Quem é que
no nosso tempo há-de estar sereno, desde que seja pessoa de coração?
Ser
entusiasta era a sua função social, e até mesmo quando não era essa a sua
disposição natural procurava sê-lo, para que as pessoas suas conhecidas se não
sentissem desapontadas.
É a nós, e
só a nós, a quem compete resgatar o sangue do justo...
(…) abria
muito os olhos, como uma criança diante de uma loja de brinquedos. Só receava
perder qualquer sábia observação que lhe fosse dado ouvir.
O visconde
era um jovem amável, de traços finos e maneiras suaves, que a si mesmo,
visivelmente, se considerava uma figura sensacional, embora, por mera boa
educação, se oferecesse, modestamente, à curiosidade da sociedade em que se
encontrava. Ana Pavlovna, visivelmente também, dele tirava partido para regalo
dos seus convidados. À semelhança do chefe de mesa, que gosta de apresentar,
como coisa superlativamente delicada, uma posta de carne em que ninguém ousaria
tocar numa cozinha sórdida, assim, na sua reunião.(…) E o jovem foi apresentado
à sociedade sob o seu ângulo mais distinto e favorável, como um rosbife, num
prato bem quente, todo guarnecido de salsa.
Helena era
tão bela que não traía a mais pequena sombra de coquetterie; pelo contrário, parecia ter vergonha da sua incontestável,
da sua por de mais poderosa e por de mais triunfante beleza. Dir-se-ia ser seu desejo,
sem o conseguir, amortecer-lhe o próprio esplendor.
Napoleão
tinha tido, de súbito, um pequeno desmaio, coisa que lhe acontecia frequentes
vezes, e ficara à mercê do duque, circunstância de que este não quisera tirar
partido. Bonaparte, mais tarde, vingara-se desta magnanimidade do duque
mandando matar o adversário.
A influência
de que se desfruta na sociedade é um capital que convém salvaguardar para que
se não dissipe. O príncipe Vassili sabia-o muitíssimo bem, e, por isso,
persuadido de que, se se pusesse a interceder por toda a gente, nada mais
poderia pedir para si próprio, raramente lançava mão do crédito de que dispunha
(…)
(…) E aí
está porque, em nome do bem-estar de todos, ele não podia deter-se perante a
vida de um homem.
Napoleão é
grande porque soube elevar-se acima da Revolução, porque sufocou os abusos a
que ela tinha levado, aproveitando o que nela havia de bom, isto é, a igualdade
dos cidadãos e a liberdade do pensamento e da imprensa. E não foi por outro
motivo que subiu ao Poder.(…) O povo confiara-lhe o Poder exactamente para que
ele o livrasse dos Bourbons, e por isso mesmo é que o povo viu nele o estofo de
um grande homem. A Revolução foi uma grande coisa(…)Claro que se praticaram
excessos, mas não era isso que tinha importância; o que importava eram os
direitos do homem, a abolição dos privilégios, a igualdade dos cidadãos. E
estas ideias manteve-as Napoleão integralmente…
A liberdade e a igualdade! Quem é que não gosta da liberdade e da igualdade? Já o
Salvador pregava a liberdade e a igualdade. Foram os homens mais felizes depois
da Revolução? Pelo contrário, nós é que queríamos a liberdade, e Napoleão foi
quem acabou com ela.
Nos actos de
um homem de Estado é preciso saber distinguir os que ele pratica como simples
particular dos que ele pratica como chefe do exército ou como imperador.
Parece-me da mais elementar justiça.
Se as
pessoas fossem para a guerra só por convicção, não haveria guerra.
Não
compreendo, decididamente não compreendo como é que os homens não podem passar
sem a guerra.
Não, te
cases nunca, nunca, meu amigo; é o conselho que te dou. Não te cases antes de
estares convencido de que fizeste tudo de que eras capaz, antes de teres
deixado de amar a mulher que escolheste, antes de a teres visto bem; sem isso,
enganar-te-ás cruelmente e sem remissão. Casa-te quando fores velho e já não
prestares para coisa alguma... Se o não fizeres, perder-se-á tudo quanto houver
em ti de bom e de grande. Tudo irá por água abaixo. Sim, sim, sim! Não me olhes
com essa cara de espanto. Se estás convencido de que serás capaz de fazer
alguma coisa no futuro, verificarás que tudo acabou para ti, que tudo te está
vedado, salvo o salão onde virás a encontrar-te ao nível de qualquer lacaio ou
de qualquer imbecil... E aqui tens!
Se tu te
ligares a uma mulher, como um forçado com uma grilheta aos pés, perderás toda a
liberdade. E tudo quanto em ti possa haver de esperança e de energia
tornar-se-á um peso morto, que te oprimirá de desgosto.
O egoísmo, a
vaidade, a tolice, a nulidade em tudo, aí tens a mulher quando se mostra tal
qual é. Quando a gente a vê na sociedade, julga que vale alguma coisa, e não
vale nada, nada, nada!
Nas melhores
relações, nas mais amistosas e mais simples relações, a adulação ou os louvores
são coisas indispensáveis, tal qual como o azeite é indispensável nas rodas dos
carros.
Todas estas palavra de honra são coisas
convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa
que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra
e desonra não tenham o mais pequeno significado.
Até agora
tenho sido sempre a amiga íntima dos meus filhos e eles têm sempre confiado em
mim. - E, ao falar assim, caía no erro de muitos pais, persuadidos de que os
filhos não têm segredos para eles.
Em geral
somos sempre mais rigorosos com os filhos mais velhos; pensamos sempre fazer
deles pessoas excepcionais.
- Ana
Mikailovna aqui tens, o dinheiro que precisas para o uniforme do teu filho.
Ana Mikailovna
abraçou-se então à condessa a chorar. A condessa também chorou. Ambas choravam,
porque eram pessoas de bom coração e excelentes amigas de infância e se viam
obrigadas a preocupar-se com essa coisa desprezível que é o dinheiro e ainda
também porque já não eram novas... Mas as suas lágrimas não eram amargas...
Podemos
morrer tranquilamente na nossa cama e nada nos acontecer no campo de batalha.
Neste triste
mundo ninguém pode esperar recompensa, neste triste mundo não há honra nem
equidade. Neste mundo só a maldade e a mentira triunfam.
Era sua
opinião não haver senão duas fontes do vício humano: a ociosidade e a
superstição, e senão duas virtudes: a actividade e a inteligência.
Que coisa
terrível e pavorosa é a ausência! Por mais que eu me diga a mim própria que a
metade da minha existência e da minha felicidade está contigo, que, apesar da
distância que nos separa, os nossos corações estão unidos por laços
indissolúveis, o meu coração revolta-se contra o destino e é-me impossível, não
obstante os prazeres e as distracções que me cercam, vencer uma certa tristeza
oculta que sinto no fundo do coração, desde que nos separámos (…)
Que feliz
és, querida amiga, visto não conheceres alegrias tão grandes e dores tão
pungentes! És feliz, porque estas são geralmente mais fortes do que aquelas.
(…)
Parece-me apenas que o amor cristão, o amor do próximo, o amor pelos nossos
inimigos é mais meritório, mais suave e mais belo que os sentimentos inspirados
pelos lindos olhos de um jovem a uma rapariga poética e amorável como tu.
(…)Tão novo
e já esmagado ao peso de tamanha fortuna, que grandes não irão ser para ele as
tentações deste Se me perguntassem o que eu desejo mais nesta vida, diria que
quereria ser mais pobre que o mais pobre dos indigentes.
Nunca pude
compreender a paixão que têm certas pessoas em perturbar o espírito
consagrando-se a leitura de livros místicos que apenas servem para levantar
dúvidas nas suas almas, exaltando a imaginação e dando-lhes um temperamento
exagerado, em tudo contrario à simplicidade cristã. É bom lermos os Apóstolos e
o Evangelho. Não procuremos compreender o que neles há de misterioso, pois,
como ousaríamos nós, miseráveis pecadores que somos, iniciar-nos nos terríveis
segredos da Providência enquanto estivermos ligados a este despojo carnal que
levanta entre nós e o Eterno um impenetrável véu? Limitemo-nos, pois, a estudar
os princípios sublimes que o nosso Divino Salvador nos confiou para nosso
governo na Terra; procuremos conformar-nos com eles e segui-los; persuadamo-nos
de que quanto mais asas dermos ao nosso fraco espírito humano mais isso agrada
a Deus, que rejeita toda a sabedoria que d’Ele não vem; e que quanto menos
procurarmos aprofundar aquilo que Ele houve por bem esconder do nosso
entendimento, tanto mais depressa Ele no-lo revelará graças ao Seu divino
espírito.
Dir-se-à que
a humanidade esqueceu as leis do seu Divino Salvador, que não fez outra coisa
senão pregar o amor e o perdão das ofensas, para não pensar senão na arte de
nos matarmos uns aos outros.
Como diz Sterne,
«nós gostamos das pessoas menos pelo bem que elas nos fizeram que pelo bem que
lhe fizemos a elas»
Uma das
regras da prudência é prever sempre o pior.
Como vês,
meu velho - comentou -, enquanto não gostamos de alguém é como se estivéssemos
a dormir. Não somos mais que pó... Mas assim que um homem começa a amar, é como
se fosse Deus, sente-se puro, é como nos primeiros dias da Criação...
«Um passo
para além daquela linha que lembra a que separa os vivos dos mortos e eis-nos
no mundo desconhecido do sofrimento e da morte. E lá adiante que é que está? Lá
adiante, para além deste campo e desta árvore e daquele telhado iluminado pelos
raios do Sol? Ninguém sabe e ninguém o deseja saber. Toda a gente tem medo de
transpor aquela linha e ao mesmo tempo há como que uma tentação de o fazer; e o
certo é que todos sabem que mais tarde ou mais cedo haverá que transpô-la e que
conhecer o que lá existe, do outro lado da linha, exactamente como é inevitável
virmos a saber o que fica do outro lado da morte. E no entanto todos nós nos
sentimos fortes, saudáveis, cheios de vida.» Eis o que sente, sem dar por isso,
todo o soldado diante do inimigo, e esta sensação, naquele instante, dá um
brilho particular, um sentimento de rude alegria ao mais pequeno incidente.
No meu
coração e neste sol há tanta felicidade, enquanto que neste lugar.., só há
gemidos, dor, terror, e esta confusão, esta pressa... E lá estão a gritar outra
ordem e todos começam a recuar, correndo, e eu também corro com eles, e ela aí
está, a morte em cima de mim, em volta de mim... Um segundo, e nunca mais verei
este sol...
(…)
garanto-lhe que se fosse possível uma pessoa saber o que acontece depois da
morte, ninguém teria medo de morrer. Temos medo do desconhecido, é o que é. Por
mais que a gente diga que a alma vai para o Céu.., a verdade todos nós sabemos
que Céu é coisa que não existe na atmosfera.
É claro que
ele não costumava dizer de si para consigo, por exemplo: «Este indivíduo é
actualmente uma pessoa poderosa, há toda a vantagem em que eu conquiste a sua
confiança e a sua amizade, para poder vir a tirar daí algum proveito.»
Apresentava-se o indivíduo importante: instantaneamente o seu instinto lhe
segredava que este homem podia ser-lhe útil, e ei-lo que se relacionava com ele
e na primeira ocasião, sem que se tivesse preparado para isso, instintivamente
por assim dizer, lisonjeava-o, tornava-se-lhe familiar, insinuava-lhe algumas
palavras sobre as suas necessidades. (…) Era constantemente atraído para as
pessoas mais poderosas e mais ricas do que ele, e possuía a arte pouco vulgar
de aproveitar o momento favorável para delas extrair o que lhe era vantajoso.
Tinha-se
visto obrigado a receber uma infinidade de pessoas que nunca tinham querido
saber sequer da sua existência e que se teriam mostrado agora muito pesarosas e
ofendidas caso ele, porventura, as não quisesse ver. Todas estas variadas
personalidades: homens de negócios, parentes, conhecimentos, todas se
mostravam, unanimemente, de uma grande amabilidade para com o moço herdeiro,
todas estavam incontestável e evidentemente convencidas das suas altas
qualidades. A cada passo ouvia estas palavras: «com a sua extraordinária
bondade», ou então: «uma pessoa de coração tão excelente», ou: «o senhor, que tem
uma tão bela alma, conde...», e outras coisas do mesmo género. E de tal maneira
que, no fim de contas, principiou a acreditar sinceramente na sua
extraordinária bondade, na sua extraordinária inteligência, tanto mais que no
fundo do seu coração sempre se julgara muito bom e muito inteligente. Até mesmo
as pessoas que anteriormente se tinham mostrado para com ele malévolas ou
hostis agora eram todas ternura e amabilidade.(…) Agora tudo quanto ele
dissesse, fosse o que fosse, imediatamente era considerado encantador.
As duas
mulheres deram-se sinceramente ao trabalho de a embelezar. Tão pouco bonita era
que nenhuma delas se lembraria de a considerar como rival; e foi francamente
por isso, com essa convicção sólida e ingénua das mulheres no poder que tem a toilette para as fazer belas, que se
puseram a vesti-la.
(…) Que
importância poderiam ter todas essas misérias ao pé dos desígnios de Deus,
d’Aquele sem a vontade do qual nem um só cabelo pode cair da cabeça do homem?
Anatole nem
era inventivo nem de compreensão rápida, nem sequer eloquente a conversar, mas
tinha, no entanto, uma qualidade preciosa em sociedade: serenidade e segurança,
uma segurança que nada seria capaz de abalar. Quando um homem pouco seguro de
si se cala a primeira vez que vê alguém, com plena consciência do que há de
indecoroso no seu silêncio e dando tratos à imaginação para encontrar um tema
de conversa, o efeito não é bom.(…)«Se o meu silêncio os incomoda, porque não
falam? Cá por mim, não me interessa» Dir-se-ia
proclamar: «Ah, sim, eu conheço-vos muitíssimo bem, muitíssimo bem, mas
para que me hei-de eu incomodar com isso? Grande prazer lhes dava, está
claro!»….
Por uma
tendência característica da juventude, que detesta os caminhos trilhados, não
quer imitar o que está feito, antes, pelo contrário, gosta de exprimir os seus
sentimentos de maneira nova, a seu modo, desde que, pelo menos, não seja como o
costumam fazer as pessoas de idade, muitas vezes, aliás, pouco sinceramente.
Entre a
infantaria e a cavalaria vinha a artilharia, com longas colunas de canhões bem
polidos e reluzentes, que estremeciam sobre as rodas, num trepidar metálico, de
mechas acesas, dirigindo-se para os locais designados. Os generais, de grande
uniforme, corpulentos e muito cingidos, para darem a impressão de mais magros,
a nuca apertada nas golas, com as bandas e todas as condecorações; os oficiais,
rebrilhantes e janotas; os soldados, de cara barbeada e lavada, com o seu
correame a brilhar; os cavalos, bem arreados e nédios, brilhavam como cetim, as
crinas alisadas pêlo a pêlo, tudo, numa palavra, dizia ir passar-se um
acontecimento importante e solene, que nada tinha de brincadeira. Generais e
soldados sentiam não serem nada, não passarem de grãos de areia de um oceano
humano, bem conscientes da sua força enquanto elementos daquele todo imenso.
Também ele
sentia o que todos os demais soldados sentiam: olvido de si próprio, orgulho de
um tal poder, entusiasmo apaixonado por aquele que era o objecto de tamanho
triunfo:
«Uma só
palavra daquele homem- o Imperador», pensava, «e aquela massa inteira, de que
ele não era mais que uma ínfima partícula, lançar-se-ia ao fogo ou à água,
precipitar-se- ia no crime ou na morte, praticaria os mais heróicos actos.»
É bom para o
Rostov, a quem o pai manda seis mil rublos de uma assentada, isso de se não
querer vergar diante de quem quer que seja, de não querer ser lacaio de
ninguém. Mas eu, que só comigo posso contar, tenho de tratar da vida e de não
perder as boas oportunidades.
E o tagarela
do Dolgorukov, dirigindo-se ora a Bóris ora ao príncipe André, contou que
Bonaparte, querendo experimentar o embaixador russo Markov, deixara cair de
propósito o lenço na sua presença e ficara à espera que Markov o apanhasse.
Então este deixara cair também o seu lenço ao lado do de Bonaparte e, apanhando
o seu, não tocara no do imperador.
- Encantador
- disse o príncipe André.
E Rostov,
erguendo-se, pôs-se a deambular pelo meio do acampamento e a sonhar com a
felicidade que seria para ele morrer, não para lhe salvar a vida a ele, coisa
em que nem sequer ousava pensar, mas simplesmente morrer diante do imperador.
Realmente, era um facto: estava apaixonado pelo seu czar e pela glória dos
exércitos russos, e todo ele era esperança num triunfo próximo. E o certo é que
nem só Rostov experimentava tais sentimentos nos memoráveis dias que precederam
a batalha de Austerlitz: noventa mil homens estavam igualmente apaixonados,
embora não no mesmo grau, pelo czar e pela glória dos exércitos russos.
O movimento
que de manhã se concentrara no quartel-general dos imperadores e que
impulsionara tudo o mais fazia lembrar o da roda motriz de qualquer relógio
monumental. Lentamente uma das rodas põe-se em movimento, depois outra, e uma
terceira começa a girar, e cada vez mais depressa entram em movimento
engrenagens, eixos e roldanas; retinem as campainhas, as figurinhas desfilam e
os ponteiros principiam a mover-se regularmente: este o resultado final.
Tal qual o
mecanismo de um relógio, a máquina militar tem de ir até ao fim desde que se
verifique o primeiro movimento e também se conserva imóvel até ao momento em
que o impulso inicial atinge as engrenagens até aí insensíveis. As rodas rangem
nos eixos, as charneiras encadeiam-se, os carretes, graças à rapidez da
rotação, gemem, enquanto a roda vizinha se mostra tão tranquila, tão imóvel
como se essa imobilidade fosse para durar centenas de anos. O momento chega,
porém: um dente apanhou-a, e, obediente ao resto, range, rodando, fundindo-se
na acção geral cujo resultado e cuja finalidade se lhe mantêm desconhecidos.
Da mesma
maneira que no relógio o movimento distribuído por inúmeras e diferentes
engrenagens e roldanas entra numa lenta deslocação, assim as múltiplas
evoluções daqueles cento e sessenta mil russos e franceses, o amálgama de todas
aquelas paixões, de todos aqueles desejos, de todos aqueles pesares, de todas
aquelas humilhações, de todas aquelas dores, de todos aqueles acessos de
orgulho, de medo, de entusiasmo, não vieram a ter por resultado senão o
desastre de Austerlitz, aquela batalha que passou à história como a dos três
imperadores, quer dizer, uma deslocação insensível da agulha da história
universal no quadrante da história da humanidade.
Não, não
devemos esquecer Stivorov e os seus
princípios: nunca nos colocarmos na posição de atacados, mas de atacantes.
(…) como um
moleiro que desperta em sobressalto ao deixar de ouvir o ruído sonolento das
rodas do moinho, prestou atenção às palavras (…)
Nunca o
direi a ninguém, mas, meu Deus, que hei-de eu fazer se a única coisa a que
realmente aspiro é a glória e a idolatria dos homens! A morte, os ferimentos, a
perda da minha família, nada me mete medo. Por mais queridas que me sejam todas
estas pessoas, meu pai, minha irmã, minha mulher, e outros, outros mais, por
mais que os estime, e ainda que isso possa parecer terrível e contra a
natureza, a todos estou pronto a sacrificar por um minuto de glória, por um
instante de triunfo, pelo amor que inspirarei a pessoas que não conheço e a
quem nunca conhecerei, pelo amor, precisamente, dessas mesmas pessoas. (…) E
apesar de tudo só uma coisa me interessa, só uma coisa me absorve: o desejo de
triunfar sobre todos; só me interessa esta força misteriosa, esta glória que eu
sinto pairar aqui por cima de mim, no meio desta neblina!
Como é que
eu nunca tinha visto isto, este céu sem limites? E que feliz me sinto de o ver
finalmente. Sim, tudo é vaidade, tudo é mentira, à excepção deste céu sem fim.
Não há nada, absolutamente nada, além dele. E até mesmo isto não existe, nada
existe senão a calma e o repouso. E Deus louvado seja por isso mesmo!...
(…) André
compreendeu que era dele que estavam a falar e que era Napoleão quem falava.
Tinha ouvido chamar sire à personagem de quem se tratava. Mas as palavras
afloravam-lhe os ouvidos como se fossem zumbidos de moscas. Não só lhe não
interessavam como lhes não prestava a mais pequena atenção, e breve lhe
abandonaram o espírito. A testa escaldava-lhe, sentia que o sangue se lhe ia
esvaziando das veias, e continuava sempre a ver o céu longínquo, profundo e
eterno. Sabia Napoleão ali. Napoleão, o seu herói, e naquele instante Napoleão,
em comparação com o drama que se desenrolava entre a sua alma e aquele céu
profundo, sem limites, em comparação com aquelas nuvens que fugiam, parecia-lhe
perfeitamente insignificante. Naquele instante era absolutamente indiferente
aquele que se, debruçava sobre ele, aquele que falava dele; mas estava contente
com o facto de aqueles homens se haverem detido, e apenas desejaria que eles o
socorressem e o fizessem regressar àquela vida que tão bela lhe parecia desde
que a compreendia de outra maneira. Chamou a si todas as suas forças para
conseguir fazer um movimento e articular alguns sons. Agitou debilmente a perna
e despediu uma queixa fraca e dolorosa, que acordou em si próprio um sentimento
de piedade.(…)
(…)- Como é
que se sente, meu valente?(…) André calava-se com os olhos fixos em Napoleão.
Afiguravam-se-lhe tão medíocres naquele momento os interesses que preocupavam o
imperador, o próprio herói que lhe parecia tão insignificante, com a sua
vaidade mesquinha e a alegria da vitória, quando comparava tudo isto ao
espectáculo daquele céu imenso, pleno de justiça e, de bondade, cuja grandeza
compreendera, que lhe era impossível responder. E, com efeito, tudo lhe parecia
inútil, miserável, ao pé dos pensamentos severos e sublimes que o esgotamento
das forças lhe provocara após a efusão de sangue, as dores e a, expectativa de
uma morte próxima. Ao mergulhar o seu olhar no de Napoleão, pensava na vaidade
da grandeza, na insignificância da vida, cujo sentido ninguém podia
compreender, e ainda mais na da morte, cujo significado se conservava
ininteligível e impenetrável a todos os vivos.
O imperador deu meia volta sem esperar
resposta(…)
«Que
felicidade», dizia ele de si para consigo, fitando a imagem que a irmã lhe
confiara com tanta emoção e piedade, «que felicidade, se tudo fosse tão claro e
simples como a Maria imagina! Que felizes seríamos sabendo a quem pedir auxílio
nesta vida e o que nos espera depois, para além do túmulo! Como eu seria, feliz
e que tranquilo eu me sentiria se neste momento pudesse dizer: Senhor, tende
piedade de mim!... Mas a quem hei-de eu dirigir esta oração? Será esta força
indefinível, incompreensível, a que não só me não posso dirigir, mas que nem
mesmo posso exprimir por palavras, o grande todo ou o nada, ou então esse Deus
representado nesta medalha que me deu Maria? Não há nada, nada certo, além do
pouco valor de tudo quanto eu posso compreender e da sublimidade desse
incompreensível que ultrapassa toda a grandeza!»
O elogio de
um grande capitão é a melhor recompensa de um soldado.
(…) Mas
assim como um jovem enamorado, trémulo e comovido, não ousa exprimir os
sentimentos que lhe povoaram as noites, e lança em volta de si olhares
assustados como que à procura de auxílio ou da maneira de adiar ou de fugir
quando chega o almejado instante em que finalmente se encontra a sós com ela
(…)
Ela era
muito bonita, muito gentil, e, claro, amava-o apaixonadamente; mas ele
atravessava então aquele período da juventude em que o homem parece ter tanta
coisa a fazer que lhe falta tempo para se ocupar de ninharias, com que receia
prender-se, e estima antes de mais nada a liberdade, que lhe é indispensável
para tudo o mais.
Na expressão
destes jovens, especialmente dos militares, havia um matiz de deferência assaz
desdenhosa para com os velhos. Pareciam dizer-lhes: «Não nos recusamos a
manifestar-vos respeito e consideração, mas ficai sabendo que o futuro é
nosso.»
Ali, como de
resto em toda a parte, cercava-o uma multidão que dobrava a cerviz diante da
sua riqueza, enquanto ele, habituado a reinar, a todos tratava com uma
menosprezadora indiferença.
Pela idade
devia estar junto dos jovens, mas pela fortuna fazia parte da roda dos velhos,
das pessoas respeitáveis.
Os trezentos
convivas tomaram lugar à mesa consoante a sua classe e as suas prerrogativas,
os mais nobres mais perto do conviva homenageado: coisa facilmente
compreensível, aliás, pois a água corre sempre para onde o solo é mais baixo.
«É um facto.
Sentiria um prazer muito especial em desonrar o meu nome e em troçar de mim,
precisamente por eu ter dado alguns passos em seu favor e de lhe ter
testemunhado a minha protecção e o meu auxílio. Eu sei, eu compreendo o sabor
que isso lhe acrescentaria à traição, se fosse verdade o que se diz.
Devemos ser
amáveis para com os maridos das bonitas mulheres.
Olha, em
duas palavras vou revelar-te o segredo do duelo. Se na véspera de um duelo
escreveres o teu testamento e redigires cartas emocionantes aos teus parentes,
se pensares na hipótese de poderes ser morto, é que és um imbecil e estás
perdido. Se, pelo contrário, fores para esse duelo com firme intenção de matar
o teu adversário, e o mais cedo e o melhor que puderes, tudo correrá às mil
maravilhas. Era o que me dizia o nosso matador de ursos de Kostroma. «Quem é
que não há-de ter medo de um urso?», dizia ele. «Mas quando a gente põe os
olhos no bicho, adeus medo, e aí estamos nós prontos a fazer tudo para que a
fera se nos não escape.» Pois bem, eu, nestes casos, é o que costumo fazer.
