Como está
aqui no campo, sem o narcótico da fama e da lisonja, sente-se maçada, irritada.
Ela o que
deseja é que a deixem viver a vida, amar, usar blusas de cores vivas, e eu
sempre aqui, com os meus vinte e cinco anos a lembrarem-lhe constantemente que
já não é nenhuma jovem. Quando eu não ando por perto, ela só tem trinta e dois
anos. Mas se estou ao pé dela, tem mais dez, e é por isso que me odeia.
O teatro é
uma perfeita rotina imbuída de puro convencionalismo. Quando a cortina sobe,
deixa à nossa vista um espaço delimitado por três paredes, iluminado por uma
luz artificial, e vemos todos esses artistas sublimes, sacerdotes e
sacerdotisas de uma arte sagrada, a imitarem como é que se come, como é que se
bebe, se namora, passeia e veste o casaco. Com cenas vulgaríssimas e com frases
ocas, põem-se a cozinhar uma moral de uso doméstico, bem ajeitadinha,
pequenina, fácil de entender. Afinal servem-nos sempre o mesmo prato de mil e
uma maneiras, e eu, por mim, fujo a sete pés, como o Maupassant, espavorido com
a vulgaridade da Torre Eiffel, que lhe atrofiava os miolos. L
Imagina a
situação mais absurda e aflitiva do que esta: ela recebia em casa todas as
celebridades, actores, escritores - e eu ali, no meio dessa gente, uma nulidade
- eles, a tolerarem-me apenas por eu ser filho dela. Afinal quem sou eu? Sou o
quê? (…)E aí tens. Quando todos aqueles actores e escritores, que lhe enchiam a
sala, me concediam algum vislumbre de benévola atenção, o que eu sentia era que
estavam simplesmente a avaliar qual o grau da minha insignificância - imaginava
o que estariam a pensar -, e invadia-me uma humilhação profunda.
A vida não
tem de ser reproduzida como é, nem como deveria ser. É a vida que vemos em
sonho que nós temos de reproduzir.
Milhares de
séculos foram, entretanto, passando nesta desolada terra, sem um único vivente,
e a pobre Lua acende em vão a sua lanterna. Esta campina, já não desperta com
os gritos das gralhas, e os ralos já não cantam a sombra das tílias. O frio, o
frio, o frio. O vazio, o vazio, o vazio. Terrível, terrível, terrível! Os
corpos de todas as criaturas vivas desapareceram, feitos pó, e a matéria eterna
transformou-os em pedras, água, nuvens. As almas uniram-se numa só alma, e essa
alma única e una do mundo sou eu... Eu...! Tenho em mim a alma de Alexandre
Magno, a de César, a de Shakespeare e a de Napoleão, e a alma da mais miserável
sanguessuga. Em mim se fundiram a consciência dos seres humanos e os instintos
das bestas. De todos me relembro, de todos, todos e, no meu próprio ser, eu vivo
de novo a vida de cada um e a de todos. Estou só. E uma vez apenas, de cem em
cem anos, abro a minha boca para falar, e a minha voz ressoa melancólica neste
lugar ermo e desolado, e ninguém a ouve… Vós, ó pálidos clarões, não me ouvis… As
águas estagnadas criam-vos, ao amanhecer, e vagueais, então, até ser dia claro,
sem pensamento nem vontade, sem um frémito de vida. Temendo que a vida uma vez
mais brote em vós, o Diabo, o progenitor da eterna matéria, momento a momento
em vós engendra, tal como nas pedras e na água, uma troca contínua de átomos, e
assim ficais, em permanente mudança, para sempre. Tão-só e unicamente, o
espírito permanece, no inteiro Universo - constante e imutável. Tal como um
prisioneiro que foi lançado a um poço vazio e profundo, ignoro onde estou e o
que me espera. É-me revelado apenas que na luta tenaz e cruel contra o Diabo,
principio das forças materiais, eu estou destinada à vitória - então a matéria
e o espírito unir-se-ão, numa maravilhosa harmonia, de que advirá o Reino da
Vontade Universal. Tudo isto, no entanto, há-de ser lento, pouco a pouco, no
decurso de uma longa, longuíssima sucessão de milénios, quando a Lua e a
fulgente Sirius e a própria Terra estiverem já tornadas pó… E até que venha
esse tempo, só nos resta o horror, o horror. ( Surgem dois pontos vermelhos).
