grande para vós. Dizei-me, caro Morus, com que espécie de bom
ou mau humor seria acolhida semelhante arenga?
- Com péssimo mau
humor, respondi.
- E não é tudo, continuou Rafael; passamos em revista a
política exterior dos ministros…; a glória era então o de que necessitava o seu
senhor ; agora é o dinheiro. Vejamos um instante os seus novos princípios de
governo e justiça. Este, propõe elevar o valor da moeda quando se trate de
reembolsar um empréstimo, e de fazê-lo descer muito abaixo do par quando se
trate de tornar a encher o tesouro. Com esse duplo expediente, o príncipe
poderá cobrir suas enormes dívidas, e, sem trabalho, fazer uma grande colheita
em recursos.
Aquele, aconselha simular uma guerra próxima. Este pretexto
legitimará um novo imposto. Depois da arrecadação do tributo extraordinário, o
príncipe fará subitamente a paz; ordenará a celebração desse feliz
acontecimento por meio de ações de graça nos templos e de todas as pompas das
cerimónias religiosas. A. nação ficará deslumbrada, e o reconhecimento público
elevará até aos céus as virtudes de um rei tão humanamente avaro do sangue de
seus súbditos.
Um outro vem, e desenterra velhas leis carcomidas pelas
traças e caídas em desuso pelo tempo. Como todos ignoram a sua existência,
todos as transgridem. Restaurando, assim, as multas pecuniárias contidas nessas
leis, criar-se-ia uma fonte de renda lucrativa e até honrada, pois que se
agiria em nome da justiça.
Um terceiro pensa que não seria de menos proveito lançar,
sob pena de pesadas multas, uma, multidão de novas proibições, a maioria delas
em benefício do povo. O rei, mediante soma considerável, isentaria aqueles
cujos interesses privados fossem comprometidos por estas proibições. Dessa
maneira o rei ver-se-ia cumulado das bênçãos do povo e faria dupla receita,
recebendo, ao mesmo tempo, dinheiro dos transgressores e dos privilegiados. O
melhor do negócio é que quanto mais exorbitante fosse o preço das isenções
tanto mais Sua Majestade ganharia em estima e consideração. Vejam, diriam, como
este bom príncipe violenta seu coração ao vender tão caro o direito de
prejudicar o povo.
Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter à disposição
juízes sempre dispostos a sustentar, em todas as ocasiões, os direitos da
coroa. Vossa Majestade, acrescenta ele, deveria chamá-los à corte, e
persuadi-los a discutir, perante a vossa augusta pessoa, os próprios negócios
reais. Por pior que seja uma causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa,
seja pela mania da contradição, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja
para agradar ao soberano. Então, uma discussão se trava; a multiplicidade e o
conflito de opiniões embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade é
posta em dúvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a
dificuldade, interpretando o direito em proveito próprio. Os dissidentes se
submetem à opinião real por timidez ou por temor, e o julgamento é dado,
segundo as formalidades, com franqueza e sem escrúpulo. Faltarão acaso
“considerandos” ao juiz que se pronuncia a favor do príncipe? Não terá ele o
texto da lei, a liberdade de interpretação, e, acima das leis, para um juiz
religioso e fiel, a prerrogativa real?
Ouvi os axiomas de moral política proclamados unanimemente
pelos membros do nobre conselho:
Para o rei que mantém um exército nunca há
dinheiro bastante.
O rei nunca pode proceder mal mesmo que o
quisesse.
O rei é o proprietário
universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os seus súditos; nada possuem
senão como usufrutuários pelas boas graças do rei.
A pobreza do povo é o baluarte da monarquia.
A riqueza e a
liberdade conduzem à insubordinação e ao desprezo da autoridade; o homem livre e rico suporta com impaciência um
governo injusto e despótico.
A indigência e a
miséria degradam a coragem, embrutecem as almas, habituam-nas ao sofrimento e à
escravidão, comprimindo-as a ponto de lhes tirar a energia necessária para
sacudir o jugo.
A esses poderosos
senhores respondo: Vossos conselhos são infames, vergonhosos para o rei,
funestos para o povo. A honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na
riqueza de seus súbditos mais ainda do que na sua própria. Os homens fizeram os
reis para os homens e não para os reis; colocaram chefes à sua frente para que
pudessem viver comodamente ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever
mais sagrado do príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela
sua própria; como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo
às pastagens mais férteis.
Sustentar que a miséria pública é a melhor salvaguarda da
monarquia, é sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vêm mais querelas
e rixas do que entre os mendigos?
Qual é o homem que
mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência actual é miserável?
Qual é o homem que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não será
aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse
o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo não pudesse se manter senão
pelas vexações, pela pilhagem, pelo confisco e pela miséria universal, deveria
descer do trono e depor o poder supremo. Empregando estes meios tirânicos,
talvez pudesse conservar o nome de rei, mas perderá o prestígio e a majestade.
A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens livres
e felizes.(…)nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e
gemidos de um povo, não é conservar um reino, é manter uma prisão.
O médico que apenas sabe curar as doenças de seus clientes
comunicando-lhes outras mais graves, passa por ignaro e imbecil; confessai,
portanto, vós que sabeis governar tirando aos cidadãos a subsistência e as
comodidades da vida que sois indignos e incapazes de governar homens livres! Ou
então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho e vossa preguiça: é isso o que
excita o ódio e o desprezo pelo soberano. Vivei em conformidade com a justiça;
medi vossas despesas na proporção de vossos proventos; detei as torrentes do
vício; criai instituições de benemerência, que previnam o mal e o estiolem no
germe, ao em vez de inventar suplícios contra os infelizes que uma legislação
absurda e bárbara impele ao crime e à morte.
Não ressusciteis leis carunchosas caídas no olvido e no
esquecimento, lançando sobre os vossos súbditos toda a sorte de obstáculos e de
erro. Não eleveis o preço de um delito a uma taxa que o juiz condenaria, como
injusta e vergonhosa, entre simples particulares.
Os ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de
erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer
penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça?
Um bom actor põe todo seu talento no papel que vai
representar, qualquer que ele seja; e não perturba o conjunto, porque lhe
ocorre à fantasia declamar uma tirada magnífica e pomposa.
Se não se pode desarraigar de uma só vez as máximas
perversas, nem abolir os costumes imorais, não é isto razão para se abandonar a
causa pública. O piloto não abandona o navio diante da tempestade porque não
pode domar o vento.
Falais a homens imbuídos de princípios contrários aos
vossos; que caso poderão fazer de vossas palavras, se lhes atirais à face a
contradita e o desmentido? Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais
seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito;
e, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao
menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito,
quando os próprios homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos
passarão.
Sei que minha linguagem parecerá dura e severa aos
conselheiros do rei; apesar disso, não vejo por que sua novidade seja de tal
modo estranha que toque o absurdo.