É muito mais
nobre reconhecermos os nossos erros do que praticarmos um acto irreparável.
«Mas em que
é que procedeste mal?», perguntava ele a si próprio. «Nisto apenas: em seres
casado sem amor; em que a enganaste enganando-te a ti próprio.»
Valerá a
pena atormentar-se uma pessoa quando a vida não é mais que um segundo
relativamente à eternidade?
Ninguém
gosta da virtude, que ofusca toda a gente.
Quem é que
no nosso tempo não é vítima de intrigas?
Consideram-me
má pessoa - dizia. - Está bem, suponhamos que sou assim. Não quero conhecer
senão as pessoas a quem estime e por essas sou capaz de dar a própria vida.
Quanto aos demais a esses era capaz de os esmagar a todos se os viesse a
encontrar no meu caminho. Tenho uma mãe a quem idolatro, de quem não sou digno,
dois ou três amigos, no número dos quais conto, e, quanto aos outros, esses
apenas os considero na medida em que me podem ser úteis ou nefastos. E quase
todos eles são prejudiciais, especialmente as mulheres. Sim, meu velho -
prosseguia ele -, tenho encontrado homens dignos, de sentidos nobres e
elevados. Mas entre as mulheres, até hoje, só encontrei criaturas que se
vendem, e, quer sejam condessas ou cozinheiras, é o mesmo. Ainda não encontrei
essa pureza celeste, essa dedicação que procuro na mulher. Se um dia
encontrasse uma mulher assim, era capaz de dar a vida por ela. Quanto às que eu
conheço... - Teve um gesto de desprezo. - E, acredita, se me interessa viver, é
apenas na esperança de ainda vir a encontrar essa criatura celeste, que me
regenerará, me purificará, me resgatará.
(…)
«Aproveita estes momentos de felicidade, ama e sê amado! Esta é a única coisa
real no mundo; o resto é tolice. Só isso deve interessar», eis o que parecia
aconselhar aquela atmosfera poética e sentimental.
Devemos
experimentar a sorte ou jogar para ganhar?
(…) Oh!,
como aquela nota tinha vibrado, e que comovido se sentiu no mais íntimo da sua
alma. E era como se estivesse separado do mundo inteiro, como se estivesse mais
alto que o mundo todo. «O que vale ao pé disto o que se perde ao jogo e todos
esses…. e todas as palavras empenhadas?... Tudo isso não passa de fatuidade!
Uma pessoa pode assassinar, roubar, e no entanto sentir-se feliz...»
«O que é o
mal? O que é o bem? Que devemos nós amar? Que devemos odiar? O que é a vida? O
que é a morte? Que forças dirigem tudo isto?» E não havia resposta a qualquer
destas perguntas, salvo uma resposta ilógica, que não explicava coisa alguma.
Esta resposta era: «Um dia hás-de morrer e tudo acabará. Tu morrerás e saberás
tudo ou deixarás de formular estas perguntas.» Mas morrer era uma coisa
horrível.
Nada foi
inventado. Apenas podemos saber que não sabemos nada. E este é o mais alto grau
da sabedoria humana.
Nunca me
atreveria a afirmar que estou na posse da verdade - voltou o Mação, que cada
vez impressionava mais o interlocutor com a nitidez e a firmeza das suas
palavras - Ninguém só por si pode atingir a verdade. Só pedra a pedra, com o
concurso de todos, graças a milhões de gerações, desde o nosso primeiro pai. Adão,
até hoje, se vai erguendo o templo digno de ser habitado pelo Grande Deus -
acrescentou, cerrando os olhos.
Existe, mas
é difícil compreendê-l’O - recomeçou, sem olhar de frente o interlocutor. Se se
tratasse de um homem de cuja existência tu duvidasses, eu trazer-te-ia esse
homem, pegar-lhe-ia pela mão e mostrar-to-ia. Mas como é que eu, miserável
mortal, saberia mostrar a Sua força todo poderosa, a Sua eternidade, a Sua
misericórdia infinita àquele que é cego, ou àquele que tapa os ouvidos, ou
àquele que fecha os olhos para O não ver, para O não compreender e para não ver
e para não compreender a sua própria miséria, a sua própria corrupção? - Ficou
um momento calado. - Quem és tu? Que és tu? Julgas-te um (…)- prosseguiu ele,
com um sorriso amargo e desdenhoso - e ainda és mais tolo o mais insensato do
que o garoto que se entretém com o movimento artisticamente combinado de um
relógio e que seria capaz de dizer que pelo facto de não compreender a
finalidade de todas aquelas engrenagens também não acredita no artista que o
fez. Conhecê-lo é difícil... Durante séculos, desde o nosso primeiro pai. Adão,
até aos nossos dias, trabalhámos nessa ciência e ainda estamos muito longe do
fim a alcançar: mas é nesta impossibilidade que se revelam a nossa fraqueza e a
Sua grandeza.
Não se chega
lá pela inteligência, mas pela experiência da vida.
A suprema
sabedoria e a verdade são como um orvalho muito puro de que nós gostaríamos de
nos sentir repassados. Poderei eu recolher este puro orvalho num vaso impuro e
pensar que ele é a própria pureza? Só graças a uma redenção interior poderei
fazer que este orvalho que eu venha a recolher em mim tinja um certo grau de
pureza.
A sabedoria
suprema não se baseia apenas na razão, nas ciências profanas como a física,na
história, na química e noutras em que o conhecimento intelectual está dividido.
A sabedoria suprema é una. A sabedoria suprema só conhece uma ciência - a
ciência do todo, a ciência que explica toda a criação e o lugar que o homem
ocupa. Para instilar esta ciência em nós próprios temos de purificar e de
renovar o nosso eu interior, e assim, antes de conhecermos, devemos crer e
tornarmo-nos perfeitos. E para atingirmos esta finalidade há no interior da
nossa alma luz divina, que é a consciência.
Contempla
com os olhos da alma o teu ser interior e pergunta a ti mesmo se estás contente
contigo. Onde é que chegaste guiado apenas pela inteligência? Quem és tu? É
novo, rico, inteligente, cultivado, meu caro senhor. Que fez de todos estes
bens que lhe foram concedidos? Está contente consigo e com a sua existência?
Odeia-la?
Então transforma-a, purifica-te, e, à medida, que te fores purificando,
conhecerás a sabedoria. Lance um olhar à sua existência, meu caro senhor. Como
é que a passou? Em orgias e no deboche. Tendo recebido tudo da sociedade e sem
nada lhe restituir, adquiriu a riqueza. Que uso fez dela? Que fez pelo próximo?
Já pensou nas dezenas de milhares dos seus escravos? Ajudou-os, porventura,
física e moralmente? Não. Tirou benefício do seu trabalho para levar uma vida
desregrada. Eis o que o senhor fez. Escolheu porventura uma profissão em que
fosse útil ao próximo? Não. Tem passado a vida inteira ocioso. Em seguida, veio
o casamento, meu caro senhor, e o senhor assumiu a responsabilidade da conduta
de uma mulher. E que fez? Não a ajudou a procurar o caminho da verdade e
arrastou-a para o abismo da mentira e da infelicidade. Um homem ultrajou-o e o
senhor procurou matá-lo, e é o senhor quem diz agora que não acredita em Deus e
que odeia a, sua própria existência. Não há nada de estranho em tudo isso, meu
caro senhor!
O reitor
comunicou ao recipiendário as sete virtudes, correspondentes aos sete degraus
do templo de Salomão, que cada mação deve cultivar em si próprio. Estas
virtudes eram as seguintes: 1ª A modéstia, que guarda os segredos da ordem; 2ª
A obediência aos seus superiores; 3ª Os bons costumes; 4ª O amor da humanidade:
5ª A coragem; 6ª A generosidade, e 7ª O amor da morte.
- Em sétimo
lugar - disse-lhe o reitor - esforçai-vos, pensando muitas vezes na morte, por
chegar a encará-la não como uma inimiga terrível, mas como uma amiga.., que
liberta desta vida de misérias a alma atormentada pelos trabalhos da virtude
para a introduzir na mansão da recompensa e do repouso.
(…)«Nos
nossos templos», dizia o grão-mestre, «não conhecemos outros graus além
daqueles que separam a virtude do vício. Evita oposições que possam destruir a
igualdade. Corre em auxílio do teu irmão, seja ele quem for, ajuda aquele que
se extraviar, levanta aquele que cair e jamais nutras cólera ou ódio contra o
teu irmão. Sê amável e afável. Alimenta em todos os corações a chama da
virtude. Partilha a felicidade que tiveres com o teu próximo e que a inveja não
perturbe nunca esta bem-aventurança. Perdoa ao teu inimigo, e vinga-te dele
fazendo-lhe bem. Desde que cumpras assim a lei suprema voltarás a encontrar os
trilhos da tua antiga grandeza perdida.»
A fonte da
felicidade não está fora de nós, mas em nós mesmos...
Como sempre
acontece depois de uma longa separação, não foi fácil encetarem desde logo uma
boa conversa. As perguntas e as respostas eram breves, posto abordassem
assuntos de que tanto um como outro estavam certos de ser dignos de mais larga
explanação. Mas, por fim, voltaram a tratar dos assuntos a que apenas se haviam
referido abreviadamente: o passado, os seus planos de futuro, a viagem de
Pedro, as suas ocupações, a guerra, etc.
Ao homem não
compete decidir do que é justo ou do que o não é. O homem sempre errou e sempre
há-de errar, e principalmente naquilo que ele considera justo ou injusto.
Tu viveste
para ti e entendes que vivendo assim ias malogrando a tua vida e que não
soubeste o que era felicidade senão no dia em que começaste a viver para os
outros. Eu, por mim, fiz a experiência contrária. Vivi para a glória. E o que é
a glória? É também o amor do próximo, o anseio de fazer alguma coisa por ele, o
desejo de merecer os seus louvores. Quer dizer que eu vivi para os outros e que
não só estive em risco de comprometer a minha existência, como a malogrei, de
facto, completamente. Eis porque, de então para cá, desde que não vivo senão
para mim, passei a ter uma vida mais serena.
- Mas como é
possível viver-se só para si? - interrogou Pedro, cada vez mais exaltado.
- E seu
filho, sua irmã, seu pai?
- Continuam
a ser eu, não são os outros - replicou André. - Os outros, o próximo, como
dizem, são a causa principal do erro e do mal. O próximo são esses camponeses
de Kiev a quem tu queres fazer bem.
- Onde é que
pode haver erro e mal no desejo que há em mim de praticar o bem? E se eu não
fizer quase nada, e mal, a minha boa intenção lá está sempre, e, seja como for,
sempre fiz qualquer coisa. Que mal é que pode haver em ensinar aos desgraçados
dos nossos camponeses, homens como nós, que vivem e morrem sem outra noção de
Deus e da verdade que não sejam ritos vãos e orações sem qualquer significado
para eles, que mal é que pode haver em ensinar-lhes a consoladora crença numa
vida futura, numa recompensa proporcional aos seus actos, num alívio das suas
dores? Que mal, que erro é que haverá em impedir que os homens morram de doença
sem qualquer socorro, quando é tão fácil auxiliá-los materialmente, arranjando
para eles remédios, hospitais e asilos onde acabem os seus tristes dias? E não
será um bem palpável e incontestável que eu procure descanso e alívio no
trabalho para o camponês e para a mulher que amamenta o seu filho, pobres deles
que não sabem o que seja repouso nem de noite nem de dia?... - E não só ninguém
me dissuadirá de que não foi um bem o que eu pratiquei, como ninguém me convencerá
de que o André não pensa da mesma maneira. E o mais importante - concluiu - e é
isso que eu sei, e disso estou convencido, é que a única verdadeira felicidade
da vida é a satisfação que se tira do bem que se faz.
- Sim, se se puser assim o problema, é outra
coisa - disse o príncipe André. - Eu construo uma casa, planto um parque, tu
fundas hospitais. Tanto o meu acto como o teu podem ser considerados mero
passatempo. Mas, quanto ao que é justo, ao que é o bem, deixa Aquele que tudo
sabe, e não a nós, o cuidado de o decidir.
Tu dizes: escolas, instrução e tudo o mais - continuou, contando pelos
dedos -, isso quer dizer que tu queres tirar aquele - apontou para um camponês
que ia passando e os saudou - do seu estado animal e dar-lhe o sentido das
necessiddes morais. Pois eu penso que a sua única felicidade possível é a
felicidade animal, e tu queres privá-lo disso. Invejo-o, e tu, tu queres
torná-lo eu, sem lhe dares, aliás, todos os meus recursos. Em segundo lugar, tu
dizes: aliviemo-lo do seu trabalho. Mas, na minha opinião, o trabalho físico,
para ele, é uma necessidade, uma condição da sua existência, tal qual como para
ti o trabalho intelectual. Tu, tu não podes deixar de pensar. Eu deito-me às
três horas da manhã e tanta coisa me vem à cabeça que não posso conciliar o
sono. Revolvo-me na cama, fico sem dormir até alta madrugada, apenas porque
penso, e não posso deixar de pensar; da mesma maneira que ele não pode deixar
de lavrar ou de ceifar. Sem isso iria para a taberna e ficaria doente. Assim como
eu não poderia suportar o seu tremendo trabalho físico - bastavam oito horas
para me matar -, ele não suportaria a minha ociosidade física, tanto engordaria
que acabaria por morrer. Em terceiro lugar, os hospitais, os medicamentos.
Suponhamos que ele tem uma apoplexia. Tu sangra-lo e ele cura-se. Ficará dez
anos entrevado, um tropeço para toda a gente. Seria muito melhor e muito mais
simples morrer. Outros virão a este mundo e há sempre gente de sobra. Se ao
menos tu lamentasses perder um trabalhador encarando o problema como eu, mas tu
queres tratá-lo por amor dele próprio. Ele não precisa disso. E, de resto, que
ilusão a tua ao pensares que a medicina já curou alguém! Que tem morto muita
gente é um facto!
- Ah!, é
terrível!, é terrível! - disse Pedro. - Não posso compreender que se viva com
semelhantes ideias. Sim, confesso que tenha passado por fases semelhantes ainda
não há muito tempo, em Moscovo e em viagem. Mas nessas alturas sinto-me de tal
modo arrasado que é como se deixasse de viver; tudo me é odioso.., a começar
por mim próprio. Então deixo de comer, deixo de me lavar... E a si. André, que
lhe acontece?
- Porque hei-de eu desleixar-me? Isso não é
próprio. Pelo contrário, acho que devemos procurar tornar a nossa existência o
mais agradável possível. Estou vivo, e a culpa não é minha, por isso é bom que
continue a viver o melhor que puder, sem incomodar ninguém, até à hora da
morte.
- Mas que o
leva a ter semelhantes ideias? Está disposto, então, a ficar assim, sem se
mexer, sem qualquer iniciativa...
- A vida se
encarrega de nunca nos deixar em repouso. Ficaria encantado se nada tivesse que
fazer, mas deu-se o caso de a nobreza da região me ter dado a honra de me
escolher para seu marechal: só eu sei quanto me custou ver-me livre dessa
gente. Não havia meio de perceberem que eu era completamente destituído dos
predicados necessários para o desempenho de tal cargo, que me faltava essa
espécie de vulgaridade parrana e buliçosa, a qualidade mais apreciada nas
pessoas nessa situação. E, ainda por cima, tenho esta casa, que foi preciso
construir para ter umas telhas minhas que me cubram e onde eu possa viver em
paz. E agora a milícia.
- E porque é
que não voltou para a tropa? - Depois de Austerlitz?
- Não,
graças a Deus! Jurei a mim mesmo não voltar a servir no activo. E estou
disposto a não o fazer. Ainda mesmo que Bonaparte aqui aparecesse, eu não
voltaria a pegar em armas. Sim, como te dizia - prosseguiu ele, serenando,-
agora estão a mobilizar a milícia, meu pai é o comandante - chefe da 3ª região
e a única maneira que eu tenho de evitar o regresso ao meu posto é estar ao seu
serviço.
- Quer dizer, portanto, que continua a prestar
serviço.
- Sim, continuo. Calou-se por alguns
instantes.
- E quais
são, em rigor, as suas funções?
- É simples.
Meu pai é um dos homens mais notáveis da sua época. Mas está velho e, embora
não possamos dizer que é uma pessoa dura, é facto que tem um carácter muito
impetuoso. O hábito em que está de dispor de um poder sem limites torna-o
terrível, principalmente agora, que depende, como chefe da milícia,
directamente do imperador. Há uns quinze dias, se eu tenho chegado duas horas
mais tarde, tinha mandado enforcar um escriba em Iuknov - acrescentou André com
um ligeiro sorriso. - E então presto serviço porque ninguém a não ser eu tem
influência sobre meu pai, e será esta a única maneira de evitar que ele cometa
qualquer acto de que mais tarde viria a sentir remorsos.
- Então, como vê...
- Sim, mas
não é como o senhor pensa! - prosseguiu André. - Não tinha nem tenho qualquer
sentido de benemerência para com esse canalha desse escriba, que roubara uns
pares de botas aos milicianos. Teria sentido mesmo um grande prazer em vê-lo
enforcado, mas tive pena de meu pai, isto é, de mim próprio. - Com que então,
queres dar carta de alforria aos teus camponeses! óptimo! Mas não vejo que isso
seja um bem, quer para ti, pois estou convencido de que nunca açoitaste fosse
quem fosse nem nunca mandaste ninguém para a Sibéria, quer muito menos para os
teus camponeses. De resto, quando acontece baterem-lhes, açoitarem-nos,
deportarem-nos para a Sibéria, não creio que venham a sentir-se pior por isso.
Na Sibéria continuam a mesma vida animal. E, quanto aos açoites, acabam por se
curar das feridas e não ficam por isso mais infelizes do que anteriormente. Mas
aqueles para quem eu julgo necessária a liberdade são os que moralmente estão
perdidos, os carregados de remorsos, os que fazem tudo para calar a voz da
consciência, os que se endurecem no abuso que cometem do seu direito de punir,
justa ou injustamente. Eis os que lamento e no interesse de quem gostaria de
ver libertar os servos. Tu, naturalmente, nunca conheceste qualquer, mas eu
tenho tratado com criaturas muito dignas, educadas na tradição do poder sem
limites, que, com o correr dos anos, se tornaram irritáveis, se fizeram duras e
cruéis; conscientes disso, mas sem se poderem dominar, acumulam assim sobre si
próprias desgraças sobre desgraças. Sim, isto é que me inspira piedade: a
dignidade do homem, a tranquilidade da consciência, a pureza da alma
comprometida, e não as costas e as cabeças dos outros, pois, quer as açoitem,
quer as tosquiem, nem por isso deixam de ser costas e cabeças (Tosquiar alguém é fazê-lo assentar praça.
(N, dos T.)
(…)- Acha
que lhe é impossível ver o reino do bem e da verdade sobre a terra. Também eu
não acreditava em tal coisa e não é possível admiti-lo se se considerar a nossa
vida como o fim de tudo. Sobre a terra, principalmente sobre a terra - dizia
ele, apontando para os campos -, não há verdade: tudo é mentira e maldade. Mas
no universo, no conjunto do universo é a verdade que reina. Nós somos por um
momento filhos da terra, mas eternamente somos filhos do universo. Não sentirei
eu, no fundo da minha alma, que sou uma parte deste todo, enorme e harmonioso?
Não sentirei eu que nesta imensa e infinita quantidade de seres, através da
qual se manifesta a divindade ou a suprema força, o que vem a dar no mesmo, eu
sou um fuzil, um degrau da escada dos seres que vai do mais ínfimo ao mais
elevado? Se eu vejo, se vejo claramente esta escada que vai da planta até ao
homem, porque é que eu hei-de partir do princípio de que ela se detém
precisamente em mim em vez de alcançar sempre mais longe, cada vez mais longe?
Eu sinto em mim que, pela mesma razão de que nada se perde no universo, também
eu não posso desaparecer e que continuarei a ser para todo o sempre como sempre
tenho sido. Sinto que além de mim e para além de mim há espíritos vivos e que é
nesse universo que reside a verdade.
- Sim, é a
doutrina de Herder - interveio André. - Mas, meu caro, não é essa doutrina que
me convence: a vida e a morte, sim. O que me convence é ver uma criatura a quem
queremos muito, a quem muito estamos presos, para com quem nos sentimos
culpados e de que esperamos remir o mal que lhe fizemos - e ao dizer estas
palavras a sua voz tremia e desviava a vista - e que de um momento para o outro
começa a sofrer, a padecer tremendas dores e deixa de existir... Porquê? É
impossível que não haja uma resposta para isto! E eu estou convencido de que há...
Eis o que me convence, eis o que me convenceu - concluiu ele.
- Claro,
claro - repetiu Pedro. - Mas não é isso precisamente que eu estive a dizer?
- Não. O que eu quero dizer é que não são os
raciocínios que me convencem da necessidade duma vida futura, mas este facto
apenas: o de irmos pela vida fora de mão dada com um ser humano, e este ser, de
repente, desaparecer além, no nada, e então determo-nos diante desse abismo e
ficarmos a olhar. E eu, eu olhei...
- E então? Sabe que há um além, que há alguém.
Além é a vida futura. Esse alguém é Deus. Se Deus existe, se há uma vida
futura, a verdade existe, existe a virtude, e a suprema felicidade do homem
consiste no esforço para as alcançar. É preciso viver, é preciso amar, é
preciso crer, pois não vivemos apenas nesta hora, sobre este pedaço de terra,
mas sempre vivemos e eternamente havemos de viver, além, no Todo.- E apontava
para o céu.
(…)- Sim, se
ao menos assim fosse! - exclamou. - Vamos, o carro espera-nos. - E, pondo os
pés em terra, soergueu os olhos para o céu que Pedro lhe apontara e, pela
primeira vez depois de Austerlitz, tomou a ver aquele céu profundo e eterno, o
céu que havia contemplado estendido no campo de batalha, e sentimentos há muito
nele adormecidos, melhores sentimentos, despertaram subitamente na sua alma,
como numa ressurreição de alegria e juventude. Entregues aos hábitos
quotidianos da vida, todas as suas tendência íntimas se haviam desvanecido
pouco a pouco, mas, embora não tivesse sabido nutri-las, o certo é que
continuava a senti-las vivas dentro de si. Desta sua conversa com Pedro passou
a datar uma vida que, se exteriormente parecia a mesma, no seu foro íntimo
passara a ser completamente nova.
A única
maneira, de acabarem as guerras é sangrar os homens e porem-lhe água no lugar
do sangue.
Rostov
ficara mal disposto desde que à entrada vira a expressão contrariada que
aflorara ao rosto de Bóris e, como sempre acontece às pessoas em tal estado de
espírito, desde logo se lhe afigurou que toda a gente lhe era hostil e que estava
ali a servir de estorvo.
A reflexão
faz dos homens criaturas secas.
Fazer leis é
fácil, mas governar é bem mais difícil.
Como é
vulgar nas pessoas habituadas a julgar severamente o próximo, quando se tratava
de alguém de reputação, tendia sempre a encontrar nesse alguém uma súmula de
todas as perfeições humanas.
A honra não
pode ser mantida por privilégios prejudiciais ao bom andamento dos negócios
públicos, de que a honra ou é a noção puramente negativa da abstenção de actos
censuráveis ou um certo estimulante capaz de nos levar a conquistar a aprovação
ou as recompensas em que esta se traduz.
Speranski,
na presença do príncipe, exibia um juízo sereno, isento de parcialismo, e
mostrava-lhe essa lisonja subtil, à mistura com uma certa presunção, que
consiste em um homem reconhecer tacitamente que o seu interlocutor e ele
próprio são as únicas pessoas capazes de compreender quão néscios são os demais
e sensatas e profundas as suas próprias ideias, as ideias só deles os dois.
Ao entrar
para a franco-maçonaria tivera a impressão de pousar o pé confiante na
superfície lisa de um pântano. E, mal o pousara, logo se sentira afundar. Para
melhor experimentar a solidez do terreno, avançara o outro pé e enterrara-se
ainda mais, atolara-se, e agora patinhava, mergulhado até aos joelhos na lama
do pântano.
Todos os
membros das lojas eram indivíduos com quem Pedro privava na sociedade e era-lhe
difícil ver neles só irmãos maçónicos, esquecendo serem também o príncipe B, ou
Ivan Vassilievitch D., criaturas que ele geralmente conhecia por fracos
caracteres e pessoas sem valor moral. Por debaixo dos aventais e das insígnias
maçónicas via aparecer os uniformes e as condecorações, a maior aspiração de
tais criaturas. Muitas vezes, ao recolher as esmolas e ao completá-las com os
vinte ou trinta rublos solicitados - era frequente uma dezena de membros,
metade dos quais tão ricos como ele próprio, deixarem a colecta em débito -.
Pedro lembrava-se do juramento maçónico em que cada irmão se compromete a dar
todos os seus bens ao próximo, e na sua alma nasciam dúvidas, que procurava
desvanecer.
Os irmãos seus conhecidos dividiam-se, para
ele, em quatro categorias. Da primeira faziam parte os que não participavam
activamente quer nos assuntos das lojas, quer nos problemas da humanidade,
exclusivamente ocupados no estudo dos mistérios da ordem, nos problemas
relativos à Trindade Divina ou ao tríplice princípio de todas as coisas - o
enxofre, o mercúrio e o sal - ou ainda ao significado do quadrado e das figuras
simbólicas do templo de Salomão. Pedro venerava esta categoria de irmãos, a que
pertenciam os mais antigos, embora não partilhasse das suas preocupações. O
lado místico da franco-maçonaria não lhe cativava as preferências.
Na segunda
categoria considerava, consigo próprio, aqueles que se lhe assemelhavam, os que
procuravam, que hesitavam, e que, sem terem achado na franco-maçonaria um
caminho direito e límpido, persistiam na esperança de o vir a encontrar.
