sábado, 9 de março de 2013

J. M. Coetzee- A Vida e o Tempo de Michael K


A guerra é a mãe e a rainha de todos. A alguns transforma em Deuses, a outros em homens. De alguns faz escravos, de outros homens livres.

Eu podia viver aqui para sempre, ou até morrer, pensou. Nada aconteceria, cada dia seria igual ao dia anterior, nada haveria que dizer. A ansiedade que o assaltava na estrada começava a deixá-lo. Por vezes, enquanto caminhava, nem se dava conta se estava acordado ou a dormir. Compreendeu porque é que as pessoas se isolavam aqui e ali, se fechavam em quilómetros e quilómetros de silêncio; compreendeu o seu desejo de assegurarem aos filhos e aos netos, para todo o sempre, o privilégio deste grande silêncio. Pôs-se a pensar se não haveria, entre as vedações, cantos, ângulos, corredores esquecidos que não pertencessem a ninguém. Se fosse capaz de voar, poderia certificar-se.

Preferem ver-nos vivos porque somos horríveis de ver quando adoecemos e morremos. Se emagrecêssemos até ficarmos em papel, e depois em cinzas, e desaparecêssemos, não se ralavam nada.

O acampamento era um lugar onde as pessoas se depositavam para serem esquecidas (…) Se esta gente na realidade se quer ver livre de nós, pensou, desenvolvendo-se o pensamento como uma planta que ia crescendo na sua cabeça, se na realidade quisessem esquecer-nos para sempre, deviam dar-nos pás e picaretas e mandar-nos cavar e quando tivéssemos cavado uma larga cova a meio do campo, deviam mandar-nos a todos descer até ao fundo e deitarmo-nos lá; e, quando estivéssemos deitados, deviam destruir as cabanas e as tendas, cortar a cerca de arame farpado, atirando tudo, cabanas, tendas e arame, até as coisas mais insignificantes, para dentro da cova, cobrindo-as depois com terra e calcando-a bem. Talvez então pudessem começar-se a esquecer de nós. Mas quem poderia abrir uma cova tão larga? (…) Não na presente situação, só com pás e picaretas, naquele vale pedregoso.

Não se via como algo pesado que deixa um rasto no chão à sua passagem, mas, a ser qualquer coisa, como um grão de areia à superfície de uma terra adormecida demasiado profundamente para ouvir os pés de uma formiga, o ruído dos dentes de uma borboleta ou o cair do pó.

Quero viver aqui, quero viver aqui para sempre, onde viveram a minha mãe e a minha avó. Só isso. É pena que para viver, nos tempos de hoje, o homem tenha de se preparar para viver como um animal. Um homem que queira viver não pode viver numa casa com luzes acesas nas janelas. Tem de viver num buraco e esconder-se durante o dia. Tem de viver de maneira a não deixar vestígios da sua existência.
Havia necessidade de alguns homens que mantivessem as terras cuidadas, pois que, uma vez cortado o cordão, a terra ficaria árida e esqueceria os seus filhos.

A história da sua vida foi sempre escura como um profundo abismo: uma história errada, sempre errada.

(…) sentindo um hino de gratidão vindo do coração. Exactamente como lhe tinham descrito: como um jacto de água morna.

Aprendeu a amar a ociosidade, que não consistia já em pequenas parcelas de liberdade roubadas ao trabalho e saboreadas furtivamente, sentado diante de algum canteiro de flores, com a forquilha suspensa na mão, mas que consistia numa entrega de si mesmo ao tempo, a um tempo que se ia escoando com a lentidão do óleo, de horizonte a horizonte, na face do mundo, e que invadia todo o seu corpo, circulando-lhe nos sovacos, nas virilhas, e formigando-lhe nas pálpebras (…) Só o tempo se movia, transportando-o consigo no seu fluir constante.

Os parasitas também têm carne e substância; os parasitas também podem ser devorados.

Eu sou a consequência de uma infindável sucessão de crianças.
     Pôs-se a imaginar uma figura de pé no extremo de uma linha ascendente, uma mulher de vestido cinzento sem forma, que não fora gerada por ninguém. Vacilava em pensamento, ao imaginar o silêncio que envolvia essa mulher, o silêncio do tempo petrificado antes do começo.

Uma só semente germinou uma mão-cheia de sementes; era aquilo a fartura da mãe Terra.

Se não te adaptas morrerás. E não penses que te vais simplesmente desgastando, até seres todo alma, capaz de voar no éter. A morte que escolheste é cheia de dor, desgraça e tristeza e terás de sofrer muito, ainda, antes que venha a libertação. (…) Caímos todos dentro do caldeirão da História; só tu, seguindo a tua estrela idiota, prendendo a tua vida à tua própria orfandade, fugindo à guerra e à paz, vagueando ao ar livre por sítios que ninguém sonhou procurar (...) flutuando no tempo, acompanhando as estações da natureza, não te interessando mais do que a um grão de areia, em modificar o curso da História. (...) A verdade é que vais desaparecer no anonimato de uma campa sem nome…










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