Eis que se aproxima o meu tão poderoso inimigo, o Diabo. Vejo-lhe os olhos,
vermelhos, medonhos…(…) Sem a humanidade, ele aborrece-se…
A obra de
arte tem sempre a obrigação de exprimir uma ideia verdadeiramente significativa.
Só é realmente belo o que é relevante.(…) Mas só se deve pintar o que é
importante e eterno.(…) Ainda outra coisa. Na obra de arte, tem de haver sempre
um pensamento claro e bem definido. Tem de saber para que é que se está a
escrever. Se enveredar por um caminho cheio de pitoresco mas sem objectivo,
perdemos o rumo e somos aniquilados pelo seu próprio talento.
Pois muito
bem, eu tenho sido uma pessoa com uma vida muito cheia e variada, bem vivido, e
sinto-me satisfeito por isso. Mas se alguma vez experimentasse a elevação dos
artistas na actividade da criação, parece-me que acabaria por desprezar este
meu invó1ucro material e tudo o que lhe diz respeito. Levantaria voo da Terra,
para subir às alturas, tão longe quanto me fosse possível.
Quando não
sabem o que nos hão-de dizer mais, as pessoas vêm sempre com essa: “Ah, a
juventude, a juventude”…
(…)E sigo
sempre uma regra: não me preocupar com o futuro. Não me lembro nunca da morte,
nem da velhice.
O vinho e o
tabaco apoderam-se da personalidade de um indivíduo. Com um cigarro e um copo
de vodka, deixa de ser o Piotr Nikolaevich e passa a ser o Piotr Nikolaevich
mais outra pessoa. A sua personalidade, o seu eu esboroam-se, e começa até a
ver-se como uma terceira pessoa - um ele.
Querer tratar-se
aos sessenta anos e ter pena de si próprio por não se ter gozado a juventude, é
pura e simples leviandade.
As pessoas
sempre nos saem todas umas maçadoras…
Eu julgava
que as pessoas célebres eram altivas e inacessíveis. Julgava que sentiam
desprezo pelo vulgo, e que a fama e o brilho do seu nome lhes bastava para
desforra de todos os que põem a nobreza do nascimento e a riqueza acima de
tudo. Mas estes, aqui, choram, pescam, jogam às cartas, riem, irritam-se - como
qualquer outra pessoa…
Quando chego
ao fim do meu trabalho, ou me meto num teatro ou vou para a pesca. Ao menos,
nessa altura, eu deveria poder esquecer e repousar um pouco - mas não! oh
maravilha! - uma autêntica bala de canhão começa às voltas no meu cérebro, a
sacudi-lo. É um novo tema para uma história, que me empurra para a minha
secretária, e aí tenho eu, uma vez mais, de escrever, escrever. É e será sempre
assim, não encontro a paz em mim próprio, sinto que estou a consumir a minha
vida. Por umas gotas de mel, que eu destilo para outros, roubo o pólen das
minhas mais belas flores, arranco-as e espezinho as raizes. Não lhe parece que
estou louco? Julga que os meus conhecidos e amigos íntimos me tratam como a uma
pessoa normal? “O que é que tu andas a escrever?”, perguntam-me. “O que é que
nos vais oferecer proximamente?” Sempre assim, sempre, mas quer parecer-me que
toda essa atenção, da parte dos meus conhecidos, o constante elogio, um
permanente encantamento, são uma manobra enganadora. Estão a iludir-me, como é
costume fazer-se aos doentes. E até receio, por vezes, que estejam ali, atrás
das minhas costas, prontos para saltarem e me meterem no manicómio. Na minha
mocidade - e foram esses os meus melhores anos - , quando principiei, escrever
era um sofrimento sem fim. Um pequeno escritor, quanto mais reveses tem, mais
se considera inábil, incomodativo, supérfluo. Tem os nervos sempre em franja,
mas não desiste de gravitar à volta da gente da literatura e das artes -
ignorado e menosprezado por todos, sempre receoso de olhar de frente para
alguém, como um jogador inveterado que não tem um tostão.