No terceiro
grupo incluía aqueles - e eram os mais numerosos - que não viam na ordem mais
que as suas manifestações exteriores e as cerimónias e que se consagravam ao
cumprimento desses ritos sem se preocuparem com o seu conteúdo e o seu sentido
oculto.
O quarto,
por fim, abrangia igualmente grande número de irmãos, neófitos sobretudo. Nele
figuravam, consoante lhe fora dado observar, os que em nada acreditavam, nada
desejavam, e que apenas se haviam filiado para conhecer os irmãos ricos e
poderosos, graças às suas relações e à sua fidalguia, espécie muito abundante.
Pedro
começava a sentir-se pouco contente com a actividade que desenvolvia. A
maçonaria, pelo menos a maçonaria que tinha diante dos olhos, na maior parte
dos casos afigurava-se-lhe não passar de um puro formalismo. Claro está que não
pensava em atacar os fundamentos da própria instituição, mas estava persuadido
de que a maçonaria russa ia por caminho errado e se afastava dos seus
objectivos. Eis porque no fim do ano abalou para o estrangeiro na intenção de
se iniciar nos altos mistérios da ordem.
Após o regresso
do estrangeiro convocou-se a reunião solene de uma loja do segundo grau, onde
Pedro prometera comunicar a mensagem, de que era portador, destinada aos irmãos
de Petersburgo, da parte dos altos dignitários da ordem. A sessão era plenária.
Após as cerimónias habituais. Pedro levantou-se e principiou:
«Queridos
irmãos, não basta cumprir os nossos mistérios no segredo da loja, é preciso
agir.., sim, agir. Estamos neste momento adormecidos e precisamos de agir.»
Pegou nas folhas e pôs-se a ler: «A fim de espalhar a verdade pura e de
conseguir o triunfo da virtude, devemos libertar os nossos semelhantes dos
preconceitos, difundir regras de acordo com o espírito do nosso tempo,
darmo-nos à tarefa de instruir a mocidade, unirmo-nos por laços indissolúveis
aos espíritos mais esclarecidos, vencer, ao mesmo tempo corajosos e prudentes,
a superstição, a incredulidade e a estultícia, formando, entre aqueles que nos
são dedicados, pessoas ligadas entre si pela unidade do objectivo e dispondo do
poder e da força. Para alcançar esta finalidade é preciso que a virtude
prevaleça sobre o vício e que o homem de bem receba já neste mundo recompensa
eterna das suas virtudes. Mas a verdade é que a estes altos desígnios se opõe
um grande número de instituições políticas externas. Que fazer em tal estado de
coisas? Favorecer as revoluções, arrasar tudo, usar da força contra a força?...
Não, isso não está nos nossos desígnios. Todas as reformas impostas pela
violência são censuráveis, pois nunca corrigirão o mal enquanto os homens continuarem
a ser o que são e visto que a prudência dispensa perfeitamente a violência. A
nossa ordem deve procurar formar homens decididos, virtuosos e unidos pela
identidade de convicção, a qual consiste em querer, por toda a parte e com
todas as suas forças, castigar o vício e a estultícia e proteger o talento e a
virtude, numa palavra, arrancar da lama os que disso são dignos, para os
associarmos à nossa ordem. Só então a nossa instituição terá o poder de amarrar
insensivelmente as mãos dos fautores da desordem e de os dirigir sem que eles
próprios dêem por isso.
Em resumo,
seria preciso estabelecer uma forma de governo universal e dirigente capaz de
se propagar pelo mundo inteiro, sem no entanto romper os laços civis dos vários
Estados, e sob cuja égide todos os demais governos continuariam a existir de
acordo com a sua lei habitual, em tudo livres na sua acção, excepto em
oporem-se ao fim supremo da nossa ordem, o qual é o de procurar que a virtude
triunfe do vício. Esse o objectivo do próprio cristianismo. Foi ele que ensinou
os homens a ser prudentes e bons e a seguirem, para seu bem, o exemplo e as
lições dos melhores e dos mais prudentes. No tempo em que tudo estava
mergulhado nas trevas bastava exortação só por si. O ineditismo da verdade
proclamada dava-lhe uma força especial; mas hoje precisamos de meios muito mais
poderosos. Actualmente é necessário que o homem, guiado pela sua própria
sensibilidade, encontre na virtude como que um encanto sensual. Não é possível
extirpar as paixões. Temos de limitar-nos a dirigi-las para uma finalidade
nobre e é por isso que cada um de nós deve poder dar-lhes satisfação nos
limites da virtude e a nossa ordem estar pronta a proporcionar-nos os meios.
Logo que haja em cada Estado um certo número
de homens dignos de nós, cada um deles se encarregará de formar outros iguais a
si: todos acabarão por estar estreitamente unidos e então tudo será possível na
nossa ordem, a qual, em segredo, já tanto conseguiu para bem da humanidade.
(…) Havia
muito que se não assistia a uma sessão tão tempestuosa. Formaram-se partidos:
uns atacavam Pedro, acusando-o de iluminismo; outros defendiam-no. Foi a
primeira vez que este se deu conta da diversidade infinita dos espíritos, razão
pela qual nenhuma verdade é vista do mesmo aspecto por duas pessoas. Até mesmo
aqueles que pareciam seus partidários o compreendiam à sua maneira,
sugerindo-lhe restrições, modificações com que ele não podia estar de acordo,
uma vez que o seu objectivo principal era precisamente o de transmitir as suas
ideias tal qual ele próprio as concebera. No fim da sessão o grão-mestre
deu-lhe a entender, com alguma malevolência e num tom irónico, que ele se
exaltara de mais e que fora antes o entusiasmo da discussão que o amor da
virtude que o determinara. Pedro não respondeu e em poucas palavras perguntou
se a sua proposta era aceite. Como lhe respondessem negativamente, saiu sem
aguardar as formalidades ordinárias e voltou para casa.
(…)Fiquei
surpreendido ao perguntar-me se eu me lembrava do tríplice objectivo da ordem:
1º a conservação e o estudo dos mistérios; 2º a purificação e a regeneração de
nós próprios com vista a podermos participar desses mistérios, e 3º o
aperfeiçoamento do género humano graças aos esforços feitos em vista desta
purificação. Qual destes objectivos é o mais importante e o primeiro deles?
Claro está que a emenda e a purificação de nós próprios. É este o único que nós
sempre nos podemos esforçar por conseguir, independentemente de todas as
circunstâncias. Ao mesmo tempo, porém, é ele que exige de nós os maiores
esforços: eis porque, desorientados pelo orgulho, deixamos de lado este
objectivo essencial e nos consagramos quer ao conhecimento dos mistérios que no
nosso estado de impureza não somos dignos de compreender, quer ao
aperfeiçoamento do género humano, quando o certo é que nós próprios estamos a
ser exemplo de indignidade e de perversão. O iluminismo não é boa doutrina
precisamente porque os seus adeptos se deixaram levar pelo desejo de
desempenhar um papel social e é o orgulho que os domina.
A respeito
da minha vida familiar, eis o que ele me disse: «O principal dever do franco
mação, como acabo de lhe dizer, está no aperfeiçoamento de si próprio. Muitas
vezes, porém, julgamos poder alcançar mais depressa este objectivo afastando de
nós todas as dificuldades da vida. É o contrário, meu caro senhor», afirmou, «é
no meio da agitação do mundo que podemos alcançar os nossos três objectivos: 1º
o conhecimento de nós mesmos, pois o homem não pode conhecer-se verdadeiramente
senão por comparação; 2º o aperfeiçoamento, que se não alcança senão na luta;
3º a virtude suprema, que é o amor da morte. Só as vicissitudes da vida nos
podem mostrar toda a vaidade desta, contribuindo para nos inspirar o amor da
morte, isto é, o desejo da ressurreição numa nova vida.»
(…)Aconselhou-me a que não renunciasse a todas
as relações com os meus irmãos de Petersburgo e, conquanto me limitasse a
desempenhar na loja funções de segunda ordem, que me devia esforçar por
desviá-los dos caminhos do orgulho, trazendo-os para a verdadeira senda do
conhecimento e do aperfeiçoamento de nós próprios. Além disso, a mim,
pessoalmente, aconselhou-me a que antes de mais nada me observasse a mim mesmo
e nessa intenção ofereceu-me um caderno - este mesmo em que neste momento
escrevo -, onde de futuro registarei todos os meus actos.
Napoleão,
que a vira no teatro, dissera dela: «É um soberbo animal.»
(…) os
pequeninos seios, ainda adolescentes em alvoroço
Helena
parecia já poluída pelo fogo dos milhares de olhos que lhe deslizavam pelo
corpo, enquanto Natacha era a perfeita imagem da donzela (…)
(…)tinha
razão quando dizia ser preciso acreditar na felicidade para sermos realmente
felizes, e eu agora também o creio. Que os mortos enterrem os mortos. Enquanto
estamos vivos precisamos de viver e de ser felizes.
Berg sorriu
com a consciência da sua superioridade sobre uma fraca mulher e calou-se,
dizendo de si para consigo que, afinal de contas, aquela encantadora pessoa a
quem chamava esposa era fraca como todas as mulheres e não podia aspirar ao que
constitui a dignidade do homem, a dignidade de «se ser um homem»
Entretanto.
Vera sorria também, consciente da sua superioridade sobre o virtuoso e
excelente marido, o qual, no entanto, em sua opinião, compreendia mal a vida,
como, aliás, todos os homens. Berg, que julgava as outras mulheres através da
sua própria, considerava-as a todas seres fracos e estúpidos. Vera, julgando os
homens através do marido e generalizando as suas observações, supunha que todos
eles não faziam outra coisa senão considerar-se cheios de razão, embora na
realidade nada compreendessem e não passassem de criaturas orgulhosas e
egoístas.
A mulher é
tanto mais fiel quanto menos atraente.
No nosso
tempo... - Vera falava do seu tempo como em geral as pessoas de espírito
acanhado, que supõem ter descoberto e julgado as particularidades do seu tempo
e estão persuadidas de que os homens se transformam consoante as épocas (…)
O que sinto
agora é completamente diferente do que outrora experimentei. Actualmente o
universo divide-se para mim em duas partes: uma, em que ela está presente, e
onde tudo é felicidade, esperança, luz; a outra, em que ela não figura, e onde
tudo são trevas e dores...
Para quê
falar quando as palavras não podem exprimir o que uma pessoa sente?
E, de resto,
em que consistia realmente a equidade? A princesa não tinha a mais pequena
noção dessa palavra grandiloquente. Para ela todas as complicadas leis da
humanidade se resumiam numa só, simples e clara, a lei do amor e do sacrifício,
a lei ensinada aos homens por Aquele que, sendo Deus, muito padeceu por amor da
humanidade. Que lhe importava a ela a justiça ou a injustiça de outrem? A sua
condição era sofrer e amar e isso mesmo estava ela fazendo.
Está escrito
que a nossa sina seja o sofrimento, minha querida e boa amiga Júlia. Tão cruel
é a perda do teu irmão que acabas de sofrer que eu a não posso explicar senão
como uma mercê particular de Deus, que assim quer, por muito vos amar, pôr-te à
prova a ti e à tua boa mãe. Ah!, minha amiga, só a religião, só ela, pode, não
digo consolar-nos, mas salvar-nos de cairmos no desespero. Só a religião nos
pode explicar tudo quanto, sem a sua ajuda, o homem é incapaz de compreender,
ou seja, porque chama Deus a Si as criaturas de bom coração, de nobres
sentimentos, que sabem dar felicidade aos outros na vida, não fazem mal a
ninguém e são mesmo precisas para a felicidade alheia, enquanto deixa viver
criaturas más, inúteis, prejudiciais, e um fardo para elas próprias e para os
outros. A primeira morte a que assisti e que não mais poderei esquecer - a da
minha cunhada - obrigou-me a pensar muito. Assim como tu perguntas ao destino
porque foi o teu bom irmão chamado para o seio de Deus, também eu lhe perguntei
porque Lisa, aquele anjo, tinha de morrer, ela, que não só nunca fizera mal a
alguém, mas em cuja alma só houvera bons sentimentos. E que queres que te diga,
minha amiga? Cinco anos são passados e só agora na minha fraca inteligência
começo a compreender porque é que ela devia morrer e como esta morte não era
senão um sinal da misericórdia infinita do Criador, cujas acções, ainda mesmo
quando nós as não compreendemos, são sempre a prova do amor sem limites que Ele
dedica à criatura humana. Muitas vezes penso que ela era, naturalmente, de uma
inocência angélica de mais para dispor de energias que a deixassem cumprir os
seus deveres de mãe. Se como rapariga era irrepreensível, talvez o não tivesse
sido como mãe. Agora não só nos deixou a todos, e muito especialmente a André,
as saudades mais preciosas, como o certo é que a esta hora já deve ter
alcançado lá em cima um lugar que eu não ouso esperar para mim própria. Sem
falar da recompensa que terá obtido, esta morte prematura e terrível teve sobre
meu irmão e sobre mim o efeito mais benéfico, apesar da nossa dor. Quando passámos
por este desgosto, se tais pensamentos me tivessem ocorrido, tê-los-ia afastado
de mim com horror; agora, porém, tudo isto se tomou tão claro e incontestável!
Se te digo estas coisas, minha amiga, é apenas para te convencer da verdade
evangélica, que se tomou a regra da minha vida! «Nem um só cabelo nos cai da
cabeça sem a Sua vontade.» E a vontade do Senhor só o Seu ilimitado amor por
nós a conduz e é por isso que tudo quanto nos sucede só para nosso bem
acontece.
Quanto mais
vivia, quanto mais experiência adquiria, quanto mais observava a vida tanto
mais se surpreendia com a cegueira dos homens que procuram na terra a
felicidade e os gozos, que lutam, que sofrem e que mutuamente se querem mal
para alcançar essa miragem impossível e vã a que chamam felicidade. (…) E
ei-los lutando e sofrendo e atormentando o semelhante e perdendo a sua alma, a
sua alma imortal, para alcançarem prazeres que não duram mais do que uma hora.
Não só o sabemos por nós próprios, mas também por Cristo, o filho de Deus, que desceu
à Terra e nos disse que esta vida não é mais do que um breve espaço de tempo e
uma prova. E, no entanto, aí estamos nós, que nos agarramos a ela, pensando
encontrar a felicidade cá em baixo. «Como é que ninguém ainda percebeu isto?»
A tradição
bíblica ensina-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia
na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade
manteve-se no homem réprobo, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele,
não só por ser obrigado a ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto, mas
também porque a sua natureza moral o impede de encontrar satisfação na
inactividade. Uma voz secreta diz ao homem que ele é culpado de se abandonar à
preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse achar um estado em que se sentisse
útil e em que tivesse o sentimento de que cumpria um dever, embora inactivo,
nesse estado viria a encontrar uma das condições da sua felicidade primitiva.
Esta condição de ociosidade imposta e não censurável é aquela em que vive toda
uma classe social, a dos militares. Em tal ociosidade está e estará o principal
atractivo do serviço militar.
A alma é
imortal.., e isso quer dizer que se eu tenho de viver para sempre é que já vivi
na eternidade.
(…) gozava
deste triste privilégio, frequente em muitos homens, graças ao qual, embora
acreditem na verdade e no bem, com tanta clareza vêem o mal e a mentira dos
humanos que lhes faltam forças para os combater a fundo. A seus olhos, todos os
domínios da actividade humana estavam imbuídos do mal e da mentira. Fizesse o
que fizesse, tentasse o que tentasse, sempre se sentia repelido por esta
mentira perpétua: todas as vias da actividade humana se lhe fechavam. E no
entanto era preciso viver, algo tinha de fazer, apesar de tudo. Deixar-se
esmagar sob o peso destes problemas insolúveis, eis o que se lhe afigurava
horrível, e por isso mesmo, quanto mais não fosse para esquecê-los,
entregava-se ao que quer que houvesse a fazer. Frequentava todas as sociedades,
bebia muito, coleccionava quadros, erigia castelos no ar e lia, lia
principalmente.(…) Não se sentia bem senão quando, quase inconsciente, depois
de despejar uma boa dose de copos de vinho, sentia então por todo o corpo uma
agradável sensação de calor, e todo ele era ternura para com o semelhante e
tendência para abordar todos os problemas sem ir ao fundo de nenhum.
Às vezes
lembrava-se de ter ouvido contar que os soldados na guerra, nas linhas
avançadas, sob o fogo do inimigo, quando ociosos, procuravam uma ocupação
qualquer para mais facilmente esquecerem o perigo. A seus olhos os homens
sempre procediam como esses soldados, na esperança de se esquecerem da vida, e
davam-se à ambição, ao jogo, elaboravam leis, entretinham-se com mulheres,
divertiam-se, criavam cavalos, dedicavam-se à política, ou à caça, ou ao vinho,
ou aos negócios públicos. «Em conclusão, nada há desprezível, nada há
importante, tudo é indiferente desde que uma pessoa saiba subtrair-se a essa,
realidade da vida, desde que uma pessoa se não veja frente a frente com a vida,
esta terrível vida!»
- Há algo tão delicioso no sorriso da
melancolia. É um raio de luz no meio das trevas, cambiante entre a dor e o
desespero, que aponta a possível consolação.
(…) Bóris,
que viera disposto a falar-lhe do seu amor e resolvido a mostrar-se carinhoso,
não pôde deixar de lamentar, em tom acerbo, a inconstância das mulheres e a
facilidade com que elas trocam a dor pela alegria, acrescentando que o seu
estado de espírito só depende afinal daqueles que as cortejam.
Todos os
estróinas, tanto os homens como as mulheres, vivem com a secreta e ingénua
convicção de serem perfeitamente inocentes, persuadidos de que toda a gente
está disposta a perdoar-lhes. «Muito lhe será perdoado pelo muito que amou;
muito lhe será perdoado pelo muito que se divertiu.»
É muito
fácil julgar um homem quando cai em desgraça e atribuir-lhe então todos os
erros alheios.
Em fins de
1811 principiaram os armamentos intensivos e a concentração das forças da
Europa ocidental e, em 1812, estas forças, ou seja, milhões de homens, no
número das quais se contava transportes e abastecimentos, puseram-se em marcha
do ocidente para o oriente, em direcção às fronteiras da Rússia, para onde se
encaminhavam, igualmente, a partir de 1811, os exércitos russos. No dia 12 de
Junho, os exércitos da Europa ocidental atravessaram a fronteira e a guerra
principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento em desacordo completo
com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões de homens praticaram,
em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de
traições, de roubos, de falsificações de moeda, de pilhagens, de incêndios e de
morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro,
funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo este período,
aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos.
Que produziu
tão monstruoso acontecimento? Quais as suas causas? Os historiadores, com uma
segurança ingénua, foram buscá-las ao insulto de que foi vítima o duque de Oldemburgo,
à não observância do bloqueio continental, à ambição de Napoleão, à resistência
de Alexandre, aos erros da diplomacia, etc. Por conseguinte, teria bastado que
Metternich, Rumiantsov ou Talleyrand, entre uma recepção na corte e uma reunião
política, conviessem em redigir com arte uma nota bem cozinhada ou que Napoleão
pegasse na pena para escrever a Alexandre: «Senhor meu irmão, consinto em
devolver o ducado ao duque de Oldemburgo», para que não tivesse havido guerra.
É natural
que fosse este o ponto de vista dos contemporâneos. Concebe-se que Napoleão
tivesse atribuído a guerra às intrigas da Inglaterra, como declarou na ilha de
Santa Helena. Admite-se que os membros do Parlamento inglês pensassem que
deveriam ir buscar-se- lhe as causas à ambição de Napoleão; que o duque de
Oldemburgo as tivesse visto na violência de que fora vítima; o comércio no
bloqueio que arruinava a Europa; que os velhos militares e os generais tenham
dado como pretexto do conflito a necessidade de ocupar os seus homens; os
legitimistas da época a urgência em restabelecer os bons princípios, enquanto
os diplomatas pensavam que tudo provinha de a aliança da Prússia com a Áustria
em 1809 não ter sido habilmente escondida de Napoleão e de o memorando nº 178
haver sido mal redigido. Compreende-se que os contemporâneos tenham invocado
estas e ainda outras razões, tantas ou tão poucas que o número delas pode
variar consoante os numerosos pontos de vista.
Para nós, a
posteridade, que contemplamos em toda a sua amplitude este acontecimento
considerável e que penetramos o seu sentido simples e terrível, todas elas são,
evidentemente, insuficientes. Não podemos conceber como milhões de cristãos
puderam matar-se uns aos outros e torturar-se mutuamente só porque Napoleão era
ambicioso, Alexandre firme, a política da Inglaterra tortuosa e o duque de
Oldemburgo se sentia ofendido. Não é possível compreender a ligação que existe
entre todas estas circunstâncias e as violências e os morticínios propriamente
ditos.
Para nós, a posteridade, nós, que não somos
historiadores, nem nos deixamos levar pelo entusiasmo das investigações, e
examinamos, por conseguinte, com um bom senso imperturbável os acontecimentos,
as causas aparecem-nos em número incalculável. Quanto mais nos enfronhamos na
investigação dessas causas mais numerosas elas se nos revelam e cada uma em si
ou uma série delas se nos afiguram igualmente justas, embora falsas também,
dada a sua insignificância quando comparadas com a imensidade do acontecimento,
e igualmente falsas pela sua insuficiência, independentemente de todas as
demais causas concordantes poderem ter produzido o resultado encarado.
Uma delas, por exemplo, o facto de Napoleão se
ter recusado a retirar as suas tropas para o outro lado do Vístula e restituir
o ducado de Oldemburgo, parece-nos valer tanto como a recusa de um
primeiro-cabo francês a realistar-se, pois a verdade é que, se este não tivesse
querido voltar à actividade e o seu exemplo houvesse sido seguido por milhares
de soldados, teria havido muito menos homens no exército de Napoleão e este
ver-se-ia impossibilitado de declarar a guerra.
Se Bonaparte
se não houvesse sentido ofendido ao receber a comunicação em que se lhe pedia
que se retirasse para a outra margem do Vístula e não tivesse dado às suas
tropas ordem de marcha, não teria havido guerra. Mas se todos os seus sargentos
se houvessem recusado a realistar-se também a agressão não se daria. Fosse como
fosse, não se teria dado se não tivesse havido intrigas da Inglaterra, se não
existisse o príncipe de Oldemburgo, se Alexandre não fosse tão susceptível, se
a Rússia não tivesse um governo autocrático, se não tivesse havido a Revolução
Francesa e assim por diante. Sem qualquer destas causas nada teria acontecido.
É muito possível que para que o acontecimento se produzisse tivesse sido
preciso o encontro de todas estas causas, de milhares de causas, o que só quer
dizer não haver causas exclusivas e que as coisas acontecem porque têm de
acontecer. Milhões de homens, repudiando todo o sentimento humano e toda a
espécie de razões, tinham de marchar do Ocidente para o Oriente dispostos a
matar os seus semelhantes, tal qual, séculos antes, massas de homens tinham
marchado do Oriente para o Ocidente matando igualmente o seu semelhante.
Os actos de
Napoleão e de Alexandre, cuja palavra, na aparência, só por si podia impedir ou
desencadear os acontecimentos, eram tão pouco livres e arbitrários como os do
simples soldado destinado pela sorte ou o recrutamento a tomar parte na
campanha. As coisas não podiam passar-se de outra maneira, pois, para que fosse
cumprida a vontade de Napoleão ou de Alexandre, na aparência senhores
omnipotentes, era absolutamente necessária a concordância de numerosas
circunstâncias, e bastava faltar uma só que fosse para nada vir a produzir-se.
Era necessário que milhões de homens entre cujas mãos se encontrava a força
actuante - soldados para disparar e transportar abastecimento,, e canhões-
estivessem de acordo para cumprir a vontade daqueles dois fracos indivíduos, se
isolados, e que a tal fossem conduzidos por um número infinito de razões, tão
complicadas quão diversas.
A
intervenção do fatalismo na história é inevitável para explicar estas
manifestações desprovidas de sentido, ou, antes, cujo sentido nos não é dado
compreender. Quanto mais procuramos explicá-las logicamente tanto mais
desarrazoadas e incompreensíveis se nos apresentam.
O homem vive
para si mesmo, goza de liberdade para alcançar os seus objectivos particulares;
todo o seu ser lhe diz que pode realizar ou não imediatamente este ou aquele
acto; mas assim que age, realizado que seja o seu acto em tal ou qual momento
da continuidade temporal, ei-lo que passa a ser irrevogável e a pertencer daí
para o futuro à história, perdendo o seu carácter de acto livre para ocupar um
lugar que lhe é previamente designado.
A vida do
homem tem duas faces. Há, em primeiro lugar, a vida individual, tanto mais
livre quanto mais gerais os seus interesses, quanto mais abstractos; e depois a
vida como um elemento social, a vida do cortiço humano, em que o homem tem
inevitavelmente de se submeter às leis que lhe são prescritas.
O homem vive conscientemente a sua vida
individual, servindo de instrumento inconsciente à realização dos fins
históricos da humanidade inteira. O acto realizado torna-se irrevogável, e,
graças à sua concordância com os milhões de outros actos realizados ao mesmo
tempo, assume valor histórico. Quanto mais alto o homem está colocado na escala
da humanidade, quanto mais importantes as personagens com quem entra em
contacto, tanto maior, igualmente, o seu poder sobre os outros homens e mais
evidente o carácter de predestinação e de fatalidade de cada um dos seus actos.