Há covardia ou má fé em calar as verdades que condenam a
perversidade humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas como novidades
absurdas ou quimeras impraticáveis. De outra forma, seria necessário deitar um
véu sobre o Evangelho e dissimular aos cristãos a doutrina de Jesus. Mas Jesus
proibia a seus apóstolos o silêncio e o mistério; repetia-lhes sempre: O que
vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pôr toda parte, em voz alta e às
claras. Ora, a moral de Cristo está muito mais em contradição aos costumes
deste mundo, do que os nossos discursos.
Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas
altas regiões. O ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que
vos cercam, longe de corrigirem-se com os vossos ensinamentos, depravam-vos com
seu contacto e pela influência de sua perversão; e se conservais vossa alma
pura e incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não
há, pois, esperança de transformar o mal em bem…
Em toda a parte onde a propriedade for um direito individual,
onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar
nem a justiça nem a prosperidade social, a menos que chameis justa a sociedade na qual o que há de melhor é
pertença dos piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a
fortuna pública é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres,
enquanto a massa é devorada pela miséria.
Na Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração
distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O
mérito é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão
igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da
vida.
A igualdade é impossível num Estado em que a posse é
particular e absoluta; porque cada um se apoia em diversos títulos e direitos
para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que
seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam
aos outros apenas indigência e miséria.
Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de
distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do género
humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o
fundamento do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá
por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.
Sei que existem remédios que podem aliviar o mal; mas estes
remédios são impotentes para curá-lo. Por exemplo:
Decretar um máximo de posse individual em terras e dinheiro
Precaver-se por meio de severas leis contra, o despotismo e
a anarquia.
Denunciar e castigar a ambição e a intriga. Não traficar as
magistraturas.
Suprimir o fausto e a representação nos altos cargos, a fim
de que o funcionário, para sustentar sua posição, não se entregue à fraude e à
rapina; ou, a fim de que não seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que
deveriam caber aos mais capazes.
Estes meios, repito-o, são excelentes paliativos que podem
adormecer a dor e aliviar as chagas do corpo social; mas não espereis com isto
devolver-lhe a força e a saúde, enquanto cada um possuir solitariamente e
absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas inflamareis todas as
outras; curareis um doente, e matareis um homem são; porque o que acrescentais
ao haver de um indivíduo tirais ao de seu vizinho.
Disse eu, então, a
Rafael: Longe de compartilhar vossas convicções, penso, ao contrário, que o
país em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miserável de
todos os países. Com efeito, como produzir para as necessidades de consumo?
Toda a gente fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existência
sobre o trabalho dos outros. E, mesmo que a miséria acicatasse os preguiçosos,
como a lei não mantém de maneira
inviolável, e contra todos, a propriedade
de cada um, a rebelião rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaçadora, e a matança
ensanguentaria a vossa república.
Que barreira oporíeis
à anarquia? Vossos magistrados têm apenas uma autoridade nominal; estão
despidos, despojados de tudo que impõe o temor e o respeito. Não chego nem
mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse povo de niveladores que
repele toda espécie de superioridade.
Eis o que dá aos utopianos a superioridade do bem-estar
material e social, embora os igualemos em inteligência e riqueza, é a actividade
do espírito dirigida incessantemente para a pesquisa, o aperfeiçoamento e a
aplicação, das coisas úteis.
Entre os regulamentos do senado, o seguinte merece ser
assinalado. Quando uma proposta é feita, é proibido discuti-la no mesmo dia; a
discussão é transferida para a sessão seguinte. Desta maneira ninguém fica
exposto a desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe passem pela
cabeça, e a defender, em seguida, a sua opinião antes do que o bem geral; pois
não é frequente acontecer que se recue diante da vergonha de uma retratação e
do reconhecimento de um erro irreflectido? Então, sacrifica-se o bem público
para salvar a reputação. Este perigo funesto da precipitação foi previsto, e
aos senadores é dado o tempo suficiente para reflectir.
Não se deve crer que os utopianos se atrelem ao trabalho
como bestas de carga desde a madrugada até à noite. Esta vida embrutecedora
para o espírito e para o corpo, seria pior que a tortura e a escravidão. E no
entretanto, tal é, em outra qualquer parte, a triste sorte do operário!
Porque, neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e
a medida universal, grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem
unicamente a serviço do luxo e do desregramento.
O fim das instituições sociais na Utopia é de prover antes
de tudo as necessidades do consumo público e individual; e deixar a cada um o
maior tempo possível para libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente
o espírito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências
e das letras. É neste desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira
felicidade.
Segundo os seus princípios, a guerra mais justa é aquela que
se faz a um povo que possui imensos territórios incultos e que os conserva
desertos e estéreis, notadamente quando este mesmo povo interdiz a sua posse e
o seu uso aos que vêm para cultivá-los e deles se nutrir, conforme a lei
imprescritível da natureza.
O que torna, em geral, os animais cúpidos e rapaces, é o
temor das privações no futuro. No homem em particular, existe uma outra causa
de avareza - o orgulho, que o excita a ultrapassar em opulência os seus iguais
e a deslumbrá-los pelo aparato de um luxo supérfluo.
(…)Estas riquezas são destinadas a engajar e a pagar
copiosamente as tropas estrangeiras; porque o governo da Utopia prefere expor à
morte os estrangeiros que os seus cidadãos. Ele sabe também que o inimigo mais
encarniçado se vende algumas vezes, se o preço da venda está à altura de sua
cobiça; sabe que, em geral, o dinheiro é o nervo da guerra, quer para comprar
traições, quer para combater abertamente.
Quanto mais os costumes estrangeiros são opostos aos nossos,
menos estamos dispostos a acreditar neles.
O ouro e a prata não têm, nesse país, mais valor do que lhes
deu a natureza. Esses dois metais são ali considerados bem abaixo do ferro, o
qual é tão necessário ao homem quanto a água e o fogo. Com efeito, o ouro e a
prata não têm nenhuma virtude, nenhum uso, nenhuma propriedade cuja privação
acarrete um inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura humana que pôs
tanto valor em sua raridade. A natureza, esta excelente mãe, escondeu-os em
grandes profundidades, como produtos inúteis e vãos, enquanto que expõe a
descoberto a água, o ar, a terra, e tudo o que há de bom e realmente útil.
(só já, no séc XX ,se descobriu
algumas outras utilidades importantes para o Au e Ag)
Os utopianos não escondem seus tesouros nas torres, ou em
outros lugares fortificados e inacessíveis. Com o ouro e a prata não se
fabricam nem vasos, nem obras artisticamente trabalhadas. Porque, se houvesse
necessidade de um dia fundi-los, para pagar o exército em caso de guerra, os
que tivessem posto sua afeição e suas delícias nesses objetos de arte e de
luxo, sentiriam, ao perdê-los, uma dor amarga. A fim de prevenir esses
inconvenientes, os utopianos imaginaram um uso perfeitamente em harmonia com o
restante de suas instituições, mas em completo desacordo com as do nosso
continente, onde o ouro é adorado como um Deus, procurado como o bem supremo; o
ouro e a prata são destinados aos usos mais vis, tanto nas residências comuns,
como nas casas particulares; são feitos com eles até os vasos nocturnos
Forjam-se cadeias e correntes para os escravos, e marcas de opróbrio para os
condenados que cometeram crimes infames. Estes últimos levam anéis de ouro nos
dedos e nas orelhas, um colar de ouro no pescoço, um freio de ouro na cabeça.
