A maior
parte das gaivotas não se querem incomodar a aprender mais que os rudimentos do
voo, como ir da costa à comida e voltar. Para a maior parte das gaivotas, o que
importa não é saber voar, mas comer. Para esta gaivota, no entanto, o
importante não era comer, mas voar. (…) Como veio a
descobrir, esta maneira de pensar não o fazia muito popular entre as outras
aves. Até os próprios pais se sentiam desanimados ao verem que Fernão passava
os dias sozinho, a experimentar, fazendo centenas de voos rasos.
-
Porquê? Fernão, Porquê? – perguntava-lhe a mãe. – Por que não podes ser como o
resto do Bando?
Só quero
saber aquilo que consigo fazer no ar, e o que não consigo, mais nada. Só quero
saber.
Não
te esqueças de que a razão por que voas é comer.
Fernão
baixou a cabeça, obediente. Durante os dias seguintes tentou comportar-se como
os outros; tentou a sério, disputando com o resto do Bando a comida junto dos
pontões e dos barcos de pesca, mergulhando para apanhar pedaços de peixe e pão.
Mas não conseguiu. «É inútil
», pensou, deixando cair deliberadamente uma anchova, que lhe custara bastante
apanhar, aos pés de uma velha gaivota que o perseguia. Poderia ter passado todo
este tempo a aprender a voar. E há tanto que aprender!
Precisou de
uma força tremenda mas conseguiu. Em dez segundos passara os cento e trinta
quilómetros à hora.
Fernão
acabava de estabelecer o recorde mundial de velocidade para gaivotas! Mas a
vitória foi de pouca dura. No momento em que começou a arrancar, no instante em
que alterou o ângulo das asas, caiu outra vez no mesmo erro terrível, e, a
cento e trinta quilómetros horários, foi como se tivesse sido atingido por
dinamite. Fernão Capelo Gaivota explodiu a meia altura e estatelou-se num mar,
duro como tijolos.
(…) o peso
do fracasso era-lhe mais doloroso (…)
Não adianta.
Sou uma gaivota. A minha natureza limita-me.(…) Uma pobre e limitada gaivota.
(…)
promessas são só para as gaivotas que aceitam o vulgar.
O seu
pensamento era vitorioso. Velocidade máxima! Uma gaivota a trezentos e vinte
quilómetros por hora! Era um acontecimento, o momento mais importante na
história do Bando(…) Como vale a pena agora viver! Em vez de andar de um lado
para o outro à procura de peixe junto dos barcos, temos uma razão para viver!
Podemos sair da ignorância, podemos ser criaturas perfeitas, inteligentes e
hábeis. Podemos ser livres! Podemos aprender a voar.
(…) Mas não
quero honras. Não tenho vontade de ser chefe. Só quero partilhar o que
descobrir, mostrar a todos os horizontes que se nos deparam.
-
Fernão Capelo Gaivota – disse o Mais Velho. - Apresenta-te ao Centro por
vergonha, à frente das gaivotas tuas semelhantes. …pela sua desastrada
irresponsabilidade – continuava a voz, em tom solene -, violando a dignidade e
a tradição da família das Gaivotas… um dia, Fernão Capelo Gaivota,
compreenderás que a irresponsabilidade não compensa. A vida é o desconhecido e
o desconhecível. Só sabemos que somos postos neste mundo para comer e para nos
mantermos vivos durante o máximo de tempo possível.
Uma gaivota
nunca responde ao Conselho do Bando, mas a voz de Fernão fez-se ouvir.
-
Irresponsabilidade? Meus irmãos! – gritou. Quem é mais responsável que uma
gaivota que descobre e segue um desígnio elevado na vida? Há mil anos que
lutamos por cabeças de peixe, mas agora temos uma razão para viver, para
aprender, para descobrir, para sermos livres! Dêem-me uma oportunidade, deixem
que vos mostre o que descobri…
O
Bando mostrou-se irredutível. - A Irmandade foi quebrada – disseram as
gaivotas, em uníssono, e, de comum acordo, taparam os ouvidos e viraram-lhe as
costas.
O seu único
desgosto não era a solidão, mas o facto de as outras gaivotas se recusarem a
aceitar a glória do voo que as esperava; recusavam-se a abrir os olhos e ver.
Cada dia aprendia mais.