«O coração dos reis está na mão de Deus.» «O
rei é escravo da história.» A história, quer dizer, a vida inconsciente, geral,
elementar, da humanidade serve-se de todos os minutos da vida dos reis para
alcançar os seus objectivos. Embora então, em 1812, Bonaparte estivesse mais do
que nunca convencido de que não dependia senão dele «fazer ou não verter o
sangue dos povos», como dizia Alexandre na última carta que lhe escreveu, a
verdade era mais do que nunca encontrar-se sujeito a essas leis fatais que,
enquanto lhe davam a ilusão de agir por si, segundo o seu próprio capricho, o
compeliam, a colaborar na obra comum, a história, realizando o que
necessariamente tinha de realizar-se.
Os homens do
Ocidente puseram-se a caminho do Oriente para se chacinarem uns aos outros. E,
segundo a coincidência das causas, colaboraram neste acontecimento e
encontraram-se em correlação com ele milhares de pequenas causas desse
movimento e dessa guerra, entre as quais a violação do bloqueio continental, a
ofensa ao duque de Oldemburgo, os deslocamentos de tropas na Prússia,
realizados, segundo pensava Napoleão, com o único fim de se conseguir uma paz
armada; o amor da guerra do imperador dos Franceses e o hábito em que estava de
a fazer, de acordo com as disposições particulares do seu povo; o entusiasmo a
que levavam os preparativos grandiosos; as despesas que estes preparativos
determinaram; a necessidade de conseguir vantagens que compensassem tais
despesas; as honrarias inebriantes que recebera em Dresde; as conversações
diplomáticas que, de acordo com a opinião dos contemporâneos, haviam sido
realizadas com o sincero desejo de alcançar a paz e que no fim de contas só
serviram para irritar o amor-próprio de parte a parte; milhões de milhões de
outras causas, enfim, que concorreram para a realização do acontecimento ou que
coincidiram com ele.
Uma maçã cai
quando está madura. Porquê? É o peso que a faz cair? Ou porque se lhe seca o
pé, porque o sol a queima, porque se tornou pesada de mais, porque o vento a
sacudiu ou, muito simplesmente, porque um garoto junto da árvore morria por
comê-la?
Nenhuma
destas causas é a válida. Não há mais que uma concordância de condições
favoráveis na realização de qualquer dos acontecimentos elementares da vida
orgânica. O botânico que descobre que a maçã cai como consequência da
decomposição do tecido celular ou qualquer coisa semelhante, não tem mais razão
que o garoto dizendo que a maçã caiu porque ele a desejava comer e nesse
intuito rezou a Deus.
Igual razão ou sem-razão terá aquele que vier
dizer que Napoleão entrou em Moscovo por ser esse o seu desejo e que aí se
perdeu por ser essa a decisão de Alexandre.
Igualmente estará em erro e terá razão aquele
que disser que uma montanha de milhões de pedras que acabou por se desmoronar
minada na base caiu graças ao último golpe de picareta do último dos sapadores.
Nos factos históricos, esses a quem se dá o
nome de grandes homens não passam, no fundo, de etiquetas para designar o
acontecimento. Aqueles têm tão pouca relação com tais factos como as próprias
etiquetas que lhes põem. Nenhum dos seus actos que a eles se lhes afigurem
produto do livre arbítrio podem considerar-se em verdade voluntários no sentido
histórico da palavra, pois estão relacionados com a marcha geral da história,
onde o seu lugar se encontra assinalado para toda a eternidade.
Não obstante
a confiança dos diplomatas na manutenção da paz, para que trabalhavam com
afinco, não obstante a carta autógrafa de Napoleão a Alexandre, em que o
tratava por Senhor meu irmão e lhe dava a sincera garantia de não querer a
guerra e de nunca vir a deixar de lhe consagrar estima e amizade, não obstante tudo
isso, pôs-se em marcha, em seguimento do exército, dando as suas ordens, em
cada muda, para se activar o movimento das tropas para oriente.
O imperador,
com a expressão de um homem pessoalmente ofendido, pronunciava estas palavras:
- Entrar na
Rússia sem declaração de guerra! Só assinarei a paz no dia em que não houver
sobre o meu território um único inimigo armado.
O imperador
russo dirigiu a Napoleão a carta que se segue:
«Senhor meu
irmão. Soube ontem que, apesar da lealdade com que mantive os meus compromissos
para com Vossa Majestade, as suas tropas atravessaram as fronteiras da Rússia,
e acabo de receber de Petersburgo uma nota em que o conde Lauriston, por causa
dessa agressão, anuncia que Vossa Majestade se considerou em estado de guerra
para comigo desde o momento em que o príncipe Kurakine fez o pedido dos seus
passaportes. Os motivos em que o duque de Bassano fundamentava a recusa de lhos
passar nunca me fariam supor que essa diligência viria alguma vez a servir de
pretexto para a agressão. Com efeito, o embaixador não fora a tal autorizado,
como ele próprio o declarou, e logo que fui disso informado comuniquei-lhe
quanto desaprovava essa deslocação, dando-lhe a ordem de se manter no seu
posto. Se Vossa Majestade não tem a intenção de fazer verter o sangue das
nossas gentes por um mal-entendido desta espécie e se consentir em retirar as
suas tropas do território russo, encararei o que se passou como se nada fosse,
e será possível as coisas comporem-se entre nós. No caso contrário, Vossa Majestade,
ver-me-ei forçado a repelir um ataque que nós não provocámos. Depende ainda de
Vossa Majestade evitar à humanidade as calamidades de uma nova guerra. Sou, de
Vossa Majestade, etc. ALEXANDRE»
O francês
Davout era o russo Araktcheiev do imperador Napoleão; em tudo menos na
covardia, como ele meticuloso e cruel e incapaz de provar a dedicação que tinha
ao amo de outra maneira que não fosse pela crueldade.
Nas engrenagens de um Estado, homens assim são
tão necessários como os lobos na natureza. Existem sempre, aparecem sempre e
mantêm-se, por mais absurda que a sua presença possa parecer, junto do chefe do
Estado ou na sua intimidade. Graças à fatalidade desta lei se pode explicar que
este cruel Araktcheiev, habituado a arrancar com as próprias mãos os bigodes
aos granadeiros, e de resto incapaz, por fraqueza nervosa, de enfrentar o menor
perigo, que este homem sem cultura e sem educação tivesse podido manter uma tal
influência sobre a natureza nobre, cavalheiresca e doce de um Alexandre.
Balachov
encontrou o marechal Davout na isbá de um aldeão, sentado num barril e ocupado
a verificar umas contas. Ter-lhe-ia sido possível arranjar uma instalação mais
própria, mas Davout pertencia ao número dos homens que gostam de viver nas mais
difíceis condições de vida para terem o direito de se conservar tristes e
severos. E é por isso também que tais homens andam sempre apressados e
esmagados com trabalho. «Como se há-de pensar nas coisas agradáveis da vida
quando, como vocês estão a ver, uma pessoa tem de sentar-se em cima de um
barril numa isbá sórdida, sempre que precisa de trabalhar?» Eis o que parecia
ler-se-lhe na cara. O maior prazer, a necessidade capital destas pessoas quando
em presença de alguém contente de viver é atirar-lhes à cara o seu trabalho
obstinado e taciturno.
Um soberano
só deveria encontrar-se à frente do exército quando fosse general - concluiu
Bonaparte, como se estas palavras fossem uma provocação directa ao czar. Ele
bem sabia que Alexandre tinha o sonho de ser um grande capitão.
(…) Estava
nesse estado de irritação em que as pessoas têm necessidade de falar, de falar,
de falar sempre, apenas para provarem a si próprias terem razão.
(…) Entre
outras coisas, veio à fala Moscovo, e Bonaparte interrogou-o acerca da capital,
ao mesmo tempo como um viajante, desejoso de se instruir, que colhe informações
sobre um país desconhecido que deseja visitar, mas também com a convicção de
que Balachov, russo que era, se sentiria muito lisonjeado com esse interesse.
- Quantos habitantes tem Moscovo? Quantas
casas? É verdade que lhe chamam Mouscou la sainte? Quantas igrejas tem? -
perguntou.
E, ao ouvir
que mais de duzentas, observou:
- Para quê
tantas igrejas?
- Os Russos são muito tementes a Deus.
Convém notar que grande número de conventos e
de igrejas é sempre sinal de atrasada civilização - disse o imperador.
Balachov,
respeitosamente, ousou exprimir opinião contrária.
- Cada terra com seus usos - disse.
- Mas nada há na Europa que se pareça com isso
- voltou Napoleão.
- Que Vossa Majestade me perdoe - tornou o
russo -, mas, além da Rússia, há a Espanha também, onde existem, igualmente,
muitos conventos e igrejas.
Esta resposta, alusão à recente derrota dos
Franceses em Espanha, foi muito apreciada na corte da Rússia quando Balachov
aludiu a ela, mas não produziu o mais pequeno efeito na mesa de Napoleão, onde
passou despercebida.
(…) Depois
do jantar o homem está sempre numa disposição bem conhecida, a qual, mais
persuasiva que qualquer razão lógica, o leva a sentir-se satisfeito consigo mesmo
e disposto a não ver senão afeições à sua roda. O imperador estava nessa feliz
disposição. Imaginava-se rodeado de amigos que o adoravam. Estava convencido de
que o próprio Balachov, depois daquele jantar, também era seu amigo e
admirador. Observou-lhe com um sorriso amável e ligeiramente trocista:
- Porque
assumiu o imperador Alexandre o comando dos seus exércitos? Que significa isso?
A guerra é o meu mister, o dele é reinar, não comandar as tropas. Para que
assumiu ele uma tal responsabilidade?
- Meu Deus,
meu Deus! Quando uma pessoa pensa que seres desprezíveis podem ser a causa da
infelicidade dos outros!
(…) Um dia
compreenderás a felicidade de perdoar.
O meu
pequeno cresce e sorri à vida, a vida, onde, como todos os outros, virá a
enganar ou ser enganado.
A sua
experiência da guerra ensinara-lhe que os planos mais cuidadosamente elaborados
pouco valor têm, coisa que pudera verificar por si próprio em Austerlitz, e que
tudo depende da maneira como se riposta aos ataques inesperados e imprevisíveis
do inimigo e da forma como são conduzidas as operações, bem como da capacidade
daqueles que as dirigem.
(…) Muita
desta gente não pensava noutra coisa senão em caçar dinheiro, cruzes,
categorias, e nessa caçada não seguia outra pista que não fosse o penacho da
mercê imperial, e assim que verificava que esse penacho se voltava para
determinado ponto, todo esse enxame de zangãos batia as asas na mesma direcção,
de tal sorte que se tornava por assim dizer impossível ao imperador fazê-lo
girar noutro sentido. Em presença da incerteza da situação, da gravidade de um
perigo iminente, que dava a todas as intrigas um carácter muito alarmante, no
meio daquele remoinho de intrigas, de ambições e conflitos entre pontos de
vista e tendências diferentes, na confusão daquela gente de nacionalidades
várias, exclusivamente preocupado com os seus interesses pessoais, contribuía
de maneira singular para tornar a marcha geral mais difícil e complicada. Fosse
qual fosse a questão que se levantasse, este enxame de zangãos, sem ter ainda
resolvido um problema, tratava de voar para outro, ensurdecendo com os seus
zumbidos e abafando cada vez mais as vozes sinceras que tomavam parte na
discussão.
O partido
das pessoas idosas, sensatas, com experiência de assuntos políticos(…) dizia e
pensava que o mal provinha antes de mais nada da presença do imperador e da sua
corte militar junto do exército, que se haviam transplantado para o campo de
batalha os hábitos de versatilidade, de hesitação e de indiferentismo, talvez
próprios da corte mas fatais no exército, e que o papel de um soberano era o de
reinar e não o de comandar tropas, e que a, única saída para a situação
consistia na partida do imperador e da sua corte. Bastava a sua presença para
paralisar cinquenta mil soldados, indispensáveis para assegurar a sua guarda
pessoal, e que o mais medíocre dos generais- chefes, sentindo-se independente,
valia mais que o melhor deles enleado pela presença e pela vontade soberana do
imperador.
O Francês é
um homem seguro de si, persuadido de que, pessoalmente, quer pelo espírito,
quer pelo físico, exerce uma irresistível sedução tanto nos homens como nas
mulheres. O Inglês também, goza da mesma segurança por estar persuadido de que
é cidadão do Estado mais bem organizado do mundo, e daí saber sempre, na sua
qualidade de inglês, que o que deve fazer e faz é indiscutivelmente perfeito.
Pelo seu lado, o Italiano tem confiança em si próprio porque facilmente se
emociona, esquecendo-se ainda mais depressa de si e dos outros. Ao Russo também
não falta confiança, visto que tudo ignora e nada quer saber e estar convencido
de que ninguém pode saber seja o que for. No que diz respeito ao Alemão, porém,
esse é o pior de todos, mais obstinado que ninguém e mais desagradável para
todo o mundo, convencido de que conhece a verdade, ou seja a ciência que ele
próprio fabrica, para ele, a verdade absoluta.
(…)
pertencia à família desses teóricos que de tanto amarem as teorias em si acabam
por esquecer-lhes os fins, ou seja a sua aplicação prática. Por amor da própria
teoria odiava tudo quanto fosse prático, recusando sistematicamente prestar
atenção a esse aspecto. Até o próprio fracasso lhe dava satisfação, uma vez que
o insucesso provocado pela violação da teoria na sua aplicação prática só
servia para lhe provar a ele a justeza da teoria que professava.
André deixar
de se mostrar surpreendido que fosse possível falar-se tanto. Enquanto estivera
no exército várias vezes fora levado a pensar que não havia nem podia haver uma
ciência da guerra e que por isso mesmo se não devia falar num suposto génio
militar. E eis esta ideia confirmada agora com a plena evidência da verdade.
,Como falar-se em teoria e ciência numa matéria em que as condições e as
circunstâncias são desconhecidas, não podendo ser definidas de antemão, e em
que as forças actuantes mais dificilmente ainda podem ser determinadas? Nunca
ninguém soube nem nunca ninguém poderá saber qual a posição do nosso exército e
a do inimigo dentro de vinte e quatro horas e qual a acção deste ou daquele
destacamento. Partindo do princípio de que na primeira fileira, em vez de um
poltrão que debande a gritar: ’Estamos cortados!’ se ouve, em seu lugar, um
moço, valente e decidido, gritando ’Hurra!, aí temos como um destacamento de
cinco mil homens vale mais de que um corpo de exército de trinta mil. Esse o
caso de Schöngraben. O que não impede que, noutra altura, cinquenta mil homens
debandem diante de oito mil. Assim acontecera em Austerlitz. Como falar em
ciência numa matéria em que, como sucede com todas as coisas da vida prática,
nada pode ser previsto antecipadamente e tudo depende de circunstâncias
imponderáveis cuja importância surge de um momento para o outro, sem que
ninguém saiba quando chegará a sua hora?
(…)«Todos
estes planos são igualmente bons e igualmente maus e as vantagens de cada um
deles não podem tornar-se evidentes senão no próprio momento em que os
acontecimentos vierem a cumprir-se. Porque fala então toda a gente em génio
militar? Será génio aquele que saiba abastecer a tempo de biscoitos o exército
e envie Fulano para a direita e Sicrano para a esquerda? A verdade é esta: os
génios militares são brilhantes e poderosos e há uma multidão de cobardes
sempre pronta a lisonjear o poder, chamando a tais homens génios e
atribuindo-lhes qualidades extraordinárias. Em vez de génios, os melhores
generais que eu conheci eram estúpidos ou pouco sérios. Um bom militar nem
precisa de ser génio nem de ter qualidades especiais. Pelo contrário, deve ser
desprovido do que há de melhor e de mais elevado no homem: o amor, a poesia, a
ternura, a dúvida filosófica, filha da experiência. Deve ser limitado, estar
persuadido de que é de alta importância tudo quanto faz. De outro modo
faltar-lhe-á a persistência; só assim será um valoroso capitão. Que Deus o
defenda de amar alguém, de se afeiçoar seja a quem for, de ser compadecido, de
pensar no que é justo e no que o não é. Compreende-se que desde tempos
imemoriais se tenha inventado para galardão seu a teoria do génio, pois, em
verdade, representa o poder. O êxito ou o desaire de uma acção militar não
podem ser-lhe atribuídos, mas ao soldado que nas fileiras grita: ’Estamos
perdidos!’ ou então exclama ’Hurra!’ Somente nas fileiras um homem pode servir
convencido de que é útil!» Assim pensava o príncipe André…
(…) sabia, por
experiência própria, que quem conta um episódio militar nunca fala inteiramente
verdade, como com ele próprio acontecera então. Além disso, já era bastante
experimentado na guerra para saber que nada se passa no campo de batalha como
as pessoas o imaginam ou como é costume virem a contá-lo mais tarde.(…) Sabia
que todas aquelas histórias tinham por fim a glorificação dos exércitos…
Outrora,
Rostov, antes de um combate, tinha medo; agora não sentia o mais pequeno
receio. Não porque se tivesse acostumado à metralha (ninguém pode habituar-se
ao perigo), mas aprendera a dominar a alma. Acostumara-se, quando ia para o
combate, a pensar em tudo menos no que mais importava, a proximidade do perigo.
Apesar de todos os seus esforços, não obstante chamar-se a si próprio cobarde,
nos primeiros tempos fora-lhe muito difícil chegar àquele resultado, mas com os
anos as coisas vieram naturalmente.
Os médicos
eram de grande utilidade para todos os habitantes da casa Rostov. Não por
fazerem com que a doente ingerisse drogas geralmente prejudiciais, cujo nefasto
efeito era, de resto, atenuado por serem tomadas em pequeninas doses. Eram
úteis, indispensáveis, inevitáveis pelo facto de darem satisfação às
necessidades morais da doente e daqueles que lhe queriam, e é essa a razão por
que há e sempre haverá curandeiros, charlatães, homeopatas e alopatas. Davam
satisfação aos desejos, perenes no homem, de consolação, à avidez de simpatia
que há nele, à necessidade de que se ocupem dele sempre que sofre. Davam
satisfação a essa perene necessidade que nas crianças se observa sob a sua
forma elementar esfregando o sítio em que se magoam. A criança que se magoa vai
logo lançar-se nos braços da mãe ou da ama, na esperança de que elas a beijem e
lhe esfreguem o lugar ofendido, e o certo é que se sente consolada assim que
obtém estes carinhos. Não lhe passa pela cabeça que as pessoas mais fortes e
mais crescidas do que ela sejam capazes de a não socorrer. E com efeito a
esperança de um lenitivo, a simpatia que lhe testemunham enquanto a mãe lhe
passa a mão pelo sítio lesado, eis quanto basta para a consolarem. Os médicos
desempenhavam junto de Natacha o papel da mãe que beija o filho e lhe passa a
mão pelo dói-dói. Diziam-lhe que o mal de que padecia se curaria desde que o
cocheiro fosse comprar ao farmacêutico da Praça de Arbate, por um rublo e sete
grivens, certos pós ou certas pílulas, numa caixinha muito bonita, e ela
tomasse esses pós, sem falta, de duas em duas horas, nem mais nem menos, em
água fervida.
Que seria de
Sónia, do conde, da condessa, se todos tivessem de cruzar os braços em vez de
cuidarem em dar-lhe essas pílulas de hora a hora, essas poções mornas, em vez
de lhe prepararem esses caldos de galinha e tantas outras coisas prescritas
pelos médicos, coisas para eles uma ocupação e uma consolação apreciáveis?
Teria o conde podido suportar a doença da sua filha querida se não pudesse
dizer consigo mesmo que esta já lhe custara mil rublos e que de bom grado
despenderia outros mil para lhe dar alívio, se não pudesse pensar que para a
restabelecer não se importaria de gastar outros mil rublos, levando-a a
consultar médicos no estrangeiro sem olhar a despesas; se lhe não tivesse sido
dado contar a toda a gente que Métivier e Feller nada tinham percebido do
estado dela e que Friese acertara com o mal, mas que Mudrov ainda fora mais
feliz no seu diagnóstico? Que teria sido da condessa se lhe não fosse dado
zangar-se de quando em quando com a doente por esta não seguir à risca as
prescrições médicas?
- Assim
nunca mais te curas - dizia-lhe ela numa irritação que a fazia esquecer o
desgosto -, se não ouves o que diz o médico e não tomas o teu remédio a tempo e
a horas! Não é ocasião para brincadeiras, quando tudo isso pode degenerar numa
pneumonia - acrescentava, consolada por poder empregar aquele termo científico
nem só para ela ininteligível.
E Sónia, que
teria feito Sónia pela sua parte se não lhe fosse dada a satisfação de dizer a
si mesma que passara, de princípio, três noites sem se despir, sempre pronta a
executar pontualmente as prescrições do médico e que ainda então mal fechava os
olhos para não esquecer a hora de lhe administrar as pílulas assaz inofensivas
da linda caixa dourada? E a própria Natacha, conquanto estivesse sempre a dizer
que nenhum medicamento a poderia curar e que todas aquelas drogas eram tolice,
ela própria sentia uma certa satisfação ao ver que as pessoas faziam por ela
tantos sacrifícios, e tomava as suas poções a horas fixas. E até alegre se
sentia descuidando-se do cumprimento das prescrições, por poder mostrar que não
acreditava na cura e que não apreciava a vida.
Sabia que a
bondade nada custava a Pedro. Tão natural lhe parecia a ele dever ser bom para
toda a gente que lhe não advinha daí qualquer mérito.
(…) a sua
imagem transportava-o num instante a uma região luminosa da alma onde não podia
haver nem justos nem culpados, à região da beleza e do amor, as únicas razões
pelas quais vale a pena viver.
(…) E eis
como agiam, consoante as suas disposições pessoais, os seus hábitos, a sua
condição ou as suas intenções, as numerosas personagens que tomavam parte na
guerra. Os seus receios, as suas vaidades, as suas alegrias, os seus
descontentamentos, as suas críticas vinham de suporem saber o que faziam e de
julgarem agir por si próprios, quando afinal não passavam de instrumentos
inconscientes da história, realizando um trabalho oculto para eles, mas
inteligível para nós. Tal é o destino imutável de todos os comparsas, tanto
menos livres quanto mais alto na hierarquia social.
Os actores
dos acontecimentos de 1812 já não pertencem ao número dos vivos, os interesses
que os impeliam não deixaram o mais pequeno vestígio, e só restam os resultados
históricos da sua época.
Mas, se
admitirmos que os habitantes da Europa conduzidos por Napoleão deviam penetrar
no coração da Rússia e ali ficar, toda a conduta contraditória, insensata e
cruel dos actores dessa guerra se nos torna inteligível.
A
Providência obrigava todos esses homens na peugada de fins pessoais a colaborar
num único e enorme resultado, resultado que ninguém conhecia, nem Napoleão nem
Alexandre, e ainda muito menos qualquer dos que participavam na guerra.
No momento actual vemos claramente o que
provocou a perda do exército francês. Ninguém contestará que a causa desse
desastre foi, por um lado, a sua penetração tardia e sem preparação suficiente
no coração da Rússia, sujeito a arrostar com uma campanha de Inverno, e, por
outro, o carácter que a guerra assumiu em virtude do incêndio das povoações e o
ódio que germinou no coração do povo russo.
Mas então ninguém podia prever o que
actualmente é a própria evidência, isto é, que bastavam estas causas para
aniquilar um exército de oitocentos mil homens, o melhor que ainda houvera no
mundo, conduzido pelo melhor dos capitães, diante do exército russo, duas vezes
mais fraco, sem experiência, e dirigido por generais igualmente inexperientes.
E não só
ninguém podia prever semelhante desfecho como todos os esforços da parte dos
Russos tendiam constantemente a impedir a única coisa susceptível de salvar a
Rússia e os da parte dos Franceses, apesar da experiência e do suposto génio
militar de Napoleão, igualmente tendiam a levar as suas vitórias até Moscovo
antes do fim do Estio, ou seja, a fazer exactamente o que deveria perdê-los.
Nas obras históricas respeitantes a 1812 os
autores franceses insistem no facto de Napoleão sentir o perigo que para ele
havia em estender demasiado as suas linhas, e dizem que procurava dar batalha,
que os seus generais o tinham aconselhado a deter-se em Smolensk e em quejandos
argumentos da mesma sorte que provam não se ignorar então o perigo que ameaçava
o exército francês.
Por outro lado, os autores russos insistem,
com mais peso ainda, no plano estabelecido, segundo eles, desde o princípio da
campanha, de guerra cita, o qual consistia em atrair Napoleão ao coração da
Rússia.
Mas a
verdade é que todas estas alusões a uma previsão do que veio a acontecer, tanto
do lado francês como do russo, se agora são postas em relevo é precisamente
porque os acontecimentos as justificam. Se tivesse acontecido o contrário,
teriam sido completamente esquecidas, como sucede a milhares de alusões e de
hipóteses espalhadas então e que se verificaram ser inexactas.
O resultado
de cada acontecimento dá sempre lugar a tantas suposições que, sejam elas quais
forem, há sempre pessoas prontas a afirmar: «Eu bem dizia que as coisas se
passariam assim.» Esquecem que entre todas estas numerosas suposições algumas
há absolutamente contraditórias.
É evidente
que a esta categoria de suposições sem fundamento pertence a do perigo
entrevisto por Napoleão na extensão da sua linha de comunicações e a relativa à
guerra cita, e os historiadores só com muitas reservas devem atribuir tais
vistas a Bonaparte e tal plano aos chefes militares russos. Todos os factos
estão em contradição absoluta com essas hipóteses.
Não só no
decurso de toda a guerra se não observou qualquer desejo da parte dos Russos de
atraírem os Franceses ao interior do seu país, mas, pelo contrário, tudo quanto
se fez foi no sentido de os deter, uma vez verificado o seu primeiro avanço.
Por outro lado, não só Napoleão não receava o alongamento da sua linha, mas até
se regozijava, como se se tratasse de uma vitória, de cada passo em frente,
indo com maior entusiasmo para a luta do que no decurso das suas campanhas
anteriores.