Assim, tudo concorre para manter o ouro e a prata na ignomínia. Entre outros
povos a perda da fortuna é um sofrimento tão cruel como um dilaceramento de
entranhas; mas quando se arrancasse à nação utopiana todas suas imensas
riquezas ninguém pareceria ter perdido um cêntimo.
Os utopianos recolhem pérolas na sua costa, diamantes e
pedras preciosas em certos rochedos. Sem ir à cata desses objectos raros, eles
gostam de polir os que a sorte os presenteia, a fim de adornar os seus
filhinhos, que ficam todo orgulhosos de trazer esses ornamentos. Mas, à medida
que crescem, percebem logo que estas frivolidades não convêm senão às crianças
pequenas. Então, não esperam pela observação dos pais; espontaneamente e por
amor próprio livram-se desses enfeites. É como entre nós, quando as crianças
que vão crescendo, abandonam as bolas e as bonecas.
Os utopianos admiram-se de que seres razoáveis possam se
deleitar com a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma pérola, quando têm
os astros e o sol com que encher os olhos. Encaram como louco aquele que se
acredita mais nobre e mais estimável só porque está coberto de uma lã mais
fina, lã tirada das costas de um carneiro, e que foi usada primeiro por este
animal. Admiram-se que o ouro, inútil por sua própria natureza, tenha adquirido
um valor fictício tão considerável que seja muito mais estimado do que o homem;
ainda que somente o homem lhe tenha dado este valor e dele se utilize, conforme
seus caprichos.
Espantam-se também que um rico, de inteligência de chumbo,
estúpido como uma acha de lenha, tão tolo quanto imoral, mantenha em sua
dependência uma multidão de homens sábios e virtuosos, apenas porque a sorte
lhe deixou algumas pilhas de escudos.
Há uma outra loucura que os utopianos detestam ainda mais, e
que dificilmente concebem, é a loucura dos que rendem homenagens quase divinas
a um homem porque é rico, sem serem, entretanto, nem seus devedores nem seus súbditos.
Em filosofia moral, agitam as mesmas questões que os nossos
doutores. Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos objectos exteriores, o
que pode contribuir para sua felicidade; perguntam, procuram saber se o nome de
Bem convém indiferentemente a todos os elementos da felicidade material e
intelectual, ou só ao desenvolvimento das faculdades do espírito. Dissertam
sobre a virtude e o prazer; mas a primeira e principal de suas controvérsias
tem por fito determinar a condição única, ou as diversas condições da
felicidade do homem.
Eis aqui seu catecismo religioso: A alma é imortal: Deus que
é bom, criou-a para ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a
virtude, o crime, castigo. Embora esses dogmas pertençam à religião, os
utopianos pensam que a razão pode induzir a crer neles e aceitá-los.
Não hesitam em declarar que, na ausência desses princípios,
fora preciso ser estúpido para não procurar o prazer por todos os meios
possíveis, criminosos ou legítimos. A virtude consistiria, então, em escolher,
entre duas volúpias, a mais deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres
a que se seguissem dores mais vivas do que o gozo que tivessem proporcionado.
Mas praticar virtudes severas e difíceis, renunciar aos
prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte
em recompensa às mortificações da terra, é, aos olhos dos nossos insulares, o
cúmulo da loucura.
A felicidade, dizem, não está em toda espécie de
voluptuosidade; está unicamente nos prazeres bons e honestos. É para esses
prazeres que tudo, até a própria virtude, arrasta irresistivelmente a nossa
natureza; são eles que constituem a felicidade.
Os utopianos definem a virtude: viver segundo a natureza.
Deus, ao criar o homem, não lhe deu outro destino. O homem que segue o impulso
da natureza, é aquele que obedece à voz da razão, em seus ódios e seus
apetites.
Ora, a razão inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais
o amor e a adoração da majestade divina, à qual nós devemos o ser e o bem estar.
Em segundo lugar, ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem
lamentações, e a proporcionar aos nossos semelhantes, que são nossos irmãos, os
mesmos benefícios.
De facto, o mais enfadonho e o mais fanático zelador da
virtude, o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor imitar seus trabalhos,
suas vigílias e mortificações, ordena-vos, também, que consoleis, com todas as
vossas forças, a miséria e as aflições dos outros.
Esse moralista severo enche de elogios, em nome da
humanidade, o homem que consola e que salva o homem; e crê, assim, que a
virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os
sofrimentos do próximo, arrancá-lo ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as
alegrias da vida, ou, em outros termos, fazê-lo ter parte também na volúpia.
E por que a natureza
não induziria cada um de nós a se fazer, a si mesmo, o mesmo bem que aos
outros? Pois, das duas uma: ou uma existência agradável, isto é, a volúpia, é
um bem ou um mal. Se é um mal, não somente não se deve ajudar seus semelhantes
a fruí-la, mas ainda deve-se arrancá-la como coisa perigosa e condenável. Se é
um bem, pode-se e deve-se procurá-la para si próprio como para os outros. Por
que iríamos ter menos compaixão de nós do que dos outros? A natureza, que
inspira em nós a caridade por nossos irmãos, não ordena que sejamos cruéis com
nós próprios.
Eis o que leva os utopianos a afirmarem que uma vida
honestamente agradável quer dizer que o prazer é o fim de todas as nossas
ações; que tal é a vontade da natureza e que obedecer a esta vontade é ser
virtuoso. A natureza, dizem eles, convida todos os homens a se ajudarem
mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida. Este preceito é
justo e razoável, pois não há indivíduo tão altamente colocado acima do género
humano que somente a Providência deva cuidar dele. A natureza deu a mesma forma
a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor, envolve todos com o mesmo amor; o
que ela reprova, é aumentar o próprio bem-estar agravando a infelicidade alheia.
É por isto que os utopianos pensam que é necessário observar
não só as convenções privadas entre simples cidadãos, mas ainda as leis
públicas, que regulam a distribuição das comodidades da vida, em outros termos,
que distribuem a matéria do prazer, quando estas leis foram justamente
promulgadas por um bom príncipe, ou sancionadas pelo consentimento geral de um
povo, nem oprimido pela tirania, nem vítima do artifício.
A sabedoria reside em
procurar a felicidade sem violar as leis. A religião é trabalhar pelo bem
geral. Calcar aos pés a felicidade de outrem, em busca da sua, é uma ação
injusta.