Aprendeu
que, com um mergulho a grande velocidade podia encontrar o peixe raro e
saboroso do oceano; já não precisava de barcos de pesca nem de pão duro para
viver.
Aprendeu a
dormir no ar, estabelecendo um percurso nocturno ao sabor do vento, cobrindo
cento e cinquenta quilómetros desde o pôr do Sol até à aurora. Com o mesmo
autodomínio interior, voou através de nevoeiros densos, subindo para céus mais
claros e resplandecentes… enquanto as outras gaivotas permaneciam em terra,
conhecendo apenas neblinas e chuva.
Aprendeu a
acompanhar os ventos continentais e a ter para jantar insectos delicados. O que
ambicionara para todo o Bando, tinha agora só para si, aprendera a voar e não
lamentava o preço que pagara por isso.
Fernão
Gaivota descobriu que o tédio, o medo e a ira são razões por que a vida de uma
gaivota é tão curta, e sem estas razões a perturbarem-lhe o pensamento, vivem
de facto uma vida longa e feliz.
A coisa mais
importante da vida era andar em frente atingir a perfeição.
Fazes alguma
ideia de quantas vidas teremos de viver antes de compreendermos que há coisas
mais importantes do que comer, lutar ou disputar o poder do Bando?
O nosso
objectivo na vida é conseguir a perfeição e pô-la em prática.
Não aprender
nada significa que o próximo mundo será igual a este, com as mesmas limitações
e pesos de chumbo a vencer.
O paraíso
não existe. O paraíso não é um lugar, nem um tempo. O paraíso é ser-se
perfeito.
…nenhum
número é um limite e a perfeição não tem limites.
Desde que o
desejes, podes ir a qualquer lugar, em qualquer momento.
Para voares
tão depressa quanto o pensamento para onde quer que seja – disse -, deves
começar por tomar consciência de que já chegaste…
O truque,
segundo Chiang, estava em Fernão deixar de se ver preso dentro de um corpo limitado,
cujas asas abertas abrangiam um metro e cuja perícia poderia ser traçada num
mapa.
O trunfo
consistia em tomar consciência de que a sua verdadeira natureza vivia, tão
perfeita como um número por escrever, em todo o lado e ao mesmo tempo através
do espaço e do tempo.
- Esquece a fé – dizia-lhe Chiang, sem cessar.
Não precisaste de fé para voar. Isto é a mesma coisa. Agora tenta outra vez…
Eu sou
perfeito, sou uma gaivota sem limites! Sentiu-se inebriado de alegria.
- Muito bem! – disse Chiang, com voz
triunfante.
- Finalmente, conseguiste entender a ideia –
disse Chiang -, mas tens de te aperfeiçoar mais com o controlo.
- RESULTOU!
- Claro que
resultou, Fernão – disse Chiang. Resulta sempre, quando se sabe o que se está a
fazer. Agora, quanto à questão do controlo…
- Podemos
começar a trabalhar com o tempo, se quiseres – disse Chiang, até conseguires
voar através do passado e do futuro. E, então, estarás preparado para começar a
voar alto e saber o significado das palavras bondade e amor.
(…) Estivera
a falar calmamente com todos, exortando-os a não deixarem de aprender nem de
treinar, e a lutarem para melhor compreenderem o perfeito e invisível princípio
de toda a vida.
- Fernão –
disse ele, e foram estas as últimas palavras que pronunciou, continua a
trabalhar o amor.
E quanto
mais Fernão treinava a bondade, quanto mais se esforçava por conhecer a
natureza do amor, mais ansiava por regressar à Terra. Apesar do seu passado
solitário, Fernão Gaivota nascera para ser instrutor, e a sua forma de
demonstrar amor era partilhar algo da verdade que ele próprio descobrira, como
uma gaivota que pedisse uma oportunidade para alcançar essa verdade.
- Fernão, tu
já foste banido uma vez. Que te leva a pensar que as gaivotas do teu tempo te
poderiam dar agora ouvidos? Conheces o provérbio e é bem verdade: Vê mais longe
a gaivota que voa mais alto. As gaivotas lá de onde vieste estão poisadas no
chão, gritando e lutando umas com as outras. Encontram-se a mil e quinhentos
quilómetros do paraíso, e, tu, ainda dizes que lhe queres mostrar o paraíso!