Desde o
princípio que os exércitos russos se encontraram cortados, e o único objectivo
dos seus chefes foi reuni-los de novo, quando é certo que para bater em
retirada e atrair o inimigo ao coração do seu país tal junção não representava
qualquer vantagem. O imperador esteve junto das suas tropas para encorajá-las
na defesa de cada palmo da terra russa, e não para ordenar a retirada.
Construiu-se
o enorme campo entrincheirado de Drissa, de acordo com os planos de Pfuhl, na
intenção bem clara de não se recuar mais. Cada passo à retaguarda custou aos
comandantes-chefes repreensões do imperador. Não só este não podia imaginar que
os Russos deitariam fogo a Moscovo, como nem sequer previa que deixariam
avançar o inimigo até Smolensk, e, quando os exércitos operaram a sua junção,
exasperou-se pelo facto de aquela cidade ser tomada e incendiada e de se não
ter travado uma batalha geral à volta das suas muralhas. Assim pensava o
imperador, mas assim pensavam também os chefes russos, e o povo inteiro
indignou-se com a ideia de que o seu exército recuava até ao interior do país.
Napoleão, depois de cortar em dois o exército
de Alexandre, penetra cada vez mais a fundo em território russo, deixando
escapar várias oportunidades para dar combate. Em Agosto está em Smolensk e não
pensa noutra coisa senão em avançar mais ainda, embora, como hoje se vê
perfeitamente, esse movimento fosse perigoso para ele. Os factos mostram com
toda a evidência que Napoleão não previa o perigo de um movimento em direcção a
Moscovo e que Alexandre e os chefes russos não pensavam em atrair Napoleão, mas
sim exactamente no contrário.
O facto
deu-se não em resultado de um plano qualquer - e o certo é que ninguém teria
acreditado na possibilidade de o pôr em prática -, mas como consequência de um
complicadíssimo jogo de intrigas, de ambições, de desejos da parte dos
comparsas da guerra, os quais não adivinhavam o que iria acontecer e seria a única
salvação da Rússia.
É inopinadamente que as coisas sucedem. Os
exércitos são cortados em dois no princípio da campanha. Os Russos tentam
reuni-los na intenção evidente de travar uma batalha e de deter o inimigo, mas
no decurso desta tentativa, quando as tropas russas evitavam um recontro com
forças muito superiores, eis que os exércitos de Alexandre batem
involuntariamente em retirada, formando um ângulo agudo, e os Franceses se vêem
deste modo atraídos até Smolensk.
Ainda não é
tudo dizer-se que os Russos retrocedem em ângulo agudo, pois os Franceses
avançam entre os dois exércitos. O ângulo torna-se ainda mais agudo e os Russos
recuam ainda mais, porque Barclay de Tolly, esse estrangeiro impopular é odiado
por Bagration, que lhe deve ser subordinado, e o qual, à frente do 2º exército,
procura realizar a sua junção com ele, quanto mais tarde melhor, para não vir a
encontrar-se sob as suas ordens.
Durante
muito tempo Bagration não opera a junção, embora seja esse o objectivo de todos
os comandantes do exército, porque se lhe afigura que se realizar esse
movimento porá em perigo as suas tropas e por lhe parecer melhor recuar mais à
esquerda e para o sul, inquietando o flanco e a retaguarda do inimigo, o que
lhe permitirá completar o seu exército na Ucrânia. Ao mesmo tempo parece ter
imaginado semelhante táctica para não querer ver-se subordinado ao estrangeiro
Barclay, a quem detesta e é mais novo na promoção.
O imperador está com o exército para o animar
com a sua presença, mas o certo é que a sua estada junto das tropas, a
ignorância das decisões que devem tomar-se e o número incrível de conselheiros
e de planos propostos anulam a força ofensiva do 1º exército e as tropas batem
em retirada. As coisas dispõem-se para as tropas irem deter-se no campo de
Drissa, mas inesperadamente Paulucci, que aspira ao posto de comandante-chefe,
influi, graças à sua energia, no espírito de Alexandre, e todo o plano de Pfhul
é abandonado, passando tudo para as mãos de Barclay. Como este porém não
inspira confiança, o seu poder é limitado. E aí temos os exércitos
fraccionados. Já não há unidade de comando, e Barclay não goza de popularidade.
Desta confusão, deste fraccionamento, desta impopularidade do general-chefe,
resultam, por um lado, a indecisão e a recusa de travar batalha, a qual se não
teria podido evitar se os exércitos estivessem reunidos e se Barclay não
tivesse o comando, por outro, um descontentamento cada vez maior em relação aos
estrangeiros e um despertar do sentimento patriótico.
Finalmente o
imperador retira-se de junto do exército e o único e mais plausível pretexto da
sua retirada é que a ele compete incitar o entusiasmo nas capitais com vista a
criar o espírito de uma guerra nacional. E esta viagem a Moscovo triplica as
forças do exército russo.
O imperador abandona o exército para não
prejudicar a unidade do comando e espera-se que, após a sua partida, se tomem
decisões mais enérgicas.
Mas não.
Pelo contrário, a situação do chefe do exército complica-se e enfraquece cada
vez mais. Bennigsen, o grãoduque, todo um enxame de generais
ajudantes-de-campo, permanecem no exército para vigiar os actos do
comandante-chefe e despertar, em caso de necessidade, a sua energia, e Barclay,
que de dia para dia se sente menos livre sob a vigilância de todos estes «olhos
do imperador», torna-se ainda mais hesitante nas suas decisões e evita a batalha.
Barclay é, pela prudência.
O grão-duque
herdeiro chega a pronunciar a palavra «traição», e pede que se trave a batalha
geral. Liubomirski, Bronnitski, Blotski e outros ainda dão tanta repercussão a
este boato que Barclay, a pretexto de entregar uns documentos ao imperador, faz
com que partam para, Petersburgo todos os ajudantes-de-campo polacos e entra em
luta aberta com Bennigsen e o grão-duque.
Finalmente,
apesar da oposição de Bagration, em Smolensk opera-se a junção dos dois
exércitos. Bagration chega, de carruagem, à residência ocupada por Barclay.
Este afivela o cinturão, vai ao seu encontro e faz-lhe o seu relatório como se
fosse de patente inferior a ele. Bagration, num rasgo de magnanimidade, embora
mais antigo, submete-se a Barclay. Feito o que, no entanto, cada vez se mostra
em maior desacordo com ele.
Por ordem do imperador, dirige-lhe
pessoalmente o seu relatório. Escreve a Araktcheiev: «Apesar de ser esse o
desejo do imperador, não posso de maneira nenhuma permanecer com o ‘ministro’
(assim designava Barclay). Por amor de Deus, enviai-me para qualquer parte,
ainda que não seja senão para comandar um regimento. Aqui é que eu não me posso
ver. O quartel-general está cheio de alemães, e de tal modo que um russo não
pode viver no meio deles. É de perder a cabeça. Julguei servir realmente o
imperador e a pátria e afinal a quem eu sirvo é Barclay. Confesso que me recuso
a isso. A praga dos Bronnitski, dos Wintzengerode e quejandos continua a
envenenar cada vez mais os relatórios dos comandantes-chefes e de dia para dia
é menor a unidade de vistas. Preparam-se para atacar os Franceses diante de
Smolensk.
É enviado um general para examinar as
posições. Este general, que detesta Barclay, dirige-se a casa de um dos seus
amigos comandante de corpo de exército, passa com ele o dia, regressa ao
quartel-general e faz crítica cerrada, ponto por ponto, do campo de batalha que
não viu nem de longe.
Enquanto os
Russos discutem e intrigam e se disputam sobre o futuro campo de batalha,
enquanto procuram os Franceses e se enganam sobre as suas posições, estes caem
sobre a divisão Nevierovski e aproximam-se dos muros de Smolensk.
É preciso
aceitar, quer queiram quer não, a batalha às portas de Smolensk a fim de salvar
as linhas de comunicação dos Russos. A batalha dá-se. Caem milhares de homens
de um lado e do outro.
Smolensk é abandonada contra a vontade do
imperador e de todo o povo. Os habitantes porém, enganados pelos seus
governantes, queimam a cidade. Completamente arruinados, chegam a Moscovo, só
pensando nos prejuízos que sofreram, para darem o exemplo aos outros russos e
comunicar-lhes o seu ódio ao inimigo. Napoleão prossegue a sua rota. Os Russos
recuam, e assim se encaminham as coisas para que os Franceses sejam vencidos.
- E que vais
tu fazer agora? Continuarás aqui se o inimigo ocupar a quinta? - perguntou o
príncipe André.
Alpatitch
virou a cara para o príncipe, fitou-o e, de súbito, num gesto solene, ergueu os
braços ao céu. - Ele é meu protector, que seja feita a Sua vontade! - exclamou.
- Bom, adeus!
- disse este, inclinando-se para Alpatitch - Vai-te embora também. Leva contigo
o que puderes e diz aos camponeses que se refugiem ou na propriedade de Riazan
ou nas dos arredores de Moscovo. Alpatitch agarrou uma das pernas do amo,
soluçando. O príncipe André desprendeu-se suavemente e, esporeando o cavalo,
despediu a galope por uma das alamedas.
No terraço
da estufa, tão indiferente como uma mosca pousada no rosto de um morto que nos
é querido, continuava sentado o ancião, ocupado a pregar num cepo os seus
laptis, e duas pequenitas com as saias arregaçadas, cheias de ameixas colhidas
nas árvores da estufa, correram dando de caras com o cavaleiro.
Ao ver o
patrão novo, a mais idosa, muito assustada, pegou na companheira pela mão e
ambas se foram esconder atrás de um álamo, sem terem tempo de apanhar as
ameixas verdes que deixaram cair no chão. O príncipe André deu-se pressa em
voltar a cabeça para o lado, para que elas não vissem que ele as observara.
Fez-lhe pena aquela linda garota, com o seu ar assustado. Não queria olhar, mas
não conseguia. Um sentimento novo, doce e apaziguador o invadiu ao ver aquelas
crianças. Compreendeu que outros interesses havia na vida completamente alheios
aos seus e tão naturais como os que o preocupavam. Aquelas crianças não tinham
evidentemente senão um desejo: levar consigo, para comê-las, aquelas ameixas
verdes e não se deixarem apanhar, e o certo é que André, lá no fundo, lhes
estava desejando que fossem bem sucedidas na sua proeza. E não resistiu a olhar
para elas uma vez mais. Julgando passado todo o perigo saíram do seu
esconderijo e, tagarelando nas suas vozitas agudas, de saias arregaçadas,
puseram-se a correr alegremente pela relva, de pés descalços tostados pelo sol.
(…)Enquanto
isto se passava em Petersburgo, os Franceses deixavam para trás Smolensk e
aproximavam-se mais e mais de Moscovo. Thiers, o historiador de Napoleão, como
todos os outros autores que se ocuparam da sua personalidade, para justificarem
o seu herói, sustentam que ele foi atraído, a pesar seu, até junto dos muros de
Moscovo. Thiers tem razão na medida em que têm razão todos quantos procuram
explicar os acontecimentos históricos pela vontade de um só homem. Tem razão
como a têm os historiadores russos que afirmam que Napoleão foi impelido para a
frente graças à habilidade dos generais russos. Nisto, além da lei da
retrospectividade, que leva a crer que o passado não é mais que a preparação do
facto consumado, existe uma certa conexão dos acontecimentos que complica tudo.
Um bom jogador de xadrez que perde uma partida fica convencido de ter perdido
por virtude de um erro em que incorreu, e vai procurá-lo no princípio do jogo
esquecendo-se de que no decurso da partida incorreu em outros erros semelhantes
e que nenhuma das suas jogadas foi perfeita, Deu conta do seu erro apenas
porque o adversário dele tirou partido.
Quão mais
complicado não é o jogo da guerra, que tem lugar em determinadas condições de
tempo, em que não é uma vontade única que conduz as máquinas inanimadas, mas
onde tudo depende do entrechocar de uma infinidade de vontades individuais e
particulares!
Tomar uma
fortaleza não é difícil; difícil é ganhar uma campanha. E para isso não é
preciso tomar de assalto e, atacar, mas ter «paciência e tempo diante de nós».
Mas acredita
no que te digo, meu caro: nada há que valha estes dois soldados: a paciência, e
o tempo! Eles farão tudo. Mas os conselheiros não vêem por esse prisma, eis o
mal. Uns querem, outros não. E então que se há-de fazer? Pois bem, vou dizer-te
o que é preciso fazer. Na dúvida, meu caro, abstém-te - acrescentou, destacando
as palavras.
Na hora do
perigo duas vozes, igualmente fortes, se ouvem na alma do homem: uma aconselha
sempre, prudentemente, que cada um de nós se dê conta exacta do perigo que o
ameaça e trate de procurar maneira de o evitar; a outra, ainda com maior
prudência, diz-nos ser muito penoso e dolorosíssimo pensar no perigo, visto não
estar nas possibilidades do homem prever e furtar-se à marcha dos
acontecimentos, e o melhor é não nos preocuparmos com as coisas tristes antes
do facto consumado e só pensarmos nas coisas agradáveis. O homem isolado
obedece, regra geral, à primeira destas vozes; em sociedade, pelo contrário,
submete-se à segunda.
Quando se
fala do Sol, vêem-se-lhe os raios. - Sorria amavelmente para Pedro com aquela
facilidade de mentir tão característica das senhoras da sociedade. - Acabávamos
de falar de si.
Se um dos
adversários tem dezasseis pedras e outro catorze, este é apenas uma oitava
parte mais fraco do que aquele: porém, quando ambos tiverem perdido, cada um à
sua parte, treze pedras, o primeiro será três vezes mais forte do que o
segundo.
Antes da
batlha de Borodino as forças russas, em relação às francesas, encontravam-se
aproximadamente na proporção de cinco para seis e, depois da batalha, na de um
para dois, o que quer dizer que antes da batalha os Russos eram cem mil contra
cento e vinte mil, e depois dela cinquenta contra cem mil. E no entanto o
experimentado e inteligente Kutuzov aceitou o combate. E Napoleão, esse génio militar,
como então se dizia, aceitou a luta, que lhe custou um quarto do seu exército e
ainda mais lhe estendeu as linhas. Ainda que se diga que, tomando Moscovo,
pensava dar a campanha por finda, como acontecera depois da tomada de Viena,
não faltam provas que demonstrem o contrário, os próprios historiadores de
Napoleão referem que depois de Smolensk ele queria deter-se, ele próprio se
dava conta do perigo da extensão das linhas, sabendo que a ocupação de Moscovo
não seria o fim da campanha, pois desde Smolensk que verificava o estado em que
encontravam as cidades que tomava e que nenhuma resposta obtinha às suas
reiteradas tentativas de entabular negociações.
Oferecendo e
aceitando a batalha, tanto Kutuzov como Napoleão agiram contrariamente ao
livre-arbítrio e de forma insensata. No entanto, os historiadores, consumados
os factos, extraíram consequências complicadas e especiosas sobre a visão e o
génio dos generais, quando a verdade é que estes, no meio dos instrumentos
inconscientes dos acontecimentos dessa época, mostraram ser os mais servis e os
mais cegos.
Os antigos
deixaram-nos modelos de poemas épicos em que os heróis são o principal
interesse da história, por isso não nos podemos resignar a que a história do
nosso tempo se lhe não assemelhe.
O exército
russo, na sua retirada depois de Smolensk, teria procurado a melhor posição
para travar uma batalha geral e tê-la-ia encontrado em Borodino.
Os Russos
teriam fortificado previamente essa posição à esquerda da estrada de Moscovo a
Smolensk e perpendicularmente, pouco mais ou menos, a esta estrada, entre
Borodino e Utitsa, exactamente no local onde a batalha se travou. Ante esta
posição, ter-se-ia estabelecido, para observar o inimigo, um posto avançado na
encosta de Chevardino.
A 24, Napoleão teria assaltado esse posto
avançado e tê-lo-ia tomado: a 26 teria atacado o grosso do exército russo,
concentrado no campo de Borodino.
Para a
pergunta - como se deram as batalhas de Borodino e a de Chevardino, que a
precedeu? - existe também uma explicação precisa que toda a gente conhece,
embora completamente falsa. Todos os historiadores, com efeito, descrevem essa
dupla batalha da seguinte maneira:
Eis o que os
historiadores dizem e tudo isto é absolutamente inexacto, coisa de que se
convencerá facilmente quem quer que se decida a estudar com cuidado o
acontecimento.
Os Russos
não escolheram a melhor posição; pelo contrário, no decurso da sua retirada
menosprezaram muitas outras melhores do que a de Borodino. Não se detiveram em
qualquer delas porque Kutuzov não queria aceitar uma posição que não fosse
escolhida por ele, e depois porque a patriótica necessidade de dar batalha
ainda não se concretizara com suficiente força e ainda porque Miloradovitch ali
não estava com a sua milícia, além de outras razões impossíveis de enumerar.
O facto é
que as outras posições eram mais fortes, e que a de Borodino, onde se travou a
batalha, não só não era a melhor como nem sequer era uma posição, visto não
passar de um lugar como qualquer outro marcado ao acaso com um alfinete no mapa
do império moscovita, Os Russos não só não fortificaram a posição de Borodino à
esquerda e perpendicularmente à estrada, quer dizer, no local onde a batalha se
travou, como antes de 25 de Agosto nunca tinham pensado que se pudesse vir a
dar um recontro naquele local.
E a prova está, em primeiro lugar, que não só
a 25 não havia ali qualquer fortificação, mas até mesmo as que se iniciaram a
25 não estavam concluídas a 26, e, em segundo lugar, na própria situação do
reduto de Chevardino. Este reduto, na vanguarda da posição onde os exércitos se
defrontaram, era inteiramente destituído de sentido. Porque foi esse reduto
mais fortificado que todos os outros pontos? E porque é que, para defendê-lo,
se resistiu no dia 24 até alta noite, envidando tantos esforços e perdendo seis
mil homens? Para observar o inimigo, uma patrulha de cossacos chegava
perfeitamente. Em terceiro lugar, a prova de que a posição onde se travou a
batalha não estava prevista e que o reduto de Chevardino não era o seu posto
avançado é que Barclay de Tolly e Bagration estiveram convencidos até 25 de que
o reduto de Chevardino constituía o flanco esquerdo da posição, e que o próprio
Kutuzov, no seu relatório, redigido quando ainda frescas as impressões da
batalha, lhe chama o flanco esquerdo da posição.
Muito mais
tarde, ao descrever-se a batalha de Borodino, naturalmente para justificar os
erros do general-chefe, infalível custasse o que custasse, emitiu-se a
afirmação inexacta e estranha de que o reduto de Chevardino era um posto avançado,
quando na verdade não passava de uma posição fortificada qualquer do flanco
esquerdo, e afirmando-se também que os Russos tinham aceitado a batalha numa
posição fortificada e escolhida previamente, quando a verdade é que essa
batalha se travou num local de todo imprevisto e por assim dizer, sem
fortificações.
Eis como em
verdade se passaram as coisas: escolheu-se um ponto no Kolotcha, que corta a
estrada real não em ângulo recto, mas em ângulo agudo, de tal sorte que o
flanco esquerdo estava em Chevardino, o direito nas imediações da aldeia de
Novoie e o centro em Borodino, na confluência dos rios Kolotcha e Voina. Esta
posição, protegida pelo no Kolotcha, era, evidentemente, a de um exército que
se propunha deter o inimigo em marcha ao longo da estrada de Smolensk a
Moscovo: eis qualquer coisa de evidente para quem quer que examine o campo de
batalha esquecendo-se de como os factos se passaram.
Napoleão, ao
dirigir-se, no dia 24, para Valuieva, não viu, segundo dizem os historiadores,
a posição ocupada pelos Russos entre Utitsa e Borodino (não podia vê-la porque
ela não existia). Tão-pouco viu a guarda avançada do exército, e só ao
perseguir a retaguarda tropeçou no flanco esquerdo dos Russos, isto é, no
reduto de Chevardino, e que, inesperadamente para os Russos, fez passar as suas
tropas para a outra margem de Kolotcha. E então os Russos, que não tinham
podido travar uma batalha geral, fizeram obliquar a ala esquerda da posição que
pensavam ocupar para se estabelecerem numa posição nem prevista nem
fortificada. Ao atravessar para a margem esquerda do no Kolotcha, portanto para
a esquerda da estrada, Napoleão transportara a futura batalha do flanco direito
para o esquerdo dos Russos, para a planície entre Utitsa Semionovskoie e
Borodino, planície não mais vantajosa como posição que qualquer outra, e ali se
travou a batalha de 26.
A traços
largos, o plano da batalha, tal como a descreveram e tal como ela realmente se
travou, seria o indicado na página seguinte. Se Napoleão não tivesse
atravessado o no Kolotcha no dia 24 à noite e não houvesse dado ordens para não
atacar o reduto nessa mesma noite, adiando o ataque para o dia seguinte,
seríamos obrigados a reconhecer que o reduto era o flanco esquerdo da posição
russa e a batalha ter-se-ia travado como os Russos esperavam. Neste caso os
Russos teriam defendido mais encarniçadamente ainda o reduto de Chevardino, seu
flanco esquerdo, atacando Napoleão no centro e à direita, e no dia 24
travar-se-ia a batalha geral na posição fortificada e prevista. Mas como o
ataque ao flanco esquerdo russo se verificou à noite, em consequência da
retirada da retaguarda russa, isto é, imediatamente após a batalha de
Gridnievo, e como os generais russos não puderam ou não quiseram desencadear no
dia 24 à noite a batalha geral, a primeira e parte principal da batalha de
Borodino estava perdida desde aquele mesmo dia, implicando, forçosamente, a
derrota do dia 26. Depois da perda do reduto de Chevardino, na manhã de 25, os
Russos viram-se privados do ponto de apoio no flanco esquerdo, sendo forçados a
restabelecer a ala esquerda e a fortificá-la à pressa, fosse como fosse. Mas o
facto de as tropas russas no dia 28 de Agosto se encontrarem em
entrincheiramentos insuficientes nada era comparado com o facto de os generais
russos não terem atribuído a devida importância à perda da posição do flanco
esquerdo, ou seja, a mudança da orientação da batalha da esquerda para a
direita, deixando que as suas linhas continuassem a estender-se da aldeia de
Novoie a Utitsa, e viram-se obrigados à transferência de tropas da direita para
a esquerda durante o combate. E foi assim que os Russos, em plena batalha, só
puderam opor à totalidade das tropas francesas a sua ala esquerda, isto é,
forças duas vezes mais fracas. Quanto aos ataques de Poniatowski a Utitsa e de
Uvarov ao flanco direito dos Franceses, eis incidentes inteiramente alheios à
marcha geral das operações.
E foi assim
que a batalha de Borodino se travou em circunstâncias completamente diferentes
daquelas por que foi descrita na intenção de ocultar os erros dos generais, e
isso apenas serviu para diminuir a glória do exército e do povo russos. Essa
batalha não se travou numa posição escolhida e fortificada com forças apenas um
pouco mais fracas do lado russo; foi aceite, em consequência da perda de
Chevardino, numa planície aberta e quase sem fortificações, com forças
duplamente mais fracas que as dos Franceses. Isto é, em condições tais teria
sido impossível a essas tropas não já baterem-se durante dez horas seguidas e
num combate indeciso, mas até mesmo aguentarem-se três horas que fosse sem
serem vítimas de um desastre completo e sem virem a ser completamente
desbaratadas.
Naturalmente
Barclay não queria trair-nos, procurava arranjar as coisas da melhor maneira,
calculara tudo Mas exactamente por isso é que nada vale. Nada vale hoje
precisamente por tudo ter previsto, prudente e cauteloso como bom alemão que é.
Como heide explicar-te?...
Supõe que
teu pai tinha um criado alemão, um criado excelente, que adivinhava todos os
seus pensamentos melhor do que tu próprio. E, como é natural, deixarias que ele
continuasse a servi-lo. Mas supõe que teu pai adoecia gravemente, então
tratarias de o pôr de lado e serias tu, com as tuas mãos desajeitadas e
inexperientes, que cuidarias dele e muito melhor do que, um estranho, por mais
hábil que fosse. Ora foi assim que procederam para com Barclay.
Enquanto a
Rússia esteve de perfeita saúde, qualquer estrangeiro podia servi-la, e este
era um excelente ministro, mas desde que a sua vida corre perigo, é de um homem
do seu sangue que ela precisa.
Lá no teu
meio, no teu clube, acharam que ele era um traidor. Caluniando-o dessa maneira
é que depois se envergonharão dos juízos temerários que sobre ele ousaram,
acabando por fazer dele um herói ou um génio, coisa ainda mais injusta. É um
alemão honrado e meticuloso...
- Há quem
diga, no entanto - voltou ele - que a guerra é como que uma partida de xadrez.
- Talvez - replicou o príncipe André -, mas com esta pequenina diferença: que
no xadrez, antes de mexeres uma pedra, te é dado pensares o tempo que quiseres,
o tempo não urge: e com esta diferença ainda: que o cavaleiro é sempre mais
forte que o peão, que dois peões são sempre mais fortes do que um, enquanto na
guerra um batalhão às vezes é mais forte que uma divisão e outras mais fraco
que uma companhia. Ninguém é, competente para conhecer a força relativa das
tropas. Acredita no que te digo: se o resultado dependesse das medidas tomadas
pelos estados- maiores, eu teria ficado no estado-maior e aí daria as minhas
ordens, mas é aqui, neste regimento, que eu e estes senhores temos a honra de
servir; é de nós, realmente, em minha opinião, que depende o dia de amanhã e
não deles... O êxito nunca dependeu, nunca dependerá, nem da posição, nem do
armamento, nem mesmo do número de tropas, sobretudo nunca dependeu da posição.
- Então de que depende?