Ao contrário, privar-se de algum prazer, para comunicá-lo a
outrem, é indício de um coração nobre e humano, e que, aliás, acaba por
encontrar alguma coisa mais do que o prazer que sacrificou. Primeiro que tudo,
esta boa ação é recompensada pela reciprocidade dos serviços; em seguida, o
testemunho da consciência, a lembrança e o reconhecimento dos que foram
obsequiados causam à alma uma delícia maior que não poderia ter dado ao corpo o
objeto de que se foi privado. Finalmente, o homem que tem fé nas verdades
religiosas, deve estar firmemente persuadido de que Deus recompensa a privação
voluntária de um prazer efémero e passageiro, com alegrias inefáveis e eternas.
Assim, em última
análise, os utopianos reduzem todas as ações e mesmo todas as virtudes ao
prazer, como finalidade.
Eles chamam volúpia a todo o estado ou a todo o movimento da
alma e do corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitação natural. Não é
sem razão que eles acrescentam a palavra natural, porque não é apenas a
sensualidade, é também a razão que nos atrai para as coisas naturalmente
deleitáveis; e por isto devemos compreender os bens que se podem procurar sem
injustiça, os gozos que não privem de um prazer mais vivo, e que não arrastem
consigo nenhum mal.
Há coisas fora da natureza, que os homens, por uma convenção
absurda, intitulam prazeres (como se tivessem o poder de transformar a essência
tão facilmente como modificam as palavras). Essas coisas, longe de contribuir
para a felicidade, são outros tantos obstáculos em seu caminho; aos que
seduzem, elas impedem gozarem satisfações puras e verdadeiras; viciam o espírito,
preocupando-o com a ideia de um prazer imaginário. Há, com efeito, uma quantidade
de coisas, às quais a natureza não juntou nenhuma doçura, as quais ela chegou
até a misturar de amargura e que, no entanto, os homens olham como altas
volúpias de algum modo necessárias à vida, apesar de, na sua maioria, serem
essencialmente más e só estimular as paixões perversas.
Os utopianos classificam essa espécie de prazeres bastardos,
a vaidade daqueles, que se crêem melhores porque usam uma roupa mais bonita. A
vaidade desses tolos é duplamente ridícula.
Em primeiro lugar, consideram
suas roupas acima de suas pessoas; pois, quanto ao que é de uso, em que,
vos pergunto, uma lã mais fina prevalece sobre uma lã mais grossa? Entretanto,
os insensatos, como se se distinguissem da multidão pela excelência de sua
natureza, e não pela loucura de seu comportamento, erguem orgulhosamente a
cabeça, imaginando valer um grande preço. Exigem, em virtude da rica elegância
de suas vestes, honras que não ousariam esperar com um traje simples e comum;
mostram-se indignados quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferença.
Em segundo lugar, esses mesmos homens não são menos estúpidos por se alimentarem de honras sem realidade e
sem proveitos. É natural e verdadeiro o prazer que se sente em frente de um
adulador que tira o chapéu e dobra humildemente o joelho? Uma genuflexão cura
alguém da febre ou da gota?
Entre aqueles que ainda seduz uma falsa imagem do prazer,
estão os nobres que se comprazem com orgulho e amor no pensamento de sua
nobreza. E de que se gabam? Do acaso que os fez nascer em uma longa série de
ricos antepassados, e, sobretudo, de ricos proprietários (porque a nobreza de
hoje é a riqueza). Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado de seus
pais, ou tivessem devorado todo seu património, ainda assim não se sentiriam,
por isso, diminuídos na sua nobreza de um só cabelo.
Os utopianos classificam os amadores de pedrarias na
categoria dos maníacos de nobreza. Os homens que têm essa paixão, julgam-se uns
pequenos deuses, quando encontram uma pedra bela e rara, particularmente
apreciada na sua época e no seu país, pois a mesma pedra não conserva sempre e
por toda a parte o mesmo valor. O amador de pedras compra-as nuas e sem ouro;
leva mesmo a precaução ao ponto de exigir do vendedor uma caução e até o
juramento que o diamante, o rubi, o topázio são de bom quilate, de tal modo
teme que um falso brilhante impressione os seus olhos! Que prazer há, pois, em
olhar uma pedra natural de preferência a uma artificial, desde que o olho não
apreende a diferença? Tanto uma como outra não têm realmente mais valor para um
que enxerga do que para um cego.
Que dizer dos avarentos que acumulam dinheiro e mais
dinheiro, não para seu uso, mas para se consumir na contemplação de uma enorme
quantidade de metal? O prazer desses ricos miseráveis não é pura quimera? E será
mais feliz aquele que, por uma extravagância mais estúpida ainda, enterra os
seus escudos? Este último nem ao menos vê o seu tesouro, e o medo de perdê-lo
faz com que o perca de facto. Mas enterrar ouro não é o mesmo que roubar a si
próprio e aos outros? No entanto, o avarento sente-se tranquilo, salta de
alegria quando enterrou bem suas riquezas.
Agora, suponhamos que alguém se apodere desse depósito
confiado à terra, e que o nosso Harpagon sobreviva dez anos à sua ruína, sem o
saber; eu vos pergunto, que lhe importou nesse intervalo, ter conservado ou
perdido o tesouro? Enterrado ou roubado, ele lhe deu exactamente a mesma
serventia.
Não é mais fatigante do que agradável ouvir os cães ladrarem
e ganirem? Em que é mais divertido ver correr um cão atrás de uma lebre do que
vê-lo atrás de outro cachorro? Entretanto, se é a corrida que faz o prazer, a
corrida existe nos dois casos. Mas não é antes a expectativa da morte ou a
espera da carniceria o que apaixonam os homens pela caça? E como não abrir a alma
à piedade, como não ter horror a esta matança, em que o cão forte, cruel e
audaz, dilacera a lebre fraca, tímida e fugitiva?
A caça é a parte mal vil da arte de matar os animais; as
outras partes desse ofício são muito mais consideradas, porque trazem maior
lucro e porque nelas só matam os animais por necessidade, enquanto que o
caçador procura no sangue e na morte um divertimento estéril.
Os utopianos distinguem diversas espécies de prazeres
verdadeiros: uns relacionam-se com o corpo, outros com a alma. Os prazeres da
alma estão no desenvolvimento da inteligência e nas puras delícias que
acompanham a contemplação da verdade. Acrescentam ainda a certeza tde uma vida
irrepreensível e a esperança certa de uma imortalidade bem-aventurada. Eles
dividem em duas espécies as voluptuosidades do corpo:
A primeira espécie
compreende todas volúpias que exercem sobre os sentidos uma impressão actual,
manifesta, e cuja causa é o restabelecimento dos órgãos consumidos pelo calor
interno. Essa impressão nasce de um lado, da acção de beber e comer que devolve
as forças perdidas; de outro lado, das funções animais que expelem do corpo as
matérias supérfluas. Tais são as secreções intestinais, o coito, e o alívio de
uma comichão qualquer, ao esfregar-se ou ao coçar-se. Algumas vezes o prazer
dos sentidos não provém das funções animais que reparam os órgãos esgotados, ou
os aliviam de uma exuberância penosa; mas pelo efeito de uma força interior e
indefinível que comove, encanta e seduz; tal é o prazer que nasce da música.