NINA- Mas
não sente nunca êxtase e felicidade, tanto nos momentos de inspiração como
durante o próprio trabalho de criação? Com certeza que sente.
TRIGORIN-
Sim, sinto prazer quando escrevo. E quando estou a ver as provas, também… mas
quando a obra sai do prelo, detesto aquilo tudo. Vejo que é errado, nem devia
ter sido escrito. Nessas alturas, sinto-me irritável, com a alma doente… (Ri) E
o público lê, e depois diz: “Sim, é uma coisa bonita, talentosa… mas ainda a
grande distância de Tolstoi.” Ou então: “É uma obra excelente, mas inferior aos
Pais e Filhos do Turgueniev.” E será sempre assim, até à hora da minha morte,
bonito e talentoso, bonito e talentoso – só isso. E depois de eu morrer, essas
pessoas ainda vão passar pela minha sepultura e dizer: “Aqui jaz Trigorin, um
bom escritor, mas inferior a Turgueniev.”
(…) Amo o
meu país e o seu povo. Sinto que se for realmente um escritor, então devo falar
do povo e de todas as suas dores, do seu futuro, falar da Ciência, dos direitos
do homem, e por aí fora… E falo disso tudo, com urgência, pressionam-me, de
todos os lados, criticam-me, e eu numa roda viva, como uma raposa acossada
pelos cães. Vejo perfeitamente que tanto a vida como a Ciência não param nunca,
avançam sempre, sempre para a frente. E eu acabo por ficar para trás, sempre
atrasado, como um camponês que perdeu o comboio. Em suma, só tenho jeito
bastante para paisagista, e que o resto é falso - falso até à medula.
Ocorreu-me
agora mesmo um tema… (Mete o bloco de notas na algibeira) Dá para um conto. Uma
rapariga que passou a vida à beira de um lago. Assim, como você. Essa rapariga
ama o lago, como uma gaivota, e é feliz e livre como uma gaivota. Um homem
passa, olha para ela, e como não tem mais nada que fazer, destrói-a - como
aquela gaivota morta ali.
As pessoas
pretensiosas, mas sem talento, acabam por não fazer mais nada senão maldizer os
que são realmente dotados de talento! Que linda forma de se consolarem.
Ah, o amor
de uma rapariga assim, tão encantadora, poética, e que me transporta para o
reino dos sonhos - só um amor como este, e mais nenhum, pode trazer a alegria
na terra! Eu nunca tinha experimentado este amor…
As pessoas
de idade são iguais às crianças pequenas.
As mulheres
querem apenas uma única coisa: um olhar de carinho.
A vida tem
sempre um fim. Este é o decreto da Natureza.
O medo da
morte é um sentimento animal…, que temos de aprender a reprimir. Só aqueles que
crêem que há vida eterna é que têm
consciência do medo da morte, e o que os apavora são os seus próprios pecados.
É tão fácil,
filosofar no papel, e é tão difícil passar à prática.
Pois, cada vez estou mais convencido de que
não é uma questão de formas, velhas ou novas, mas pura e simplesmente, daquilo
que se escreve, sem pensar sequer na forma, o que se escreve vindo do fundo da
alma, livremente.
(…) os
comerciantes mais cultivados, não me vão largar com galantarias. A vida é
sórdida!
Agora sei,
percebi que no nosso trabalho - e tanto faz estar no palco como escrever - o
que é importante não é ter êxito, nem tão-pouco glória, nem nada do que eu
sonhava - o que é importante é conseguir aguentar. Saber levar a cruz, e ter
fé. Eu tenho fé, e assim não me dói tanto. Quando penso na minha vocação, já
não tenho medo da vida.
(Ouve-se um
tiro. Todos se sobressaltam) (…)Não foi
nada. Algum frasco que rebentou, na minha mala. Não se assuste. (Sai, pela
porta da direita, volta decorrido meio minuto) Foi o que eu pensei. Estoirou um
frasco de éter.
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