- Do
sentimento íntimo que existe em mim, no sentimento íntimo de cada soldado. O
príncipe André olhava fixamente para Timokine, que, por sua vez, fitava o seu
comandante com olhos assustados e estupefactos. Ganha a batalha quem decide
firmemente ganhá-la. Porque perdemos nós a batalha de Austerlitz? As nossas
baixas eram quase iguais às dos Franceses, mas tínhamos dito a nós próprios
cedo de mais que seríamos vencidos e na verdade fomos. E se o dissemos é porque
não tínhamos porque nos bater ali: só queríamos abandonar o campo de batalha
quanto mais depressa melhor. «A batalha está perdida, tratemos de fugir!» E
demos ás de vila-diogo. Se assim não tivéssemos falado muito antes do fim da
jornada, só Deus sabe o que teria acontecido. Amanhã não diremos a mesma coisa.
Que nos espera amanhã? Haverá milhões de possibilidades diversas, infinitamente
variadas, que num momento dado farão que os deles ou os nossos homens desatem a
fugir, que este ou aquele seja morto. Mas a verdade é que tudo quanto neste
momento se faça não passa, de uma brincadeira.
Na realidade, esses com quem tu visitaste a
posição, em vez de ajudarem a marcha geral das operações, estão a entravá-la.
Só uma coisa os preocupa: os seus pequeninos interesses pessoais.
- Num
momento destes?! - indignou-se Pedro.
- Sim, num
momento destes - continuou o príncipe André. - Este momento, para eles, é
apenas o momento em que lhes é possível minar a situação de um adversário e
conseguir mais uma cruz ou mais uma palma. Quanto a mim, eis como a situação se
apresenta amanhã. Cem mil russos vão defrontar cem mil franceses. É um facto
que estes duzentos mil homens se vão bater e que sairão vencedores aqueles que
se mostrem mais encarniçados na luta e que menos se compadeçam de si próprios.
E dir-te-ei mais: aconteça o que acontecer, sejam quais forem as maquinações
dos chefes, seremos nós quem ganhará a batalha de amanhã. Amanhã, apesar de
tudo, ganharemos a batalha.
- Excelência, essa é a pura verdade -
pronunciou Timokine.- Será a altura de poupar vidas? Pode crer, os soldados do
meu batalhão não quiseram beber vodka. «Não é dia para isso», disseram eles.
- Está então
convencido de que se ganhará a batalha de amanhã? - volveu Pedro.
- Sim, estou - replicou o príncipe André,
distraidamente. - Uma decisão tomaria, se tivesse poderes para tal: não fazer
prisioneiros. Prisioneiros? Eis o que é cavalheiresco! Os Franceses
saquearam-me a casa e tentaram destruir Moscovo. Ultrajaram-me e outra coisa
não fazem senão ultrajar-me. São meus inimigos, e para mim todos são
criminosos. É preciso castigá-los. Desde que são meus inimigos não podem ser
meus amigos.
- Não fazer
prisioneiros - prosseguiu o príncipe André - seria transformar a guerra e
torna-la menos cruel. Em vez disso, não fizemos outra coisa senão brincar às
guerras. E esse foi o erro: mostrámo-nos magnânimos, etc.
Esta
magnanimidade, este sentimentalismo, fazem-me lembrar a senhora que desmaia
quando vê matar uma vitela. É tão boazinha que não pode ver correr sangue,
embora seja capaz de comer com apetite essa mesma vitela servida com um molho
saboroso.
Falam-nos nos direitos da guerra, de
cavalheirismo, de parlamentários, de humanidade para com os desgraçados e de
outras coisas no mesmo género. Tudo isso são tolices. Eu bem vi em 1805 todas
essas lindas coisas, esse cavalheirismo, esse respeito pelos parlamentários..
Enganaram-nos, e nós, pela nossa parte, fizemos o mesmo. Saqueiam casas que
lhes não pertencem, espalham dinheiro falso, e, coisa pior ainda, matam-nos
filhos, pais, e depois vêm-nos falar das leis da guerra e da generosidade para
com o inimigo. Não fazer prisioneiros, mas matá-los a todos e morrermos
também! ...Se não existisse esta falsa
magnanimidade na guerra, não caminharíamos para a morte senão quando a morte
fosse certa, como acontece hoje. Não haveria guerras com o pretexto de que
Pavel Ivanitch ofendeu Mikail Ivanitch. Mas em compensação quando houvesse uma
guerra como a de hoje então seria uma guerra a valer. E não haveria também
grandes massas de tropas em acção, como agora. Todos esses westfalianos e todos
esses hessianos que Napoleão traz consigo não o teriam seguido até à Rússia, e
nós, pela nossa parte, não nos teríamos ido bater na Áustria e na Prússia, sem
mesmo saber por que razão. A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais
repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como
uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível
necessidade. E daqui não há que sair, é preciso acabar com a mentira: a guerra,
sim, a guerra é a guerra e não um divertimento. De outro modo a guerra será um
entretenimento próprio de ociosos e de espíritos superficiais.
A classe
militar é das mais dignas, Mas que é a guerra? Que é preciso para se ter êxito
nas operações militares? Quais são os costumes da sociedade militar? A
finalidade da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a traição,
a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção do
exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra.
Quais os
costumes da classe militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da
disciplina, a ociosidade, a grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez.
E, apesar de tudo, é uma classe superior, respeitada por todos. Todos os reis,
à excepção do imperador da China, envergam o uniforme militar e as mais altas
recompensas reservam-se para aquele que mais gente matou. Reúnem-se os
soldados, como vai acontecer amanhã, para se chacinarem uns aos outros.
Matar-se-ão e ficarão mutilados dezenas de milhares de homens e depois haverá
cerimónias religiosas de acção de graças por se terem morto tantos homens, sem
que, no entanto, se deixe de exagerar o número dos que se mataram, proclamando-se
a vitória, dizendo que quanto maior o número de mortos mais retumbante esta
será. Como é possível que Deus os ouça e os escute lá de cima? - clamou o
príncipe André na sua voz colérica. – Oh, querido amigo, durante os últimos
tempos muito penoso me tem sido viver! Vejo que principiei a compreender coisas
de mais. Não é bom conhecer o homem os frutos da árvore do bem e do mal...
Ah,
compreendia-a perfeitamente. Sim, compreendia-a, e era isso mesmo que eu amava
nela, essa alma que trasbordava, essa sinceridade, essa candura, essa alma que
parecia não lhe caber no corpo... Sim, era essa alma que eu tão intensamente
amava, que tão feliz me fazia...
Findo que
foi o almoço. Napoleão, na presença de De Beausset, ditou a ordem do dia ao
exército.
- Curta e enérgica! - disse ele quando acabou
de ler a proclamação, escrita de um só jacto, sem uma rasura.
A
proclamação dizia:
Soldados!
Eis aqui a batalha que tanto desejáveis! A vitória depende de vós e é-nos
indispensável; com ela teremos abundância, bons aquartelamentos de Inverno e um
rápido regresso à pátria! Comportai-vos como vos comportastes em Austerlitz, em
Friedland, em Vitebsk e em Smolensk e a posteridade recordara, orgulhosa, as
vossas façanhas deste dia. Que se possa dizer de cada um de vós: este esteve na
grande batalha de Moscovo.
ORDEM DE
BATALHA
Dada no acampamento imperial, na retaguarda de
Mojaisk, a 6 de Setembro de 1812
Ao amanhecer, as duas novas baterias,
instaladas durante a noite no plaino do príncipe de Eckmühl, romperão fogo contra
as duas baterias inimigas dispostas na sua frente.
Na mesma
altura, o general Pernety, comandante de artilharia do 1º corpo, com as trinta
bocas de jogo da divisão Compans e todos os obuses das divisões Dessaix e
Friant, que avançarão, romperá fogo e inundará de granadas a bateria inimiga, a
qual, deste modo, terá contra si vinte e quatro peças da Guarda, trinta da
divisão Compans e oito das divisões Friant e Dessaix, total, sessenta e duas
bocas de fogo.
O general
Foucher, comandando a artilharia do 3.` corpo, colocar-se-á, com todas as
baterias de obuses dos 3º e 8º corpos, num total de dezasseis, em volta da
bateria que bombardeia o reduto da esquerda, o que perfará um conjunto de
quarenta bocas de fogo contra esta bateria.
O general
Sorbier está preparado para à primeira voz se dirigir com todas as baterias de
obuses da Guarda contra uma ou outra das fortificações.
Durante este
canhoneio, o príncipe Poniatowski dirigir-se-á, através da floresta, em
direcção à aldeia e contornará a posição inimiga.
O general
Compans embrenhar-se-á na floresta para tomar o primeiro reduto.
Uma vez a batalha começada desta sorte, as
ordens serão dadas consoante os movimentos do inimigo.
O canhoneio
da esquerda iniciar-se-á assim que se ouvir o canhoneio da direita.
Os
atiradores da divisão Morand e das divisões do vice-rei, assim que virem
principiado o ataque da direita, abrirão fogo muito intenso.
O vice-rei ocupará a aldeia, transpondo as
três pontes, e seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e de Friant, que,
sob o seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as
demais tropas.
Tudo isto
será feito com ordem e método e conservando sempre uma boa reserva de homens.
Este
dispositivo, pouco claro e assaz confuso, se assim nos é permitido
referirmo-nos, sem blasfémia, ao génio de Napoleão, encerrava quatro pontos,
quatro disposições.
Nenhum deles se podia cumprir nem nenhum foi
cumprido.
A ordem
dizia, em primeiro lugar, que as baterias instaladas no local escolhido pelo
imperador, bem como as peças de Pernety e de Foucher, que a elas se deveriam
associar, ou seja, na sua totalidade, cento e duas bocas de fogo, romperiam
fogo e inundariam de granadas as flechas russas e o reduto. Eis o que era
impossível, visto que dos locais designados os projécteis não Podiam alcançar
as fortificações russas e estas cento e duas peças disparariam debalde até que
um comandante, procedendo contra as ordens dadas, as mandasse avançar.
A sua
segunda resolução determinava que Poniatowski se dirigisse à aldeia, através da
floresta, para contornar a ala esquerda dos Russos. Eis o que não podia
executar-se, e o não foi, pois a Poniatowski deparou-se-lhe, na floresta,
Tutchkov, que lhe cortou o passo e o impediu de contornar a posição.
A terceira
determinação dizia que o general Compans atravessaria a floresta para se
apoderar da primeira fortificação. A divisão Compans não pôde apoderar-se desta
fortificação e foi repelida, visto que, ao desembocar da floresta, se viu
obrigada a alinhar sob um fogo de metralha que Napoleão não previra.
E a quarta,
por fim: «O vice-rei ocupará a aldeia de Borodino transpondo as três pontes, e
seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e Friant, que, sob o seu comando,
se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as demais tropas.»
Tanto quanto
é possível interpretar esta ordem, não quanto sua confusa redacção, mas de
acordo com as tentativas feitas pelo vice-rei para a executar, devia ele
atravessar Borodino à esquerda do reduto, enquanto as divisões Morand e Friant
atacariam a frente ao mesmo tempo. Esta ordem, assim como todos os outros
pontos do dispositivo, não foi executada nem o podia ser. Depois de ter
ultrapassado Borodino, o vice-rei foi repelido para o no Kolotcha e não pôde
avançar mais: quanto às divisões de Morand e Friant, essas não tomaram o
reduto, sendo esmagadas, e o reduto apenas foi tomado pela cavalaria no fim da
batalha, circunstância que Napoleão naturalmente não previra.
Assim,
nenhuma das disposições preconizadas foi executada e não o podia ser. Lê-se
ainda nesse documento que, uma vez iniciada a batalha de acordo com o
dispositivo assente, ordens ulteriores seriam dadas, consoante os movimentos do
inimigo. Era, portanto, de presumir que durante a batalha Napoleão desse todas
as ordens necessárias. Ora tal não aconteceu, o que aliás seria impossível,
visto que, como depois veio a saber-se, o imperador, durante o combate, se
manteve tão afastado que não podia ter conhecimento do desenrolar da batalha e
que nenhuma das suas ordens poderia ter sido executada.
Muitos
historiadores garantem que a batalha de Borodino não foi ganha pelos Franceses
devido a Napoleão, nesse dia, estar constipado, e que, se não fosse isso, as
suas ordens anteriores à batalha e durante ela teriam sido ainda mais geniais,
a Rússia teria sido derrotada e a face do mundo teria sido outra. Para os
historiadores que admitem ser a Rússia obra da vontade de um único homem, de
Pedro, o Grande, que a França se metamorfoseou de república em império e que os
exércitos franceses penetraram naquele país graças à vontade de um só homem, de
Napoleão, aceitar que a Rússia se manteve poderosa apenas porque o imperador
estava muito constipado no dia 26 eis o que é raciocinar com toda a lógica:
Se tivesse
dependido da vontade de Napoleão travar ou não a batalha de Borodino, se dele
dependesse tomar esta ou aquela disposição, é evidente que uma constipação,
capaz, necessariamente, de influenciar as manifestações da sua vontade, podia
ter sido a causa da salvação da Rússia e o criado de quarto que no dia 24 se
esqueceu de dar umas botas impermeáveis ao imperador seria a esta hora,
certamente, o nosso salvador. Nesta ordem de ideias, a conclusão é
indiscutível, tão indiscutível como o gracejo de Voltaire ao atribuir a matança
de S. Bartolomeu a uma indisposição de estômago de Carlos IX. Mas, para os
homens que se recusam a admitir que os acontecimentos importantes possam ser a
consequência da manifestação da vontade de um só homem, o argumento anterior,
além de pura e simplesmente absurdo, é contrário a toda a verdadeira lógica
humana. Quando se inquire da causa dos acontecimentos históricos, outra
resposta pode dar-se, qual seja a que o caminho das coisas deste mundo está
determinado antecipadamente, dependendo do concurso do livre arbítrio de todos
os actores dos acontecimentos, não sendo senão externa e aparente a influência
que sobre eles possam exercer os Napoleões.
Por estranho
que pareça à primeira vista a asserção segundo a qual a ordem dada por Carlos
IX para a matança de S. Bartolomeu só aparentemente dependeu da sua vontade, e
que a batalha de Borodino, em que oitenta mil homens perderam a vida, não haja
sido ordenada por Napoleão, embora tenha sido ele quem deu essa ordem e quem
orientou os lances da batalha, pois apenas julgou fazê-lo, por mais ilógico que
se suponha, a dignidade humana que nos diz que cada um de nós não é mais nem
menos homem do que qualquer Napoleão leva-nos a admitir essa solução como uma
hipótese, e as investigações históricas plenamente confirmam tal ponto de
vista.
Na batalha de Borodino, Napoleão não disparou
um único tiro, não matou quem quer que fosse. Foram os seus soldados quem tudo
fez. Por consequência, não foi ele quem matou. Os soldados do exército francês
acorreram a matar o seu semelhante não para executarem ordens, mas de livre
vontade. Todo o exército - franceses, italianos, alemães, polacos – esfomeado,
esfarrapado, morto de fadiga, ao ver-se diante desse outro exército que lhe
cortava o passo para Moscovo, teve a impressão de que «o que não tem remédio,
remediado está», Se naquele momento Napoleão tivesse proibido os seus soldados
de se baterem com os Russos, tê-lo-iam matado a ele, e teriam ido bater-se
fosse como fosse, visto isso ser inevitável.
Quando
ouviram ler a ordem do dia de Napoleão, na qual lhes prometia, para os
recompensar dos ferimentos e da morte, o orgulho, para a posteridade, de terem
estado na batalha de Moscovo, gritaram. «Viva o Imperador!» exactamente como
tinham gritado: «Viva o Imperador!» ao verem a criança que trespassava o globo
terrestre com um taco de emboca-bola ( quadro com o filho de Napoleão), e tal
qual como o fariam de cada vez que lhes dissessem uma tolice do mesmo género.
Outra coisa, não podiam fazer senão gritar: «Viva o Imperador!» e marchar para
a batalha. Eis a única maneira, de virem a encontrar em Moscovo, depois da
vitória, pão para a boca e descanso para o corpo.
E eis como não foi por causa das ordens do seu
amo que eles mataram o seu semelhante. E também não foi Napoleão quem dirigiu a
luta, visto nada se ter cumprido do dispositivo que ele traçara, e que ele
próprio nada soube da marcha da batalha. Assim, pois, o facto de estes soldados
terem chacinado o seu semelhante não veio a produzir-se por vontade de
Napoleão, mas deu-se, sem sua intervenção, graças à vontade dessas centenas de
milhares de homens que, intervieram no acontecimento. Bonaparte teve apenas a
ilusão de, que tudo era obra de sua vontade. Por isso mesmo, o ter estado, constipado
ou não conta mais para a história que a constipação de qualquer dos seus mais
modestos soldados. A constipação de Napoleão no dia 26 de Agosto ainda se torna
menos importante desde o momento em que são injustificadas as demonstrações dos
historiadores ao dizerem ter sido por causa desta indisposição que as suas
resoluções durante a batalha foram menos eficazes do que das outras vezes.
O dispositivo atrás citado não era pior do que
os anteriores, era mesmo melhor que todos os que tinham servido para ganhar
outras batalhas. As supostas ordens dadas por Napoleão durante o combate não
eram piores que as precedentes, mas exactamente iguais. No entanto esse
dispositivo e essas ordens pareceram piores porque a batalha de Borodino foi a
primeira que Napoleão não ganhou. Os mais belos e mais profundos planos parecem
sempre maus e os sábios estrategos criticam-nos com um ar proficiente sempre
que acontece não terem levado à vitória; pelo contrário, parecem excelentes as
mais contestáveis disposições, e os autores mais sérios não se cansam de lhes
louvar os méritos, enchendo sobre eles volumes e volumes, desde que levaram à
vitória.
O
dispositivo de Weirother em Austerlitz era modelar no seu género; no entanto,
foi desaprovado e desaprovaram-no precisamente por causa da sua perfeição, da
minúcia dos seus pormenores.
Na batalha de Borodino, Napoleão desempenhou o
seu papel de representante do poder tão bem ou melhor do que em qualquer das
outras batalhas. Nada fez que prejudicasse a marcha dos acontecimentos. Tomou
as medidas mais sensatas; não perdeu a cabeça, não caiu em qualquer contradição,
manteve o sangue-frio e não fugiu do campo de batalha. Mercê do seu grande
tacto e da sua experiência guerreira, soube desempenhar com calma e dignidade o
papel de personagem fictícia de chefe supremo.
A fortuna é
uma verdadeira cortesã, sempre o disse e começo a senti-lo- disse Napoleão.
- Não tenho
nem paladar nem olfacto – disse Napoleão, cheirando o copo. - Esta constipação
é insuportável. Estão sempre a falar em medicina. Que medicina é esta que não é
sequer capaz de curar uma constipação? Corvisart deu-me estas pastilhas, mas
para nada prestam. Poderão curar? É impossível curar. O nosso corpo é uma
máquina de viver. Está organizado para isso, é da sua natureza; deixe-se nele a
vida exprimir-se livremente, que ela própria se defenda: obrará maiores
prodígios do que se a cumularmos de remédios. O nosso corpo é semelhante a um
relógio perfeito com corda para um certo tempo; o relojoeiro não tem o poder de
o abrir, mas apenas de o manusear às apalpadelas e de olhos vendados... O nosso
corpo é uma máquina de viver, eis tudo.
E embalado
nas definições, coisa tão do seu agrado, logo ali deu outra. - Sabe o que é a
arte da guerra, Rapp? - perguntou. - É a arte de ser mais forte do que o
inimigo em determinado momento. Eis tudo.
Napoleão, de
pé, no cômoro, estava de óculo assestado, e o limitado campo da objectiva
deixava-lhe ver fumo e soldados, ora o fumo e os soldados franceses ora o fumo
e os soldados russos. Assim que observava, porém, o terreno à vista desarmada
já lhe não era possível situar exactamente o que acabara de ver. Desceu do
cabeço e começou a passear de um lado para o outro.
A verdade é
que nem do lugar em que estava Napoleão nem do alto da eminência onde tinham
ficado vários dos seus generais, nem mesmo das próprias linhas agora ocupadas
umas vezes pelos Franceses, outras pelos Russos, soldados mortos, feridos,
vivos, aterrorizados ou meio loucos, em parte alguma podia saber-se o que se
estava a passar naquele local.
Durante
muitas horas, naqueles sítios, no meio do ininterrupto troar das peças de
artilharia e da fuzilaria das espingardas, tão depressa apareciam os Russos
como os Franceses e ora eram soldados de infantaria ora de cavalaria que caíam,
disparavam, tropeçavam uns nos outros, gritando e fugindo sem saber o que
deviam fazer.
Dos diversos
pontos do campo de batalha estavam sempre a chegar ajudantes-de-campo expedidos
ao imperador, oficiais de ordenança dos marechais encarregados de trazer
informações sobre a marcha da batalha, mas tudo o que diziam era falso, pois no
calor da batalha não se podia dizer o que estava a passar-se num determinado
momento e, aliás, muitos destes oficiais não Podiam atingir sequer os pontos
designados, limitando-se a repetir oque ouviam. Além disso, enquanto eles
percorriam as duas ou três verstas que os separavam de Napoleão, as coisas
modificavam-se e as notícias por eles trazidas deixavam de corresponder à
situação. Assim, um ajudante-de-campo do vice-rei veio anunciar que Borodino
fora tomada e que a ponte do Kolotcha estava nas mãos dos Franceses,
perguntando a Napoleão se dava ordem para as tropas atravessarem o rio, ao que
lhe foi respondido que se mandassem alinhar as tropas na outra margem e que
esperassem aí. No momento, porém, em que era dada esta ordem, melhor ainda, mal
o ajudante-de-campo saíra de Borodino, a ponte fora retomada e queimada pelos
Russos.
De regresso
das flechas, um ajudante-de-campo, muito pálido, o terror pintado no rosto,
anunciou ao imperador que o ataque fora repelido, que Compans estava ferido e
Davout fora morto. Enquanto, todavia, ele comunicava estas notícias, as
fortificações haviam sido de novo ocupadas por outras tropas e Davout
continuava vivo, pois apenas fora ligeiramente ferido.
Guiando-se
por estas informações, evidentemente falsas, Napoleão dava ordens já cumpridas
ou que teriam sido impossíveis de executar.
Os marechais
e os generais que se encontravam mais perto dos acontecimentos, mas que, tal
como Napoleão, não participavam da batalha e raramente penetravam na zona de
fogo, tomavam as suas disposições sem consultar o imperador e transmitiam as
suas ordens sobre onde devia incidir o fogo e como a cavalaria e a infantaria
deveriam intervir. Mas estas ordens, bem como as do imperador, só em pequena
escala eram executadas e muito raramente, a maior parte das vezes ao contrário
das circunstâncias.
As tropas
que recebiam ordem para avançar, surpreendidas pela metralha, debandavam;
aquelas que recebiam ordem para permanecer no seu lugar, ao verem surgir o
inimigo inopinadamente, punham-se em fuga ou então atacavam-no, e a cavalaria,
sem ter recebido ordem para isso, lançava-se na perseguição dos russos em
debandada. Assim, dois regimentos de cavalaria que atravessaram a ravina de
Semionovskoie, mal atingiram o cume viraram de rédea, regressando ao mesmo sítio
a galope. E outro tanto aconteceu com a infantaria, que muitas vezes se
precipitou sobre pontos que não estavam prescritos.
Todas as
ordens relativas às deslocações das peças de artilharia, dos batalhões de
fuzileiros e das tropas montadas, com o objectivo de carregar sobre a
infantaria russa, quem as deu foram os comandantes mais próximos das fileiras,
sem pedirem conselho nem a Ney, nem a Davout, nem a Murat, quanto mais a
Napoleão.
Não receavam ser castigados por não haverem
executado o que estava prescrito ou por terem agido de moto próprio, pois a
verdade é que numa batalha ninguém pensa senão no que tem de mais precioso, ou
seja, na própria vida, e o que pode acontecer é que umas vezes a salvação
esteja na fuga para a retaguarda e outras na marcha avante.
Estes
homens, no calor da refrega, agiam segundo as circunstâncias. Na verdade, todos
estes movimentos para a frente ou para trás não aliviavam nem modificavam a
posição das tropas. Esses ataques, quer a pé, quer a cavalo, não produziam
grande mortandade; o que semeava os ferimentos, as mutilações e a morte eram os
projécteis, as balas que voavam por todos os lados na área onde se moviam as
tropas. Logo que os homens atingiam a zona a que os projécteis não chegavam, os
comandantes, na retaguarda, obrigavam-nos a cerrar fileiras, restabelecendo a
disciplina, e, graças a esta disciplina, voltavam a expedi-los para aquele
círculo de fogo onde o medo da morte os fazia perder de novo o sangue-frio,
entregando-os ao cego instinto das multidões.
- Temos de
lhes dar as reservas - decidiu, com gesto enérgico. - Que lhes devemos mandar?
Que acha? - perguntou a Berthier, a esse «ganso que transformei em águia», como
disse mais tarde Napoleão.
(…)Embora
não houvesse qualquer vantagem especial em mandarem a 2ª em vez da 1ª e
existisse, pelo contrário, o inconveniente da perda de tempo que resultava do
facto de se ter de deter a divisão que se pusera em movimento para a substituir
pela Friant, a ordem foi executada fielmente. Napoleão não se dava conta de que
estava a proceder para com as suas tropas como o médico cujos remédios resultam
mais perniciosos que a doença, maneira de agir aliás que ele muito bem sabia
ver e criticar nos outros.
Napoleão
estava sentindo essa penosa sensação de jogador venturoso que atirou para a
mesa de jogo, num desvario, todo o seu dinheiro, habituado que estava a ganhar
sempre, e de súbito, precisamente quando calculou todos os azares da partida,
pressente que quanto mais reflectir sobre a jogada tanto mais certa será a
perda.
As suas
tropas eram as mesmas, os mesmos os seus generais, análogas as medidas tomadas,
o plano de batalha era o mesmo, mesmíssima a sua proclamação breve e enérgica.
Ele próprio não mudara, tinha a certeza. Pensava, até, dispor de muito mais
experiência e habilidade que outrora. O inimigo, por sua vez, também era o
mesmo de Austerlitz e de Friedland. E, não obstante a marretada tremenda que
lhe dera, resultava impotente. Parecia bruxedo.