A segunda espécie de
volúpia sensual consiste no equilíbrio estável e perfeito de todas as partes do
corpo, isto é, numa saúde isenta de mal-estar. Com efeito, o homem que não é afectado pela dor, experimenta em si um certo sentimento de bem-estar, mesmo que
nenhum objecto exterior agite agradavelmente os seus órgãos. É verdade que esta
espécie de volúpia não afecta nem atordoa os sentidos, como por exemplo os
prazeres da mesa; apesar disso, muitos a colocam em primeiro lugar; e quase
todos os utopianos declaram que ela é a base e o fundamento da verdadeira
felicidade. Porque, dizem, só uma saúde perfeita torna a condição da vida
humana tranquila e apetecível; sem saúde, não há voluptuosidade possível; sem
ela, a própria ausência da dor não é um bem, é a insensibilidade do cadáver.
Que triste destino seria o nosso, se nos fosse preciso
expulsar, à força de venenos e drogas amargas, a fome e a sede de cada dia,
como expulsamos as moléstias que nos assaltam de longe em longe!
Eles mantêm e
cultivam de boa vontade a beleza, o vigor, a agilidade do corpo, os dons mais
agradáveis e felizes da natureza. Admitem também os prazeres que a natureza
criou exclusivamente para o homem e que fazem a graça e o encanto da vida.
Porque o animal não demora a olhar sobre a magnificência da criação, sobre a
ordem e o arranjo do universo. Sente o odor para distinguir a alimentação, mas
não saboreia a delícia dos perfumes; não conhece as relações dos sons, e não
aprecia a dissonância nem a harmonia.
Finalmente, em toda espécie de satisfações sensuais, os
utopianos não esquecem jamais esta regra prática: Fugir à volúpia que impede
gozar uma volúpia maior ou que é seguida de qualquer dor. Ora, a dor é, a seus
olhos, a consequência inevitável de toda volúpia desonesta. Eis ainda um de seus
princípios: Desprezar a beleza do corpo, enfraquecer suas forças, converter sua
agilidade em entorpecimento, esgotar seu temperamento pelo jejum e pela
abstinência, arruinar a saúde, em uma palavra, repelir todos os favores da
natureza, no intuito de devotar-se mais eficazmente à felicidade da humanidade,
na esperança de que Deus venha recompensar essas penas de um dia por êxtases de
alegria eterna, é dar mostra de religião sublime.
Mas crucificar a carne, sacrificar-se por um vão fantasma de
virtude, ou para habituar-se antecipadamente a misérias que talvez não
aconteçam nunca, é dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo
mesmo, de orgulhosa ingratidão para com a natureza. É pisar aos pés os
benefícios do Criador, como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa. Tal é
a teoria utopiana no que se refere à virtude, e ao prazer. A menos que uma
revelação descida do céu inspire ao homem qualquer coisa de mais santo, eles
crêem que a razão humana não pode conceber nada de mais verdadeiro. Esta moral
é boa, é má?
O médico, costumam dizer, que se aplica em penetrar os
mistérios da vida, não somente tira deste estudo admiráveis prazeres, como
ainda se torna agradável ao divino obreiro, autor da vida.
A servidão recai particularmente sobre os cidadãos culpáveis
de grandes crimes e sobre os condenados à morte pertencentes ao estrangeiro.
Estes são muito numerosos na Utopia; os utopianos vão mesmo procurá-los no
exterior onde os compram a vil preço; algumas vezes obtêm-nos até de graça.
Todos os escravos são submetidos a um trabalho contínuo, e
trazem correntes. Os que são tratados, porém, com mais rigor, são os indígenas,
que são tidos como os mais miseráveis dos celerados, dignos de servir de
exemplo aos outros por uma pior degradação. Com efeito, eles receberam todos os
germes da virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no entanto, abraçaram o
crime.
Os utopianos não se casam às cegas; e para melhor se
escolherem, seguem um uso que, à primeira vista, nos pareceu eminentemente
ridículo, mas que praticam com um sangue frio e uma seriedade verdadeiramente
notáveis.
Uma dama honesta e grave mostra ao prometido sua noiva,
donzela ou viúva, em estado de completa nudez; e reciprocamente, um homem de
probidade comprovada, mestra à rapariga seu noivo nu.
Quando, diziam os utopianos, comprais um burrico, negócio de
alguns escudos, tomais precauções infinitas. O animal está quase nu, e entretanto,
tirai-lhe a sela ou os arreios, temendo que esses fracos invólucros escondam
alguma úlcera. E, quando se trata de escolher uma mulher, escolha que influi
sobre todo o resto da vida, e que pode fazer desta uma delícia ou uma tortura,
procedeis com a maior incúria! Como?! Prendei-vos indissoluvelmente a um corpo
todo oculto em vestes que o envolvem; julgais a mulher inteira por um pedaço de
sua pessoa, tão grande quanto a mão, pois só o rosto está à vista! E não temeis
de encontrar depois disto alguma deformidade secreta, que vos leve a maldizer
esta união arriscada!
Os utopianos tinham
alguma razão em falar assim, porque todos os homens não são bastante filósofos
para estimar uma mulher apenas por seu espírito e coração, e os próprios
filósofos não se aborreceriam por encontrar refluídas a beleza do corpo e as
qualidades da alma.
(…) Na Utopia onde a poligamia é severamente proscrita e
onde o casamento não se dissolve, na maioria das vezes, senão pela morte,
exceptuando-se o caso de adultério e de costumes absolutamente dissolutos. Nos
dois casos o senado dá ao cônjuge ofendido o direito de se casar novamente; o
outro é condenado a viver perpétuamente na infâmia e no celibato.
Não é permitido, sob nenhum pretexto, repudiar uma mulher de
comportamento irrepreensível, sob o fundamento de alguma enfermidade corporal
que haja adquirido. Abandonar assim uma esposa, no momento em que tem maior
necessidade de socorros, é, aos olhos dos utopianos, uma cruel covardia; é
ainda tirar à velhice toda esperança no futuro, pois não é a velhice a mãe de
todos os achaques, e não é ela, já em si, uma doença?
Acontece algumas vezes na Utopia que o marido e a mulher não
podendo conviver juntos por incompatibilidade de génios, procuram novas
metades, que lhes prometam uma vida mais feliz e mais doce. A demanda de
separação deve ser levada aos membros do senado que, após terem escrupulosamente
examinado a questão, juntamente com suas mulheres, rejeitam ou autorizam o
divórcio. Neste último caso, as duas partes queixosas separam-se com mútuo
consentimento e casam-se em segundas núpcias.
O divórcio é raramente permitido; os utopianos sabem que dar
a esperança de poder casar novamente com facilidade, não é o melhor meio de
estreitar os laços do amor conjugal.
O adultério é punido com a mais dura escravidão.