Fernão, elas nem sequer conseguem enxergar as pontas das próprias asas! Fica
aqui. Ajuda as gaivota aqui, aquelas que já estão preparadas para entenderem o
que tens para lhes dizer.
Se a nossa
amizade está dependente de coisas como o espaço e o tempo, quando finalmente os
ultrapassarmos, teremos destruído a nossa irmandade. Ultrapassando o espaço,
tudo o que nos resta é Aqui. Ultrapassando o tempo, tudo o que nos resta é
Agora. E entre o Aqui e o agora, não achas que nos podemos encontrar uma ou
duas vezes?
Ao
expulsarem-te, as outras gaivotas só fizeram mal a si próprias, e um dia
aperceber-se-ão disto, e um dia verão o que tu vês agora. Perdoa-lhes e
ajuda-as a compreender. A um centímetro da ponta da sua asa direita voava a
gaivota branca mais.
- Estás a
perder tempo comigo Fernão. Sou muito estúpido! Tento e volto a tentar mas
nunca consigo. Fernão Gaivota olhou para ele e assentiu
- Tens
de firme, mas suave percebes?
Cada um de
nós é na realidade uma ideia da Grande Gaivota, uma ideia ilimitada da
liberdade – costuma dizer-lhes Fernão, à noite, na praia. – e o voo de precisão
é um passo em direcção à nossa verdadeira natureza. Daí a razão de todo este
treino (…)
Mas nenhum
deles, conseguia acreditar que o voo das ideias pudesse ser tão real como o voo
de vento e penas.
- Todo o
vosso corpo, desde a ponta de uma asa, até à ponta de outra asa – costumava
dizer Fernão -, não é mais do que o vosso próprio pensamento, numa forma que
podem ver. Quebrem as correntes do pensamento e conseguirão quebrar as
correntes do corpo…
Mas, por
muito que falasse, soava como uma agradável ficção e eles precisavam dormir.
- Somos
livres de irmos para onde desejarmos e de ser o que somos –
Uma das leis
do Bando é que um banido nunca regresse, e a lei não for a quebrada nem uma
única vez em dez mil anos. A lei dizia para ficarem; Fernão dizia para irem;
- Bem, se
não fazemos parte do Bando, não temos que nos submeter à lei, pois não? –
perguntou Francisco.
- Além disso, se houver luta, seremos mais
úteis do que aqui.
As previsões de Francisco em relação à luta,
diluíram-se com a confusão entre o Bando.
Fernão
encontrava-se sempre presente junto aos seus discípulos, demonstrando,
sugerindo, pressionando, conduzindo. Voava com eles através da noite, das
nuvens e da tempestade, só pelo prazer que isso lhe dava, enquanto o Bando se
encolhia desconsolado, no solo.
Foi um mês
depois do regresso que a primeira gaivota do Bando atravessou a linha e pediu
para a ensinarem a voar. Ao fazê-lo, Teseu sousa Gaivota, tornou-se um pássaro
condenado e banido, e ao mesmo tempo, passou a ser o oitavo aluno de Fernão. Na
noite seguinte foi Virgílio Gaivota quem abandonou a Bando, cambaleando pela
areia, arrastando a asa esquerda e caindo aos pés de Fernão.
- Ajude-me – pediu-lhe baixinho, com voz de
moribundo. – O meu maior desejo é voar…
- Então, vem
– disse Fernão. – Sobe comigo e começaremos.(…) Tu tens a liberdade de ser tu
próprio, o teu verdadeiro eu, Aqui e Agora; nada se pode interpor no teu
caminho.
- Queres
dizer que posso voar?
- Quero dizer que és livre.
Assim, tão
simples e rapidamente Virgílio Gaivota abriu as asas e, sem esforço, elevou-se
na noite escura. O Bando foi despertado pelo seu grito, bem alto:
- Posso voar! Ouçam! POSSO VOAR!
Fernão
Capelo falava de coisas muito simples: do direito que as gaivotas têm de voar,
que a liberdade constitui a natureza essencial do seu ser, que deverão ser
afastados todos os obstáculos que se levantem contra a liberdade, sejam por superstição,
ritual ou limitação.
-Mesmo que
isso seja contra a Lei do Bando?
- A única
lei verdadeira é aquela que conduz à liberdade – respondeu Fernão. - Não existe
outra.
- Queres que
voemos como tu voas? – perguntou outra vez. – Tu és especial, dotado e divino.