Empregou
todas as suas medidas outrora invariavelmente coroadas de êxito - concentração
do fogo das baterias sobre um mesmo ponto, ataque das reservas para romper as
linhas, assalto da cavalaria dos homens de ferro -, todas empregara agora e não
só não conseguia a vitória, como eram sempre as mesmas as notícias que
continuamente vinham até ele: generais mortos ou feridos, necessidade urgente
de reforços, impossibilidade de vencer a resistência dos Russos, desorganização
das tropas francesas.(…)
O imperador,
por virtude da sua grande experiência, sabia de sobra o que significava uma
batalha de oito horas, batalha em que empregara todos os esforços e em que o
atacante ainda não levara a melhor. Para ele era quase uma batalha perdida e,
no ponto instável em que a luta se encontrava, o mais pequeno incidente podia
perdê-los - a ele e ao exército.
Ao rememorar toda aquela estranha campanha da
Rússia em que não obtivera qualquer vitória, onde, em dois meses, não tomara
nem bandeiras, nem canhões, nem qualquer corpo de exército, ao evocar as
expressões que o cercavam, secretamente preocupadas, ouvindo as referências à
resistência obstinada do inimigo, sentia-se tomado de uma angústia no género
das que se sentem nos pesadelos, e ao espírito acorriam-lhe, de súbito, todas
as circunstâncias infelizes que o podiam perder. Os Russos podiam atacar a sua
ala esquerda; podiam perfurar-lhe o centro; um projéctil perdido podia matá-lo.
Tudo era possível. Em todas as batalhas anteriores apenas pensara nas
possibilidades de êxito: agora só esperava e pressentia circunstâncias
funestas. Sim, parecia um pesadelo em que um homem, atacado por um malfeitor,
por mais esforços que faça para brandir uma arma e atingir o adversário, sente
que a mão lhe cai, mole e impotente, como um trapo, enquanto o sentimento
horrível de uma morte inevitável se apodera do desventurado indefeso.
(…) O
imperador deteve-se e recaiu na meditação ... Não estava nas suas mãos fazer
parar o que via desenrolar-se diante dos seus olhos, embora passasse por
iniciador e responsável de semelhante obra, e pela primeira vez, perante o seu
fracasso, essa obra lhe parecia inútil e horrível.
Um dos generais que se aproximara de Napoleão
permitiu-se propor-lhe que autorizasse a velha Guarda a entrar em acção. (…) Napoleão
baixou a cabeça e permaneceu por muito tempo silencioso. - A oitocentas léguas
de França não sacrificarei a minha Guarda - disse ele, e, dando meia volta,
regressou a Chevardino.
A sua larga
experiência da guerra, a sua prudência de velho, diziam-lhe não ser possível a
um só homem dirigir centenas de milhares de outros homens que lutam com a
morte. Kutuzov sabia que o que decide do destino das batalhas não eram nem as
medidas tomadas pelo general-chefe, nem as posições ocupadas pelos soldados,
nem o número dos canhões e dos mortos, mas essa força inapreensível que se
chama «o moral das tropas» e que ele procurava descobrir e dirigir na medida do
possível.
(…) nos
assuntos indecisos é sempre o mais tenaz que sai vitorioso.
(…) E graças
a essa cadeia indefinida e misteriosa que mantinha em todo o exército o mesmo
estado de espírito a que se costuma chamar «moral das tropas» e que constitui o
nervo vital da guerra, as palavras de Kutuzov e a sua ordem do dia anunciando a
batalha para a manhã seguinte imediatamente se transmitiram a todos os pontos
do corpo do exército.(…) Ao inteirar-se de que no dia seguinte atacaria o
inimigo, ao ouvir nas esferas superiores do exército a confirmação daquilo em
que queria crer, toda aquela gente extenuada e hesitante se sentiu consolada e
ganhou confiança.
Sim, a
piedade, o amor dos nossos irmãos, daqueles que nos amam, o amor dos que nos
odeiam, o amor dos nossos inimigos, sim, esse amor que Deus veio pregar sobre a
Terra, esse amor de que me falava a princesa Maria e que eu não compreendia,
eis o que me faz ter pena da vida, eis a única coisa que me restaria se ainda
tivesse vida para viver. Mas agora é tarde, tarde de mais, eu bem sei.
O aspecto
aterrador do campo de batalha, coberto de mortos e moribundos, o peso que
sentia na cabeça e a nova de que vinte dos, seus generais tinham sido mortos ou
postos fora de combate, tudo isto e o reconhecimento, a que se via obrigado, da
impotência do seu pulso, outrora todo poderoso, produziu um efeito inesperado
em Napoleão, que ordinariamente gostava de ver os mortos e os feridos no
intuito de pôr à prova a sua força moral, como costumava dizer. Naquele dia o
pavoroso aspecto do campo de batalha vencera a sua força moral, coisa em que
estribava o seu mérito e a sua grandeza. Retirou-se precipitadamente e
regressou ao reduto de Chevardino.(…) Naquele momento não desejava nem Moscovo,
nem a vitória, nem a glória. Para que queria a glória? Nada mais desejava
naquele momento além do repouso, da serenidade e da liberdade.(…)De novo se
deixou mergulhar nesse mundo fictício, povoado de visões de grandeza, e de
novo, como um cavalo que, movendo uma nora, julga realizar uma tarefa útil para
si, cumpria, docilmente, o cruel, doloroso, inumano e penoso papel para que
estava predestinado.
E não foi só
naquela hora e naquele dia que o espírito e a consciência se lhe obscureceram,
àquele homem sobre quem pesava mais do que sobre qualquer outro ser humano a
responsabilidade do que se estava a passar.
Nunca, até
ao último dos seus dias, pôde compreender o que era o bem, o que era a beleza,
o que era a verdade, nem jamais compreendeu a significação dos seus próprios
actos por de mais opostos à verdade e ao bem para que ele pudesse
compreender-lhes o significado. Nunca pôde renegar os seus próprios actos, tão
louvados por meio mundo, e assim se viu forçado a renegar a verdade e o bem e
tudo o que era verdadeiramente humano.
Não foi só
naquele dia que ele, percorrendo o campo de batalha juncado de soldados mortos
ou mutilados - por obra e graça da sua vontade, assim pensava -, pôde calcular
quantos eram os mortos russos por cada morto francês, e, enganando-se a si
próprio, achara razões para rejubilar, pois, segundo ele, por cada um dos seus
tinham caído cinco do inimigo. Não foi só naquele dia que ele disse, como
escreveu numa carta para Paris: «O campo de batalha estava soberbo», por haver
mais de cinquenta mil cadáveres. Também na ilha de Santa Helena, no silêncio da
solidão, onde, segundo declarara, pensava consagrar os seus ócios a relatar as
obras que levara a cabo, escreveria:
A guerra da
Rússia devia ter sido a guerra mais popular dos tempos modernos: era a guerra
do bom senso e dos verdadeiros interesses, a guerra do repouso e da segurança
geral; era puramente pacífica e conservadora.
Era pela
grande causa, pelo fim dos acasos e pelo princípio da segurança. Um horizonte
novo, novos trabalhos iam, desenrolar-se, cheios do bem-estar e da prosperidade
de todos. Estava fundado o sistema europeu; restava apenas organizá-lo.
Satisfeitos que fossem estes grandes objectivos e tranquilo que me visse em
toda a parte, teria tido também o meu Congresso e a minha Santa Aliança. Ideias
que me roubaram.
Nessa
reunião de grandes soberanos teríamos tratado dos nossos interesses em família
e contaríamos então, de amo a servidor, com todos os povos. Deste modo teria
chegado a ser a Europa verdadeiramente um único povo e toda a gente por onde
quer que viajasse encontrar-se-ia sempre na pátria comum. Teria obtido o livre
trânsito em todos os rios navegáveis, a comunidade dos mares, e que os grandes
exércitos permanentes fossem reduzidos daí para o futuro à escolta dos
soberanos.
De regresso a França, no seio da pátria,
grande, forte, magnífica, tranquila, gloriosa, teria proclamado os seus limites
imutáveis; teria declarado todas as guerras futuras puramente defensivas e
qualquer engrandecimento novo antinacional.
Teria
associado meu filho ao império, a minha ditadura acabaria, e teria começado um
reinado constitucional... Paris teria sido a capital do mundo e os Franceses a
inveja das nações!...
Os meus
ócios e os dias da minha velhice teriam sido consagrados, na companhia da
imperatriz e enquanto durasse o aprendizado real de meu filho, a visitar,
vagarosamente, e como um verdadeiro casal de aldeões, com os nossos próprios
cavalos, todos os recantos do Império, ouvindo as queixas, fazendo justiça,
semeando por toda a parte monumentos e boas obras.
Destinado
pela Providência para desempenhar o papel lamentável e servil de carrasco das
nações, queria convencer-se de que o seu objectivo era o bem dos povos e que
podia orientar o destino de milhões de seres fazendo a sua felicidade.
Dos 400 mil
homens que atravessaram o Vístula - escreveria mais adiante a propósito da
campanha da Rússia - metade eram austríacos, prussianos, saxões, polacos,
bávaros, wurtem, burgueses, espanhóis, italianos, napolitanos. Um terço do
exército imperial propriamente dito era formado por holandeses, belgas,
naturais das margens do Rena, piemonteses, suíços, genebrinos, toscanos,
romanos, componentes da 32ª divisão militar, habitantes de Brémen, Hamburgo,
etc.; nele apenas 140 mil homens falavam francês. A expedição da Rússia custou
menos de 50 mil homens à França actual; o exército russo, na retirada de Vilna
para Moscovo e nas diversas batalhas que se travaram perdeu quatro vezes mais
homens que o exército francês; no incêndio de Moscovo perderam a vida 100 mil
russos, mortos de frio e de fome nas florestas; e por último, na sua marcha de
Moscovo até ao Óder, o exército russo foi também castigado pelas intempéries da
estação; quando chegou a Vilna, apenas contava 50 mil homens e em Kalisch tinha
menos de 18 mil!.
Napoleão
pensava, pois, que esta guerra contra a Rússia era obra sua, e o horror do que
acontecera não lhe causava a mais pequena emoção. Assumia toda a
responsabilidade dos acontecimentos e a sua mente ofuscada achava justificação
no facto de entre as centenas de milhares de homens sacrificados haver menos
franceses do que bávaros ou habitantes do Hesse.
Alguns
historiadores foram de parecer de que bastaria, Napoleão ter mandado avançar a
sua velha Guarda para a batalha ser ganha. Mas quem assim se exprime parece
supor que o Outono pode de súbito transformar-se em Primavera, coisa
impossível. Se Napoleão não ofereceu a sua Guarda, não foi porque o não
quisesse, mas por lhe ser impossível. Tanto os generais, como os oficiais, como
os soldados, sabiam que assim era: o estado de desmoralização do exército não o
permitia.
Não foi só
Napoleão quem sentiu que o seu braço terrível tombava sem força: todos os
generais, todos os soldados do exército francês, quer combatentes, quer não
combatentes, depois do que tinham visto nas batalhas precedentes, em que o
inimigo costumava debandar após uma resistência de um contra dois, haviam sido
tomados de um pavor geral na presença de adversário que, após haver perdido metade
dos seus efectivos, ali continuava tão ameaçador no fim como no princípio da
batalha. A força moral do exército francês atacante estava exausta. A vitória
que os Russos obtiveram em Borodino não foi uma dessas vitórias que se
proclamam com trapos hasteados em paus, à maneira de troféus, uma dessas
vitórias que se medem pela extensão do território conquistado, mas uma vitória
moral, uma dessas vitórias que convencem o adversário da superioridade moral
que se lhe opõe e da inutilidade dos seus próprios esforços. A invasão
francesa. à semelhança de uma fera enraivada mortalmente ferida na sua
carreira, pressentia estar perdida, mas assim como o exército russo, duas vezes
mais fraco, não podia ceder, a invasão não podia deter-se. Graças à velocidade
adquirida, os Franceses ainda iriam até Moscovo, mas seria aí, sem que as
forças russas tivessem de fazer novos sacrifícios, que soçobrariam, perdido que
fora todo o seu sangue pela ferida mortal que receberam em Borodino, Uma das
consequências directas da batalha foi obrigar Napoleão, sem qualquer motivo
definido, a fugir de Moscovo, a bater em retirada pela velha estrada de
Smolensk, suportando a perda de um exército invasor de quinhentos mil homens e
assistindo à destruição da França napoleónica, sobre a qual, pela primeira vez,
em Borodino, se abatera o braço de um adversário com força moral superior.
A
inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento. As
leis de um movimento qualquer só são inteligíveis ao homem quando lhe é dado
examinar separadamente as unidades que o compõem.
A verdade
porém é que é desta divisão arbitrária do movimento ininterrupto em unidades
isoladas que resulta ao mesmo tempo a maior parte dos erros humanos.
Quem há aí que não conheça o sofisma dos
antigos segundo o qual Aquiles nunca apanharia a tartaruga ainda que caminhasse
dez vezes mais depressa do que ela? Enquanto Aquiles percorre a distância que o
separa da tartaruga, esta ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e
quando Aquiles tiver percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á
adiantado a centésima e assim por diante até ao infinito. Este problema
afigurava-se insolúvel aos antigos, quando o absurdo da conclusão dada resulta
apenas do facto de se decompor o movimento arbitrariamente em unidades, quando
o certo é que o movimento de Aquiles e o da tartaruga se produzem
ininterruptamente.
Ao tomarmos
as unidades de um movimento nas suas parcelas cada vez mais pequenas, não
fazemos mais do que aproximarmo-nos de uma solução sem nunca a podermos
atingir. Só admitindo as grandezas infinitesimais e a sua progressão ascendente
até à décima e depois somando esta progressão geométrica podemos obter a
solução do problema. O novo ramo das matemáticas, que é a ciência dos
infinitesimais, como sucede com os mais complicados problemas do movimento,
resolve agora questões outrora consideradas insolúveis. No exame destes
problemas, admitindo os números infinitesimais, esta nova ciência restabelece
as condições fundamentais do movimento, isto é, a sua continuidade absoluta, e
por essa razão corrige o erro que a inteligência humana não pode evitar quando
estuda as unidades parcelares do movimento em vez do movimento contínuo.
No que diz
respeito ao estudo das leis do movimento histórico, a mesma coisa acontece.
O movimento da Humanidade, consequência de
inúmeras vontades humanas parcelares, não sofre interrupções. A finalidade da
História é a compreensão das leis deste movimento.
Mas, para
compreender as leis do movimento contínuo resultante da soma de todas as
vontades humanas, a inteligência tem de admitir unidades parcelares e
arbitrárias, O primeiro processo usado pelos historiadores consiste em tornar
uma série de acontecimentos que se sucedem e examiná-los separadamente, quando
é certo que não há e não pode haver princípio para nenhum acontecimento, pois
todos dependem invariavelmente uns dos outros. O outro processo consiste em se
considerarem os actos de um homem, rei ou grande general, como a soma das
vontades de todos, quando o que acontece é que essas vontades nunca se traduzem
na actividade de uma só personagem histórica, seja ela qual for.
A ciência
histórica, na sua evolução, admite unidades cada vez menores, procurando deste
modo aproximar-se da verdade. Mas, por mais pequenas que elas sejam, chegamos à
conclusão de que conceber uma unidade separada das outras, aceitar o começo de
um fenómeno qualquer, admitir que a vontade de todos se exprima nos actos de
uma só pessoa, é caminho errado.
Toda a
conclusão histórica se desfaz em pó, sem deixar rasto atrás de si, sob a
pressão de qualquer ínfimo esforço crítico, desde que esta crítica eleja como
medida de observação uma unidade maior ou mais pequena, coisa a que tem inteiro
direito, visto ser sempre arbitrária a unidade histórica. Só podemos esperar
compreender as leis históricas tomando para base das nossas observações a
unidade infinitesimal, os diferenciais da História, quer dizer, as tendências
uniformes dos homens, e integrando-as, isto é, somando-as umas às outras.
Nos quinze
primeiros anos do século XIX milhões de homens se movimentam na Europa. Todos
abandonam as suas preocupações habituais, deslocando-se de um lado para o outro
do continente, e é vê-los saquear, matar, vencer e desesperarem. Durante estes
anos a vida muda, arrastada num movimento de princípio intenso, para depois
declinar. Qual a causa de semelhante fenómeno ou quais as leis que o
produziram? - pergunta a razão humana.
Os historiadores respondem a esta pergunta
expondo-nos os actos e os discursos de uma dezena de homens reunida num
edifício da cidade de Paris, e dão a esses actos e a esses discursos o nome de
«revolução». Depois oferecem-nos a biografia, em todos os seus pormenores, de
Napoleão e de várias outras personalidades simpáticas ou hostis para com essa
revolução, referindo-nos as influências que exercem uns sobre os outros, para
nos dizerem em seguida: eis aqui a causa desse movimento, e ali as suas leis.
A verdade, porém, é que a nossa razão não só
se recusa a admitir esta explicação como declara abertamente ser errónea, uma
vez que as causas apresentadas são demasiado débeis para explicar semelhante
fenómeno. Foi a soma das vontades humanas que fez a revolução e que tornou
possível Napoleão, e só ela os manteve e aniquilou.
«No
entanto», dirá o historiador, «sempre que houve conquistas houve
conquistadores; sempre que houve uma revolução houve grandes homens.»
De facto,
responde a razão, onde houve conquistadores houve guerras, o que não quer dizer
que os conquistadores fossem a causa das guerras e que seja possível
descobrirem-se as leis a, que essas guerras obedecem nos actos individuais de
um único homem. Sempre que olho para o mostrador do meu relógio, quando o
ponteiro se aproxima das dez, ouço badalar os sinos da igreja vizinha. Não
tenho, porém, o direito de concluir que a posição do ponteiro do meu relógio
seja a causa do badalar dos sinos.
Sempre que
vejo deslocar-se uma locomotiva, sempre que lhe ouço o apito e vejo
mover-se-lhe o êmbolo, não tenho o direito de concluir que o silvo e o
movimento das rodas sejam a causa da marcha da locomotiva. Os camponeses estão
convencidos de que o vento gelado que sopra no fim da Primavera é provocado
pelo rebentar dos renovos do carvalho, e efectivamente, quando na Primavera
começam a rebentar os renovos do carvalho, sopra um vento frio. E conquanto eu
ignore a razão desse fenómeno, não me é permitido estar de acordo com os
camponeses, pois é evidente que o vento não pode depender dos renovos do
carvalho. O fenómeno que observo é o resultado da coincidência de dois factos,
o que aliás se verifica em numerosas manifestações naturais, e sou levado a
concluir que, por mais que eu estude atentamente a marcha dos ponteiros do meu
relógio, o movimento do êmbolo e das rodas da locomotiva ou os renovos do
carvalho, não me é possível reconhecer nisso a razão do badalar dos sinos, do
movimento da máquina ou do vento da Primavera.
Para chegar a uma conclusão aceitável sinto-me
na obrigação de modificar inteiramente o meu ponto de vista de observador,
estudando as leis do vapor, as leis do som e as do vento. Eis o que o
historiador tem de fazer. E o certo é que já se empreenderam ensaios nesse
sentido.
No estudo
das leis da história é o objecto das nossas observações que precisa de ser
modificado. É preciso deixar em paz os reis, os ministros e os generais e
procurarem-se os elementos homogéneos e infinitesimais que dirigem as massas.
Ninguém pode dizer até que ponto por esse meio se podem chegar a conhecer essas
leis, mas não há dúvida de que apenas por esse lado elas se podem apreender e
que nesse caminho o espírito humano não fez a milésima parte dos esforços que
empregou para descobrir os actos de tantos reis, de tantos chefes militares e
de tantos ministros e desenvolver as considerações que esses actos sugerem.
Exércitos de
«doze povos diferentes» da Europa se tinham lançado sobre a Rússia. As tropas e
as populações russas batem em retirada, evitando o contacto com o inimigo, em
direcção a Smolensk e de Smolensk a Borodino.
Os Franceses, animados por uma força
propulsora cada vez maior, lançam-se sobre Moscovo, objectivo de todo o seu
esforço. Esta força, à medida que, se aproxima do fim, aumenta de volume, de
acordo com as leis que regem o movimento de aceleração na queda dos corpos.
Na retaguarda do exército, milhares de verstas
de um país devastado e, inimigo; na sua vanguarda, dezenas de verstas
separando-o do seu destino. Eis o que cada soldado francês pensa, e a invasão
continua por si mesma, graças à força deste impulso.
No exército
russo, quanto mais se recua mais se inflama nos corações o ódio contra o
inimigo: a retirada concentra e exaspera esse ódio. Em Borodino dá-se o choque.
Nenhum dos exércitos cede terreno diante do outro, mas, após o embate, os
Russos têm, fatalmente, de continuar a recuar. Como acontece a uma bola, que,
jogada contra outra, animada de maior velocidade, tem forçosamente de recuar,
assim a bola da invasão, conquanto haja perdido a sua força no embate, tem
necessariamente de continuar a rolar por algum tempo.
Os Russos
recuam para cento e vinte verstas além de Moscovo, os Franceses avançam até
Moscovo e detêm-se aí.
Nas cinco
semanas seguintes, todos os combates cessam. Os Franceses não se mexem. À
semelhança de uma fera mortalmente ferida que vai perdendo sangue enquanto
lambe os seus ferimentos, ei-los ali imóveis durante cinco semanas, sem
tentarem seja o que for, até que por fim, de súbito e independentemente de
qualquer motivo, retrocedem.
Precipitam-se pela estrada de Kaluga, e embora
vitoriosos, pois no combate que se trava em MaloIaroslavetz ficam senhores do
campo de batalha, sem travar qualquer combate sério, debandam cada vez mais
depressa em direcção a Smolensk e de Smolensk direitos a Vilna, atravessando
Beresina e assim por diante.
Na noite de
26 de Agosto, Kutuzov, bem como todo o exército russo, estavam persuadidos de
que a batalha podia considerar-se ganha. O Sereníssimo comunicou-o mesmo, por
escrito, ao imperador. E ordenou que se preparassem para um novo combate com o
propósito de dar o golpe de morte ao adversário, não por ser intenção sua
enganar quem quer que fosse, mas apenas por estar persuadido de que o inimigo
podia considerar-se vencido, persuasão, aliás, partilhada por todos os actores
do drama.
Mas naquela
mesma noite e no dia seguinte receberam-se notícias de perdas incríveis: podia
considerar-se perdida quase metade do exército, e uma nova batalha era,
praticamente, impossível. Impossível pensar noutra batalha enquanto se não
reunissem todas as informações necessárias e os feridos não estivessem
recolhidos, as munições renovadas, contados os mortos, os novos comandantes
nomeados para substituir os desaparecidos e os homens fortalecidos e
devidamente refeitos. E, no entanto, imediatamente após a batalha, na manhã
seguinte, o exército francês, accionado por uma força propulsora na razão
inversa do quadrado da distancia, põe-se por si mesmo em marcha contra o
exército russo.
Kutuzov teria querido atacar logo na manhã
seguinte e esse era o desejo unânime das suas tropas. Mas para tal se conseguir
o desejar não bastava, era preciso o poder também, e essa possibilidade não
existia.
Era
impossível não retroceder uma etapa, depois outra e outra ainda, e, por fim, no
dia 1º de Setembro, quando as tropas chegaram a Moscovo - e apesar do animo que
se apoderara dos soldados -, o estado das coisas exigiu que retirassem ainda
mais. E o exército recuou mais uma etapa, a, última, e a capital rendeu-se ao
inimigo.
Aqueles que
estão persuadidos de que os chefes militares traçam os seus planos de guerra e
a disposição das batalhas, como qualquer de nós, sentado diante de um mapa,
pode decidir das medidas a tomar nesta ou naquela circunstância, esses não
deixarão de perguntar porque não procedeu Kutuzov, na sua retirada, desta ou
daquela maneira, porque não ocupou posições antes de Fili, porque não recuou de
uma vez só pela estrada de Kaluga, ao deixar Moscovo, etc. Esquecem ou ignoram
as circunstâncias inevitáveis nas quais qualquer chefe militar tem de agir.
O comandante
de um exército é obrigado a proceder em condições absolutamente diferentes
daquelas que concebemos no silêncio de um gabinete ao elaborarmos, com o mapa
diante de nós, os planos de uma campanha, dispondo aqui e ali de forças
determinadas e dando início às nossas operações num momento definido. O
general-chefe nunca pode estar no «princípio» de um acontecimento, como
acontece connosco, teóricos que somos. Vê-se sempre colocado no meio de uma
série móvel de circunstâncias, de tal modo que nunca, em momento algum, é capaz
de encarar exactamente o valor dos acontecimentos. O facto realizado toma,
insensivelmente, pouco a pouco, o relevo que corresponde à importância que tem,
e durante o tempo necessário para assim se desenvolver e colocar-se em
evidência encontra-se o chefe mergulhado num jogo complicado de intrigas, de preocupações,
de conflitos de poder, de projectos, de conselhos, de ameaças, de fraudes,
tendo de responder, a todo o momento, a uma infinita quantidade de perguntas,
sempre contraditórias.
Os
entendidos em assuntos militares dizem-nos, muito a sério, que Kutuzov teria
podido evacuar as suas tropas pela estrada de Kaluga muito antes de Fili e que
até mesmo alguém lhe propôs esta solução. Efectivamente, sobretudo nos momentos
críticos, o general-chefe tem sempre à sua disposição, em vez de um, dúzias de
projectos, E cada um desses projectos, conquanto baseados na estratégia e na
técnica, está em contradição com os outros. Dir-se-ia que lhe bastava escolher
um deles. Mas até isso lhe é impossível. Tanto os acontecimentos como o tempo
não esperam. Propuseram-lhe, suponhamos, no dia 28, seguir pela estrada real de
Kaluga, mas eis que ao mesmo tempo chega um ajudante-de-campo de Miloradovitch,
que vem perguntarlhe se se devem atacar imediatamente os Franceses ou se é
melhor recuarem, É preciso logo, naquele mesmo instante, transmitir ordens.