Se os dois culpados eram casados, os esposos ultrajados têm,
cada qual, o direito de repúdio respectivo, e podem casar-se entre si ou com
quem bem lhes pareça. Entretanto, se o cônjuge, homem ou mulher, que sofreu a
injúria, ama ainda o esposo ou esposa indigna, o casamento não é rompido, com a
condição, entretanto, de que o inocente siga o culpado aonde ele foi condenado
a trabalhar.
A reincidência no adultério é punida com a morte.
As penas dos outros crimes não são invariavelmente
determinadas pela lei. O senado proporciona a pena conforme a enormidade do
delito. Os maridos castigam suas mulheres; os pais, seus filhos; a menos que a
gravidade do delito exija uma reparação pública. A pena ordinária, mesmo para
os maiores crimes, é a escravidão.
Os utopianos crêem
que a escravidão não é menos terrível para os celerados do que a morte, sendo,
além disso, mais vantajosa para o Estado. Um homem que trabalha, afirmam, é
mais útil que um cadáver; e o exemplo de um suplício perpétuo inspira um terror
muito mais duradouro do que uma matança legal, que faz o culpado desaparecer
num instante.
Quando os condenados escravos se revoltam, são mortos como
animais ferozes e indomáveis que a cadeia e a prisão não puderam conter. Mas os
que suportam pacientemente sua sorte, não perdem de todo a esperança. Vêm-se
infelizes que, domados pelo tempo e pelo rigor dos sofrimentos, testemunham
verdadeiro arrependimento, mostrando que o crime lhes pesa com mais força do
que o castigo. Então, a prerrogativa do príncipe, ou a voz do povo,
concede-lhes a liberdade.
A simples solicitação ao deboche é passível da mesma pena
que o estupro cometido. Em toda matéria criminal, a tentativa bem definida é
reputada igual ao facto. Os obstáculos que impedem a execução de uma má
intenção não justificam aquele que a concebeu, e que, por certo, teria cometido
o mal se tivesse podido.
Os bobos da Utopia
fazem as delícias dos habitantes; maltratá-los é coisa vergonhosa. Assim, o
prazer que se tira da loucura de outrem não é proibido. Os utopianos não
confiam os bobos a esses homens tristes e severos que as palavras e as acções
mais cómicas não conseguem desanuviar. Temem que tão sérias personagens não
possuam a indulgência precisa para aturar e cuidar de um pobre louco que não
serve para nada e que nem ao menos os consegue fazer rir, único talento com que
a natureza o dotou.
É igualmente
vergonhoso insultar a fealdade ou aleijados; o que reprocha a um infeliz os
defeitos físicos, que não estava em si evitar, passa por insensato. Menosprezar
o zelo pela beleza natural é dar prova de uma preguiça ignóbil; mas chamar em
seu auxílio o artifício e o enfeite é infame impertinência.
Os nossos insulares sabem, de experiência própria, que as
graças do corpo recomendam menos uma mulher ao amor de seu marido, do que a
probidade dos costumes, a doçura e o respeito.
Muitos se deixam seduzir pela beleza; mas nem um só é
constante e fiel, se não encontrar com a beleza, a bondade e a virtude.
Os utopianos não somente afastam o crime pelas leis penais,
como incitam à virtude com honrarias e recompensas. Estátuas são erguidas nas praças
públicas aos homens de génio e àqueles que prestaram à república serviços
relevantes. Assim, a memória das grandes acções perpetua-se e a glória dos
antepassados é um aguilhão a estimular a conquista da posteridade e o
incitamento ao bem.
Aquele que afronta um só magistrado perde toda esperança de
exercer algum dia qualquer magistratura. Os utopianos vivem em família. Os
magistrados não se mostram nem orgulhosos nem terríveis; são chamados pais, e,
realmente, destes têm a justiça e a bondade. Recebem com simplicidade as honras
que às suas funções lhes são rendidas voluntariamente; essas provas de
deferência não constituem obrigação para ninguém. O próprio príncipe não se
distingue da massa, nem pela púrpura nem pelo diadema, mas apenas por um feixe
de trigo que traz na mão. As insígnias do pontífice reduzem-se a um círio que é
levado à sua frente.
As leis são em muito pequeno número e não obstante bastam às
instituições. O que os utopianos desaprovam especialmente nos outros povos é a
quantidade - infinita de volumes, leis e comentários, que, apesar de tudo, não
são suficientes para garantir a ordem pública. Consideram como injustiça
suprema enlear os homens numa infinidade de leis, tão numerosas que se torna
impossível conhecê-las todas, ou tão obscuras que é impossível compreendê-las.
Não há advogados na Utopia. Os demandistas de profissão, que
se esforçam por torcer a lei, e decidir uma questão com a maior astúcia, foram
dali excluídos. Os utopianos pensam que é preferível que cada um defenda sua
causa e confie directamente ao juiz o que teria a dizer a um advogado. Desta
maneira há menos ambiguidade e rodeio e a verdade se descobre mais facilmente.
As partes expõem seu negócio simplesmente, pois não há advogados para
ensinar-lhes as mil artimanhas da chicana. O juiz examina e pesa as razões de
cada um com bom senso e boa-fé; defende a ingenuidade do homem simples contra
as calúnias do velhaco.
Seria bem difícil praticar semelhante justiça nos outros
países, enterrados num montão de leis, tão embrulhadas e tão equivocas. De
resto, todo o mundo na Utopia é doutor em direito; porque, repito-o, as leis
são em muito pequeno número e a interpretação mais grosseira e mais material é
admitida como a mais razoável e mais justa.
As leis são promulgadas, dizem os utopianos, com a única
finalidade de que cada qual seja advertido de seus direitos e deveres.
Ora, as subtilezas de vossos contendores são acessíveis a
pouca gente e esclarecem apenas um punhado de sábios; ao passo que uma lei
claramente formulada, cujo sentido não é equívoco e se apresenta naturalmente
ao espírito, está ao alcance de todos.
Que importa à massa, isto é, à classe mais numerosa e a que
mais importa ter normas se não há leis ou que as leis estabelecidas sejam de
tal maneira embrulhadas que para obter-se sua significação verdadeira se faça
necessário um génio superior, ou longas discussões e longos estudos?
Infeliz do país onde a avareza e as afeições privadas
sentam-se no banco do magistrado! Adeus justiça! o mais firme esteio dos
Estados!
Para que servem os tratados? Não uniu a natureza o homem ao
homem por laços bastante indissolúveis? Aquele que despreza esta aliança íntima
e sagrada terá escrúpulo em violar um protocolo? Consolida-os nesta opinião o
fato de que nas terras desse novo mundo é raro que as convenções entre
príncipes sejam observadas de boa-fé.
É muito fácil descobrir matéria para chicana no texto de uma
aliança; os negociadores insinuam de má-fé, nos textos, manhosas escapatórias,
a fim de que o príncipe não fique jamais indissoluvelmente preso, e possa
encontrar sempre uma saída secreta para seus compromissos.