És superior aos outros pássaros.
- Olhem para
o Francisco! Para Teseu! Para Ronaldo! Também serão especiais, dotados e
divinos? Não são mais do que tu, não são mais do que eu. A única diferença é
que eles só agora começaram a entender o que realmente são e a pôr em prática
esse conhecimento.
- Dizem do
Bando, que se não és filho da própria Grande Gaivota, então estás mil anos à
frente do teu tempo – disse Francisco a Fernão, uma manhã, após o treino de
velocidade avançada. Fernão suspirou. «É este o preço de se ser
incompreendido», pensou. «Ou nos chamam Diabo ou nos chamam Deus.»
- Que pensas tu, Francisco? Estamos à frente
do nosso tempo? Fez-se um longo silêncio.
- Bem, esta maneira de voar sempre esteve ao
alcance de quem a quisesse descobrir. Não tem nada a ver com o tempo. Talvez
estejamos à frente da moda. À frente da forma como a maior parte das gaivotas
voam.
- Isso já é
alguma coisa – disse Fernão, virando o corpo de forma a voar ao contrário. – É
bem melhor do que estar avançado em relação ao nosso tempo.
para a
esquerda, a cerca de trezentos quilómetros por hora, contra um rochedo de
sólido granito. Para ele, o rochedo foi como uma porta dura e gigantesca para
um outro
Lembras-te
do que dissemos acerca do nosso corpo não ser mais do que o próprio
pensamento…?
Por que será – interrogou-se Fernão – que a
coisa mais difícil do mundo é convencer um pássaro de que é livre, e de que
poderá prová-lo a si próprio se treinar
um pouco?
- Não
entendo como consegues amar um Bando de pássaros que tentou matar-te.
- Oh, Francisco, não é isso que se ama. Claro
que não se ama o ódio e o mal. É preciso persistir até ver a verdadeira
Gaivota, aquilo que há de bom em cada uma delas, e ajudá-las a ver isso também.
Quando se consegue entender, até é engraçado.
- Lembro-me
de um jovem pássaro impetuoso, por exemplo, o Francisco Coutinho Gaivota,
acabava de ser banido, estava pronto a lutar com o Bando até à morte, e começou
por construir o seu inferno. E aqui está ele hoje a construir o seu paraíso e a
guiar o Bando nessa direcção. Francisco voltou-se para o seu instrutor, com um
brilho de medo nos olhos. - Eu, guiar? Que queres dizer com isso? Tu é que és o
instrutor. Não podes abandonar-nos.
- Não posso?
Não te lembras de que pode haver outros Bandos, outros Franciscos que
necessitem de um instrutor mais do que este, que já se encontra no caminho da
luz?
- Eu?
Fernão, eu não passo de uma gaivota vulgar, e tu és… - … O único Filho da
Grande Gaivota, não é?
– Fernão
suspirou e olhou para o mar. Precisas de continuar a descobrir-te, um pouco
mais cada dia, o verdadeiro e ilimitado Francisco Gaivota. Precisas de o
compreender e de o treinar.
Passados
momentos, o corpo de Fernão estremeceu no ar, brilhando, e começou a ficar
transparente.
- Não deixes que eles espalhem boatos a meu
respeito, nem que façam de mim um Deus, está bem, Francisco? Eu sou uma
gaivota. Gosto de voar, talvez…
- FERNÃO?
- Pobre Francisco. Não acredites no que dizem
os teus olhos. O que te mostram é limitação. Olha com compreensão, descobre o
que já sabes e verás como voar.
O brilho
extinguiu-se. Fernão Gaivota desapareceu no ar. Passado pouco tempo, Francisco
Gaivota arrastou-se para o céu e encontrou-se face a face com um novo grupo de
estudantes, ávidos da sua primeira lição.
- Para
começar – disse, pesadamente -, vocês têm de compreender que uma gaivota é uma
ideia ilimitada de liberdade, uma imagem da Grande Gaivota, e todo o vosso
corpo, desde a ponta de uma asa até à ponta da outra, não é mais do que o vosso
próprio pensamento.
(…)E embora
tentasse mostrar-se severo com os seus discípulos, Francisco Gaivota viu-os,
subitamente tal como eles eram, e mais do que gostar, amou o que viu.
«Não há
limites, Fernão?», pensou, e sorriu.
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