E, entretanto, este mesmo ministro que se vangloria de
falsificar assim as negociações, por conta do rei, seu senhor, se percebesse
que semelhantes embustes, ou melhor, velhacarias, eram introduzidas num
contrato entre simples particulares, este mesmo diplomata, franzindo o sobrolho
do alto de sua probidade, condenaria a fraude como um sacrilégio digno da
forca.
Em tese, encaram como um mal a introdução de tratados entre
os povos, mesmo que fossem observados religiosamente. Este uso habitua os
homens a se considerarem mutuamente inimigos, nascidos para se guerrearem
sempre e para legitimamente se entredevorarem, na falta de um tratado de paz;
como se não houvesse mais uma sociedade natural entre duas nações só porque uma
colina ou um rio as separa. Ainda se as alianças garantissem a amizade dos
confederados, mas, na realidade, nunca eliminam elas todos os pretextos de
rompimento, e por conseguinte, de saque e de guerra, dada a leviandade dos
diplomatas que redigem os artigos. É raro que os plenipotenciários possam
abarcar todos os casos possíveis de proibições e compromissos, ou que os
formulem de uma forma perfeitamente clara e precisa.
Os utopianos têm por princípio que não se deve ter por
inimigo senão aquele que se torna culpado de injustiça ou violência. A comunhão
na mesma natureza parece-lhes um laço mais indissolúvel do que todos os
tratados. O homem, afirmam, está unido ao homem de uma maneira mais íntima e
mais forte pelo coração e pela caridade do que pelas palavras e protocolos.
Os utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente
animal e que o homem, no entanto, pratica mais frequentemente do que qualquer
espécie de animal feroz.
Os utopianos choram amargamente sobre os louros de uma
vitória sangrenta; envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar as mais
brilhantes vantagens ao preço do sangue humano. Para eles, o mais belo título
de glória é o de ter vencido o inimigo à força de habilidade e artifício. É então
quando celebram os triunfos públicos e erguem os troféu; como após uma acção
heróica; é então quando se vangloriam de ter agido como homens e como heróis,
uma vez que venceram unicamente pela força da razão, coisa de que não é capaz
nenhum animal, excepto o homem.
(...) Tal é o poder que tem o ouro para arrastar ao crime!
Também, os utopianos não poupam dinheiro nessa circunstância. Recompensam com a
gratidão mais generosa aqueles que impelem aos perigos da traição; eles têm o
cuidado de fazer com que a grandeza do perigo seja largamente compensada pela
magnificência do prémio. É por isso que prometem aos traidores não só imensas
somas em dinheiro, mas ainda a propriedade perpétua de terras de grande
rendimento situadas em lugar seguro no país aliado. E cumprem fielmente a
palavra. O uso de negociar os seus próprios inimigos, pondo suas cabeças a prémio,
é reprovado nos outros países como uma infâmia digna unicamente de almas
degradadas. Os utopianos, porém, gabam-se disso como de uma acção de alta
sabedoria que termina sem combate as guerras mais terríveis. Honram-se disso
como de uma acção humanitária e misericordiosa, que resgata, ao preço da morte
de um punhado de culpados, a vida de vários milhares de inocentes, de um como
de outro lado, destinados a morrer nos campos de batalha.
A piedade dos utopianos também se estende aos soldados de
todas as bandeiras; sabem que o soldado não vai por sua própria vontade à
guerra, mas é arrastado pelas ordens e pelos furores dos príncipes.
Os cidadãos são para a república da Utopia o tesouro mais
caro e mais precioso.
É também comum ver-se parentes muito próximos, amigos
estreitamente ligados, enquanto serviam a mesma causa, combatendo-se com o mais
vivo encarniçamento, desde que a sorte os dispersou pelas fileiras das duas
partes contrárias. Eles esquecem família, amizade e se matam furiosamente só
pelo fato de dois soberanos inimigos pagarem algumas moedas por seu sangue e
seu furor.
Desde cedo aprendem a não desdenhar tanto a vida, para
esbanjá-la estouvadamente; mas também a não amá-la tanto para guardá-la com
vergonhosa avareza, quando a honra exige que seja arriscada.
Os utopianos observam tão religiosamente as tréguas
concluídas com o inimigo, que não as violam mesmo em caso de provocação Não
devastam as terras do país conquistado; não queimam suas colheitas; vão até a
impedir, tanto quanto possível, que elas sejam esmagadas sob os pés dos homens
e dos cavalos, na previsão de que venham a necessitar delas um dia.
Nunca maltratam um homem sem armas, a menos que seja espião.
Conservam as cidades que se rendem e não abandonam à pilhagem as que tomam de
assalto. Apenas, matam os principais chefes que puserem obstáculos à rendição
da praça, e condenam à escravidão o resto dos que sustentaram o sítio. Quanto à
massa indiferente e pacífica, deixam-na em paz. Se sabem que um ou mais
sitiados haviam aconselhado a capitulação, dão-lhes uma parte dos bens dos
condenados; a outra parte é para as tropas auxiliares. Não tocam no despojo.
Utopus, decretando a liberdade religiosa, não tinha
unicamente em vista a manutenção da paz outrora perturbada por combates
contínuos e ódios implacáveis; pensava ainda que o próprio interesse da
religião exigia tal medida. Nunca ousou ele estatuir temerariamente qualquer
coisa, em matéria de fé, na incerteza de que o próprio Deus não tenha inspirado
aos homens as diversas crenças no intuito de experimentar, por assim dizer,
esta grande variedade de cultos. Quanto ao emprego da violência e de ameaças
para constranger alguém a adoptar a mesma crença que outrem, pareceu-lhe
tirânico e absurdo. Previa que se todas as religiões fossem falsas, à excepção
de uma, tempo viria em que, com o auxílio da doçura e da razão, a verdade se
desprenderia espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro Ao
contrário, quando a controvérsia se faz pelo tumulto e de armas na mão, dado
que os piores homens são os mais teimosos, sucede que a melhor e mais santa das
religiões acabaria sepultada sob uma multidão de vãs superstições, como uma
bela seara coberta pelo mato e os espinhos.
Quem pode duvidar, com efeito, que um indivíduo que não tem
outro freio senão o código penal, outra esperança que a matéria e o nada, não
encontra prazer em iludir, astuciosa e secretamente, as leis de seu país, ou
violá-las pela força, desde que satisfaça a sua paixão e o seu egoísmo?
Todos os utopianos, à parte pequena minoria, alimentam a
convicção íntima de que uma felicidade imensa aguarda o homem além túmulo. É
por isto que choram pelos doentes e jamais pelos mortos, exceptuado o caso em
que o moribundo deixa a vida inquieto ou a contragosto. O temor da morte é para
eles um mau augúrio; parece-lhes que este temor não existe senão nas almas sem
esperança e cujas consciências intranquilas tremem diante da eternidade, como
se sentissem já o aproximar do suplício. Além disso acreditam que Deus não
recebe com prazer o homem que não acorre de bom grado ao seu chamado, mas é
pela morte arrastado à sua presença entre rebelde e aflito.
(…)o amor e a caridade, longe de se extinguirem após a morte
no coração dos eleitos, devem provavelmente crescer, como todas as outras
perfeições. Por conseguinte, segundo as ideias utopianas, os mortos se misturam
à sociedade dos vivos e são testemunhas de suas acções e de suas palavras. A
crença na presença dos antepassados inspira a este povo uma confiança extrema
nas suas acções porque lhes assegura a proteção e o apoio de poderosos
defensores; além disso, impede uma enorme quantidade de crimes ocultos.
Durante os combates, os padres, retirados a um lado, mas não
muito longe dos campos de batalha, rezam de joelhos as mãos erguidas ao céu e
paramentados com os hábitos sagrados. Imploram a paz acima de tudo, e só em
segundo lugar a vitória do seu país, e, ainda assim, uma vitória que não seja
sangrenta para nenhum dos dois lados. Se são os seus concidadãos os vencedores,
atiram-se no mais forte da refrega e evitam a matança dos vencidos. O inimigo
que deles se aproxima, os vê ou os chama, tem sua vida poupada; aquele que
consegue tocar suas vestimentas sagradas, longas e flutuantes, conserva com a
vida, a fortuna.
É justo que um nobre, um ourives, um usurário, um homem que
não produz senão objectos de luxo, inúteis ao Estado, é justo que tais
indivíduos levem uma vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade e
ocupações frívolas, enquanto que um trabalhador, um carreteiro, um artesão, um
lavrador vivem uma negra miséria, mal podendo alimentar-se? E, no entanto, os
últimos estão amarrados a um trabalho tão pesado e tão penoso que as bestas de
carga mal suportariam; tão necessário que nenhuma sociedade poderia subsistir
um ano sem ele. Na verdade, a condição de uma besta de carga parece mil vezes
preferível; esta trabalha menos tempo, sua alimentação não chega a ser pior, e
é mesmo mais conforme aos seus gostos. E depois, o animal não teme o futuro.
Mas qual é o destino do operário? Um trabalho infrutífero,
estéril a esmagá-lo agora e a expectativa de uma velhice miserável no futuro; o
seu salário diário não chega para todas as necessidades quotidianas; como,
então, poderá ele aumentar sua fortuna e reservar dia a dia um pouco do
supérfluo para as necessidades da velhice?
Não é iníqua e ingrata a sociedade que prodigaliza tantos
bens aos que se intitulam nobres, aos joalheiros, aos ociosos ou a esses artesãos
de luxo que só sabem lisonjear e servir a frívolas volúpias; quando, de outra
parte, não tem nem coração nem cuidados para o lavrador, o carvoeiro, o
carregador, o operário, sem os quais não existiria sociedade?
Em seu cruel egoísmo, ela abusa do vigor da juventude dessa
gente para tirar dela maior proveito; e logo que fraquejam esses pobres homens,
sob o peso da idade e da doença, justamente quando tudo lhes falta, é que ela
esquece das suas canseiras infindas, dos seus numerosos serviços, e os recompensa
deixando-os morrer a fome. E não é tudo.
Os ricos diminuem todos os dias, de uma maneira ou outra o
salário dos pobres, não só por meio de manobras fraudulentas, mas ainda
decretando leis especiais.
Recompensar tão mal aqueles que mais merecem da república,
parece-nos à primeira vista uma evidente injustiça; mas os ricos fazem desta
monstruosidade um direito, sancionando-o em leis. É por isto que, quando
considero e observo as repúblicas mais florescentes hoje, não vejo, Deus me
perdoe, senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor modo os seus negócios
sob o rótulo e o título pomposos de república.
Os conjurados procuram por todas as manhas e meios possíveis
atingir um duplo fim: Primeiramente, assegurar a posse certa e indefinida de
uma fortuna mais ou menos mal adquirida;
em segundo lugar, abusar da miséria dos pobres, abusar de
suas pessoas, e comprar pelo preço mais baixo suas habilidades e labores. E
essas maquinações decretadas pelos ricos em nome do Estado, e, por conseguinte,
em nome dos pobres também, são transformadas em leis.
Na Utopia a avareza é impossível, porque o dinheiro ali não
é de uso algum, e por isso mesmo que abundante fonte de males não estancou ela?
Que enorme seara de crimes não cortou pela raiz? Quem não sabe, com efeito, que
as fraudes, os roubos, as rapinas, as rixas, os tumultos, as querelas, as
sedições, os assassínios, as traições, os envenenamentos; quem não sabe, digo,
que todos esses crimes dos quais se vinga a sociedade com suplícios
permanentes, sem, entretanto, poder preveni-los, seriam suprimidos no dia em
que o dinheiro desaparecesse?
Então, desapareceriam também o temor, a inquietude, os
cuidados, as fadigas e as canseiras. A própria pobreza, que parece ser a única
a carecer de dinheiro, diminuiria no instante mesmo, caso o dinheiro fosse
completamente abolido. E veja-se esta prova evidente: Suponde que vem um ano
mau e estéril, durante o qual uma horrível fome rouba muitos milhares de vidas.
Sustento que, ao fim da calamidade, se fossem pesquisados os celeiros dos
ricos, neles se encontrariam imensas provisões de grãos. De sorte que, se essas
provisões tivessem sido distribuídas em tempo, nenhum dos infelizes que
morreram de fraqueza e debilidade teria sido tocado pela inclemência do céu e a
avareza da terra.
Vedes pois, que, sem o dinheiro, a existência teria podido e
poderá ser assegurada a todos; e que a chave de ouro, esta bem-aventurada
invenção que nos devia abrir as portas da felicidade, no-las fecha
impiedosamente. Os próprios ricos, não o duvido, compreendem estas verdades.
Sabem que é infinitamente preferível não lhes faltar jamais o necessário a ter
em abundância quantidades de coisas supérfluas; que mais vale verem-se livres
de males inúmeros do que se cercarem de grandes riquezas.
Creio mesmo que de há muito teria o género humano abraçado
as leis da república utopiano, seja em interesse próprio, seja em obediência às
leis do Cristo, pois a sabedoria do Salvador não poderia ignorar o que há de
mais útil aos homens, e sua bondade divina certamente já soube recomendar-lhes
o que sabia ser bom e perfeito.
Mas o orgulho, paixão feroz, rainha e mãe de todas as pragas
sociais, opõe uma resistência invencível a essa conversão dos povos. O orgulho
não mede a felicidade de acordo com o bem- estar pessoal, mas de acordo com a
infelicidade alheia. Nem o orgulho seria o que é se não houvesse desgraçados a
insultar e a tratar como escravos, se o luxo de sua felicidade não fosse mais
exaltado pelas angústias da miséria e se a ostentação de suas riquezas não torturasse
mais a indigência e lhe acentuasse o seu desespero. O orgulho é uma serpente do
inferno, que se introduziu no coração dos homens, que os cega com seu veneno e
os afasta da senda de uma vida melhor. Este reptil agarra-se tão fortemente à
carne que se torna difícil arrancá-lo.
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