Ordenar a retirada será condenar-se a um desvio para atingir a estrada de
Kaluga. Depois do ajudante-de-campo chega o intendente, que pede instruções
sobre o local para onde deve encaminhar os abastecimentos, enquanto o comandante
das ambulâncias pergunta para onde deve dirigir os feridos. Entretanto chega um
correio de Petersburgo com uma carta do imperador, em que se diz não admitir
que se possa abandonar Moscovo. Em seguida, um dos rivais de Kutuzov, que move
contra ele uma intriga - há sempre pessoas para tal e muitas vezes mais do que
uma -, propõe um novo projecto, diametralmente oposto ao da retirada pela
estrada de Kaluga. Aliás, o general-chefe tem necessidade de dormir para
reparar as suas forças, mas eis que um digno general se lhe vem queixar de ter
sido preterido na atribuição das condecorações, que uns civis lhe vêm implorar
protecção, que um oficial enviado para examinar o terreno chega com informações
absolutamente opostas às do oficial que o precedera. Um espião, um prisioneiro,
bem como o general que fez o reconhecimento, descrevem de maneira completamente
diferente posição do exército inimigo. As pessoas que fingem não compreender ou
que esquecem as condições em que deve trabalhar o general-chefe desenham-nos um
quadro, por exemplo, da posição das tropas em Fili e supõem então que Kutuzov
teria podido no dia 1º de Setembro resolver livremente o problema do abandono
ou da defesa de Moscovo, quando com o exército a cinco verstas da capital
semelhante questão não era de formular. E quando foi essa questão resolvida? Em
Drissa, em Smolensk e mais claramente do que nunca no dia 24, em Chevardino, e
em 26 , em Borodino, e depois, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, na
retirada de Borodino para Fili.
(…) A
verdade, porém, é que era preciso tomar uma decisão: era mister pôr ponto final
às conversas daquela gente, que principiavam a adquirir um tom demasiado livre.
Kutuzov chamou
os generais mais antigos. - Boa ou má, a minha cabeça só comigo pode contar –
disse, levantando-se para se dirigir a Fili.
(…)com o
peito constelado de medalhas.
(…) Foi por
motivos de ordem puramente militar que eu (Kutzov) convoquei estes senhores.
Ei-los: «A salvação da Rússia está no exército. Qual será mais vantajoso,
arriscarmo-nos a perdê-lo, e com ele Moscovo, aceitando a batalha, ou entregar
Moscovo sem combate?» Eis o ponto sobre que eu quero conhecer a vossa opinião.
(…)A
discussão recomeçou, entrecortada de frequentes interrupções: sentia-se que, já
não havia matéria para mais dissertações.
Durante uma destas interrupções, Kutuzov
soltou um grande suspiro: parecia querer falar. Todos voltaram para ele os
olhos.
- Bem, meus senhores, já vi que eu é que tenho
de pagar os vidros partidos! - disse ele. E, erguendo-se com dificuldade, aproximou-se
da mesa. - Meus senhores, ouvi o que cada um pensa. Alguns dos senhores não
são, com certeza, da minha opinião. Mas eu - acrescentou, depois de uma ligeira
pausa - mercê dos poderes que me foram conferidos pelo imperador e pela Pátria,
ordeno a retirada.
Pouco depois
os generais separavam-se, com essa circunspecção solene e calada com que se
costumam separar as pessoas que assistiram a um funeral.
(…) Depois
de se despedir dos generais, Kutuzov deixou-se ficar, por muito tempo, sentado,
com os cotovelos em cima da mesa, pensando sempre na mesma tremenda pergunta:
«Quando é que se decidiu então que Moscovo seria abandonada? Quando ficou isso
resolvido e quem era o responsável?»
- Ah! Não era isto que eu esperava! - disse
para o ajudante-de-campo, Schneider, que viera vê-lo já noite adiante. - Não
esperava isto! Nunca julguei que se desse uma coisa destas!
- É melhor ir descansar, Excelência -
disse-lhe Schneider
- Pois bem, já que assim querem, obrigá-los-ei
a comer carne de cavalo, como aos Turcos - exclamou, de súbito, sem responder
ao ajudante-de-campo, deixando cair o grosso punho em cima da mesa- Sim, também
a hão-de comer, ou então...
Entretanto,
e num caso ainda mais grave que o da retirada do exército sem combate, o do
abandono e incêndio de Moscovo, Rostoptchine, que aparece como o agente
executor desse acontecimento, agia de forma muito diversa de Kutuzov.
Este grave acontecimento - o abandono e o
incêndio de Moscovo - era tão inevitável como a retirada das tropas para além
de Moscovo depois da batalha de Borodino.
Nenhum russo houve, não por dedução lógica,
mas em virtude desse sentimento que lhe enchia o coração, como já acontecera
com os seus antepassados, que não previsse o que ia suceder.
Depois da
tomada de Smolensk, em todas as cidades e povoações russas, sem ser precisa a
intervenção do conde Rostoptchine nem das suas proclamações, aconteceu
precisamente o mesmo que em Moscovo. O povo esperou calmamente o inimigo, sem
se revoltar, sem se agitar, sem atentar contra a vida de ninguém: esperou
tranquilamente a sua hora, certo de que, nas circunstâncias mais trágicas,
saberia achar a decisão que convinha. A medida que o inimigo se aproximava, as
classes mais abastadas retiravam-se, abandonando os seus haveres; as mais
pobres ficaram e incendiaram e destruíram o que restava.
Todos os
russos sentiam que tinha de ser assim e que assim seria sempre. Esta convicção,
sobretudo o pressentimento de que Moscovo seria tomada, espalhara-se por toda a
sociedade moscovita de 1812. Aqueles que, a partir de Julho e do começo de
Agosto, largaram da cidade mostraram esperar isso mesmo. Os que abalaram
levando consigo o que podiam e abandonando as suas casas e grande parte dos
seus haveres agiram desse modo impelidos por um patriotismo latente que se não
traduz nem em frases nem no assassínio dos filhos em nome da salvação da Pátria
ou quejandos actos antinaturais, mas se exprime sem alarde, simplesmente, de
maneira natural, e que por isso mesmo dá sempre os melhores resultados.
«É uma
vergonha fugir do perigo, só os cobardes procedem assim», diziam-lhes.
Rostoptchine, nas suas proclamações, dava-lhes a entender que esse procedimento
era uma desonra. Apesar de mortificados por se verem tratados como poltrões e
lhes custar partirem, mesmo assim abalavam, pois sabiam que tinha de ser.
E porque se iam embora? Não, com certeza, por
se sentirem alarmados pelo que dissera Rostoptchine sobre as atrocidades que
Napoleão praticava nos países conquistados. Abalavam, e os ricos, as pessoas
cultas, eis quem partia primeiro, eles, que sabiam perfeitamente que Viena e
Berlim estavam intactas e que durante a ocupação os habitantes passavam o seu
tempo muito divertidos na companhia desses franceses, gente sedutora, de quem
os Russos tanto gostavam, especialmente as mulheres.
Partiam
porque, para os Russos, não se punha a pergunta de se seria bom ou mau viver
sob a administração francesa, Não era possível ali ficar: para eles, seria o
pior que lhes podia acontecer. Partiam mesmo antes de Borodino e ainda mais
depressa depois desta batalha, sem quererem saber das proclamações relativas à
defesa da cidade, apesar de o governador de Moscovo ter anunciado a «saída» da
Virgem Iverskaia e a sua intenção de se alistar, e dos balões que deviam matar
todos os franceses, e, de todos os despautérios que Rostoptchine proclamava nos
seus editais. Sabiam muitíssimo bem que era o exército que devia bater-se e que
se este se mostrava incapaz não era com as filhas dos criados que eles podiam
enfrentar Napoleão em Tri Gori, e que o que havia a fazer era partir, por mais
que lhes custasse abandonar os seus haveres. E lá iam, sem se deterem a pensar
na majestade daquela enorme e rica capital abandonada pelos seus habitantes e
destinada, sem dúvida, a ser pasto das chamas, pois não destruir ou reduzir a
cinza casas vazias eis coisa extraordinária para a gente russa. Iam por
iniciativa individual e, apesar disso, graças ao facto de partirem, cumpria-se
esse acto magnífico que ficará para todo o sempre com a maior gloria do povo
russo. Até aquela senhora que já no mês de Junho, seguida dos seus negros e dos
seus bobos, abandonava Moscovo, para se refugiar nas suas propriedades de
Saratov, sentia confusamente que nunca poderia ser criada de Bonaparte. E
apesar do receio de ser presa às ordens de Rostoptchine, realizava simples e
naturalmente a grande obra que salvaria a Rússia. E o conde Rostoptchine, que
tão depressa envergonhava os que fugiam como ordenava que se fechassem as
repartições públicas; que umas vezes distribuía entre o povo embriagado armas
que para nada serviam, organizando procissões pelas ruas, outras proibia o
metropolita Augustin de o fazer: que requisitava agora todos os carros
particulares existentes na cidade e logo utilizava cento e trinta e seis
carroças para transportar o famigerado balão de Leppich; que tanto declarava ir
deitar fogo a Moscovo como que incendiara a sua própria casa enquanto numa
proclamação aos Franceses os censurava solenemente por haverem saqueado o asilo
de crianças por ele fundado; que ora, se vangloriava do incêndio de Moscovo ora
o reprovava; que ora dava instruções ao povo para deitar a mão aos espiões e
trazer-lhos ora o condenava por o ter feito: que ora expulsava de Moscovo todos
os franceses ora deixava em paz Madame Aubert-Chalmé, sob cujo tecto se reunia
toda a colónia daquele país, quando, sem qualquer motivo especial, mandava
prender e deportar o velho e venerando director dos correios, Kliutcharev; que
ora mandava convocar o povo para se reunir em Tri Gori e marchar contra os
Franceses ora, para se ver livre da multidão, lhe entregava um homem para que
ela o liquidasse enquanto ele próprio fugia pela porta das traseiras; que ora
dizia que não sobreviveria às desgraças de Moscovo ora escrevia num álbum, em francês,
uma quadra sobre o papel que então estava a desempenhar (1), esse homem nada
percebia dos acontecimentos que estavam a dar-se, apenas queria fazer fosse o
que fosse, pôr-se em evidência, realizar um feito patriótico, brincando como
uma criança enquanto se cumpria esse acto formidável e fatal que foi a,
evacuação e o incêndio de Moscovo.
Com os seus bracinhos de criança, ora tratava
de espicaçar ora de deter essa imensa torrente popular que tudo arrastava no
seu curso. (1) Je suis ne Tartare Je voutus étre Romain. Les Français
m’appelèient barbare, Les Russes. Georges Dardin,
(Nasci
tártaro
Quis ser
romano.
Os Franceses chamaram-me bárbaro
Os Russos, Georges Dandin.)
A guerra, é
a sujeição mais penosa que pode conceber-se da liberdade humana às leis de
Deus.
O homem nada
pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo.
Se a dor não existisse, o homem não conheceria os seus limites, não se
conheceria a si mesmo. Nada mais difícil.
Assim como o
condenado a morte que é conduzido ao local do suplício, mesmo sabendo que vai
morrer, olha à sua volta e compõe o boné, Moscovo, conquanto soubesse que a
hora da sua perdição era chegada e que as condições de vida a que até então se
submetera iam sofrer uma transformação, continuava, maquinalmente a sua vida de
todos os dias.
Chegou a
derradeira hora de Moscovo. Estava um dia de Outono claro e alegre. E, sendo
domingo, como em todos os domingos, os sinos repicavam para a missa em todas as
igrejas. Dirse- ia que ninguém compreendia ainda o destino que aguardava a capital.
Só dois
barómetros acusavam a situação da cidade: a atitude da populaça, isto é, do
grosso da arraia-miúda, e a alta dos preços. Os operários das fábricas, os
criados e os camponeses, em magotes, à mistura com funcionários, seminaristas e
fidalgos, tinham ido de madrugada para Tri Gori. Chegada que foi aí, toda
aquela gente ficou à espera de Rostoptchine; mas, depois de muito esperar e
convencida de que Moscovo seria entregue ao inimigo, acabou por regressar à
cidade, dispersando-se por ruas e tabernas. Os preços das coisas também diziam
muito, As armas, o ouro, os carros, os cavalos, aumentavam constantemente de
preço enquanto baixava continuamente o valor do Papel-moeda e dos objectos de
luxo, e de tal maneira que por volta do meia-dia os panos, por exemplo, valiam
menos de metade do seu preço habitual. Em compensação, um cavalo de aldeão
chegava a pagar-se por quinhentos rublos. E os móveis, os espelhos, os bronzes,
cediam-se por qualquer preço.
A Rússia não
está em Moscovo, está no coração dos seus filhos!
Ante a
arquitectura extraordinária de Moscovo, Napoleão sentiu essa curiosidade
inquieta e cobiçosa que costuma despertar o contacto com uma existência de que
nada sabemos e que nos é completamente estranha.
Via-se bem que aquela cidade tinha vida
própria e intensa. Graças a esses sinais indefiníveis que nos permitem
distinguir a distância um ser vivo de um cadáver, Napoleão, do alto do monte
Poklonaia, apercebia o palpitar da vida daquela capital como se sentisse a
respiração desse grande e magnífico corpo.
Ao
contemplar Moscovo, todos os russos sentem que ela é como que uma mãe para
eles. O estrangeiro, embora desprovido deste sentimento filial, não pode deixar
de se sentir impressionado pelo carácter feminino da cidade. Eis a impressão
que Napoleão sentia também. - Esta cidade asiática das mil igrejas, Moscovo, a
Santa. Aqui está ela, finalmente, a famosa cidade. Já era tempo! - exclamou
ele, e, apeando-se do cavalo, mandou abrir diante de si a planta da cidade e
chamou o intérprete, Lelorgne d’Ideville.
«Uma cidade
ocupada pelo inimigo faz lembrar uma virgem que perdeu a virgindade», pensava,
repetindo para si próprio o que dissera em Smolensk a Tutchkov. E animado por
estes sentimentos contemplava, estendida a seus pés, a beleza oriental que via
pela primeira vez. Ele próprio achava extraordinário que, se realizasse enfim
aquele sonho que havia tanto acarinhava e que se lhe afigurara irrealizável.
Aquela clara
luz matinal, ora fixava os olhos na cidade ora no mapa que tinha diante,
confirmando pormenores, e a certeza daquela posse ao mesmo tempo que o
perturbava causava-lhe medo, «Teria porventura podido ser de outra maneira?»,
interrogava-se a si próprio. «Ei-la aqui, a grande capital, ei-la a meus pés,
aguardando o destino. Onde estará agora Alexandre? E que pensará ele? Cidade
estranha, soberba, magnífica! Que momento raro e solene! Sob que aspecto me
verão eles?», prosseguia pensando nos seus soldados. «Aqui a têm, a recompensa
que dou a esses homens de pouca fé.» E percorria com os olhos a comitiva e as
tropas que marchavam em perfeita ordem!
«Basta uma
palavra minha, um só gesto da minha mão, e esta antiga capital dos czares
converter-se-á num monte de ruínas. Mas a minha clemência está sempre pronta a
descer até aos vencidos. Devo ser magnânimo e verdadeiramente grande... Não!
Será possível que eu esteja em Moscovo?», interrogava-se, de súbito. «Mas a
verdade é que ela aqui está, deitada a meus pés, com as suas cúpulas douradas e
as suas cruzes cintilando à luz do Sol. Saberei poupá-la. Na fachada destes
antigos monumentos, símbolo da barbaria e do despotismo, mandarei escrever
grandiosas palavras inspiradoras de justiça e misericórdia - Tenho a certeza de
que Alexandre o há-de apreciar acima de todas as coisas...» Afigurava-se-lhe
que tudo aquilo era resultado da rivalidade pessoal entre ele e Alexandre. «Do
alto do Kremlin - sim, aquilo é o Kremlin- ditar-lhes-ei leis justas,
mostrar-lhes-ei a verdadeira civilização; as futuras gerações dos boiardos
hão-de pronunciar amorosamente o nome do seu conquistador. Direi à delegação
que me enviarem que não quis e não quero a guerra, que a que me v forçado a
fazer visava a política mentirosa da sua corte, que amo e respeito Alexandre e
que estou pronto a aceitar em Moscovo uma paz digna de mim e dos meus povos.
Não quero aproveitar-me de uma guerra
vergonhosa para humilhar o soberano a quem venero. ’Boiardos!’, dir-lhes-ei,
’não quero a guerra, quero a paz e o bem-estar de todos os meus súbditos.’
Aliás, tenho a certeza de que a presença dessa gente me há-de inspirar e que
lhes hei-de falar como sempre falo, com clareza, com solenidade e com grandeza.
Mas será possível que eu esteja em Moscovo? Estou, Moscovo, ei-la ali.»
- Tragam-me
os boiardos! - exclamou, voltando-se para a comitiva.
Um general, seguido de um séquito brilhante,
partiu imediatamente a galope em busca dos boiardos.
Duas horas
decorreram. Napoleão almoçou e voltou para o mesmo local do monte Poklonaia a
aguardar a delegação. O discurso que lhe dirigiria desenhava-se-lhe já claro na
imaginação. Era um modelo de dignidade e grandeza de acordo com a concepção
napoleónica. A magnanimidade desse discurso, que ele esperava agisse
poderosamente sobre Moscovo, enchia-o de entusiasmo. Assentava já na data em
que reconvocaria a reunião no palácio dos czares, reunião essa em que as altas
personalidades russas deveriam encontrar-se com as da sua corte. E nomearia
previamente um governador capaz de conquistar para ele, Bonaparte, a simpatia
da população. Sabendo que Moscovo dispunha de grande número de instituições de
caridade, estava decidido a cumulá-las de benesses. «Assim como, em África»,
pensava, «devemos envergar um albornoz para entrar numa mesquita, em Moscovo
convém sermos generosos para com os czares.» E para definitivamente conquistar
o coração dos Russos, como todo o bom francês, incapaz de conceber seja o que
for de sentimental sem falar da minha querida, da minha terna, da minha pobre
mãe, ei-lo que decide que na fachada de todas as instituições mandaria
inscrever em grandes letras: - Estabelecimento dedicado à minha querida mãe.
Ou, não, antes, simplesmente: Casa de minha mãe. «Mas estarei eu, realmente, em
Moscovo?», repetia de si para consigo, mentalmente. «Sim, ei-la aqui diante de
mim. Então porque leva a delegação tanto tempo a aparecer?»
Entretanto,
nas últimas fileiras da sua comitiva, generais e marechais discutiam a meia
voz. Os que haviam sido enviados pela delegação tinham voltado e informavam que
a cidade estava deserta, todos os seus habitantes a tinham abandonado. A palidez
e a consternação estamparam-se em todos os rostos. Não era propriamente a
notícia que os atemorizava, embora fosse de vulto, mas a maneira de a
comunicarem ao imperador sem colocar Sua Majestade numa situação ridícula, para
os Franceses a mais grave de todas, fazendo-lhe saber que debalde aguardaria os
boiardos e que em Moscovo apenas se viam bandos de bêbedos. Havia quem fosse de
parecer que apesar de tudo devia arranjar-se uma delegação; outros, pelo
contrário, sustentavam ser preciso, com todo o cuidado, e prudência, preparar o
imperador e dizer-lhe a verdade.
- É preciso
dizer-lho, seja como for... - diziam.
- Mas, meus senhores... A situação era tanto
mais penosa quanto era certo o imperador, todo entregue aos seus sonhos de
generosidade, andar de um lado para outro, pacientemente, diante do mapa da
cidade, olhando de tempos a tempos para a estrada de Moscovo e sorrindo
triunfante.
- Mas é
impossível... - diziam os membros da comitiva, encolhendo os ombros, sem se
decidirem a pronunciar a palavra terrível - «ridículo» - Que cada um tinha nos
lábios. Entretanto o imperador, cansado de esperar, e sentindo, graças ao seu
instinto de actor, que o instante sublime tardava de mais, perdendo, portanto,
a sua grandeza, acenou com a mão. Um tiro de peça deu o sinal e as tropas que
cercavam a cidade por todos os lados marcharam em direcção a Tverskaia, através
da Calçada de Kaluga, e romperam pela barreira de Dorogomilov. Em passo cada
vez mais acelerado, adiantando-se uns aos outros, soldados de infantaria e
cavalaria avançavam, levantando grandes nuvens de poeira e atroando os ares com
os seus gritos ensurdecedores.
Arrebatado pelo entusiasmo dos seus soldados,
Napoleão chegou ao mesmo tempo do que eles à barreira de Dorogomilov. Uma vez
aí, parou, apeando-se do cavalo, e por muito tempo aí ficou a passear junto da
esplanada de Kamer-Koleskovo, sempre à espera da delegação.
Moscovo
estava deserta, embora lá se encontrassem alguns habitantes, a quinta parte,
pouco mais ou menos, da sua população habitual, nem por isso estava menos
deserta. Na colmeia que falte a rainha, não há vida, embora a um olhar
superficial continue tão animada como antes.
Sob os
ardentes raios de sol do meio-dia, as abelhas dessa colmeia zumbem em torno
dela como em torno das demais. Também aí se sente o cheiro a mel, e as abelhas
entram e saem. Um pouco de atenção, porém, e compreender-se-á que nessa colmeia
já não há vida. As abelhas não lhe zumbem em redor como em redor das colmeias
vivas, e não têm nem o mesmo cheiro nem o mesmo zumbido. Quando se bate na
parede de uma colmeia doente, em vez da resposta instantânea e unânime de
dezenas de milhares de insectos que alçam, ameaçadores, o ferrão, agitando no
ar as asas rápidas, apenas se ouvem zumbidos isolados em certos pontos da colmeia
quase vazia.
À entrada já
se não aspira, como antes, o perfume alcoolizado e forte do mel e do veneno dos
seus habitantes; já não sai lá de dentro o calor de um lugar habitado. Ao
perfume adocicado de outros tempos junta-se agora um cheiro a podridão e
abandono. Já não há guardas prontas a dar sinal de alarme e a morrer em defesa
da colmeia. Já se não ouve esse som regular e tranquilo, índice de um trabalho
activo, que faz lembrar o cachão da água a ferver, mas zumbidos irregulares e
dispersos, indício de desordem. Entram e saem da colmeia, tímidas e astuciosas,
salteadoras negras, de corpo alongado e coberto de mel. Desprovidas de ferrão,
fogem quando as perseguem. Antigamente as obreiras chegavam com o seu quinhão e
partiam sem nada; agora, pelo contrário, cada uma leva a sua parte.
O apicultor abre a parte inferior da colmeia e
examina o que se passa aí. Em vez das abelhas negras e gordas, entregues ao seu
trabalho, pendendo em cacho até à parte inferior, fincadas umas nas outras
pelas patas, e segregando cera num zumbido ininterrupto, abelhas sonolentas
erram de um lado para o outro no fundo e nas paredes da colmeia. Em lugar de um
pavimento bem fornido de cera vermelha e cuidadosamente varrido pelas asas dos
habitantes, juncam o chão migalhas de cera, excrementos e abelhas semimortas,
que agitam as patas molemente, ou estão mortas de todo.
O apicultor
abre agora a parte superior da colmeia e examina o, que lá vai dentro. Em vez
dos intervalos das prateleiras bem calafetados, para que os insectos estejam
aconchegados, vê um trabalho artístico, complicado e hábil, mas já não no seu
estado virgem de outrora. Tudo está sujo e deserto.
As abelhas
salteadoras introduzem-se, rápidas e subtis, pelo meio das obreiras: estas,
secas, encolhidas, murchas, como se fossem velhas, deslocam-se lentamente, sem
impedir a pilhagem das salteadoras, sem nada quererem, sem gosto pela vida.
Zângãos, larvas, borboletas, batem de encontro às paredes da colmeia. Aqui e
ali, entre os tabuleiros com abelhas mortas e mel, ouve-se, de quando em
quando, um zumbido irritado. Algures, duas abelhas, impelidas Pelo instinto e o
antigo hábito, limpam o interior da colmeia e arrastam para o exterior, num
esforço que excede o seu poder, cadáveres de abelhas mortas ou de zangãos, sem
se darem conta do que estão a fazer. Noutro canto, duas velhas abelhas lutam
Preguiçosamente ou lavam-se ou nutrem-se uma à outra, sem consciência de ser
hostil ou amistosa a sua atitude. Noutro ponto ainda um grupo de abelhas,
esmagando-se mutuamente, ataca uma vítima qualquer, e sufoca-a. E a vítima,
impotente ou morta, cai lentamente, leve como uma pena, sobre o monte de
cadáveres. O apicultor retira dois tabuleiros do meio para ver o ninho. No
centro de milhares de abelhas que formam um círculo negro e apertado, costas
com costas, ali colocadas para vigiar os altos mistérios da eclosão, vê agora
apenas alguns centos de abelhas esqueléticas, tristíssimas, quase mortas e
entorpecidas. Pela maior parte, estão efectivamente semimortas e ignoram, na
sentinela que fazem àquele santuário, que já não existe o que elas tinham de
guardar. Despedem um fedor a podridão e a morte. Apenas algumas remexem ainda,
esvoaçam e preguiçosamente vêm pousar na mão do inimigo, já sem forças para
perder a vida picando-o. As outras, mortas, caem no fundo, leves, como escamas
de peixe. O apicultor fecha a colmeia, marca-a a giz e na altura precisa
quebra-a para queimá-la.
Assim era
Moscovo, enquanto Napoleão, inquieto, fatigado, carrancudo, andava de um lado
para o outro na esplanada de Karner-Koleskovo, aguardando a chegada da
delegação: cerimónia puramente convencional, mas que ele considerava
indispensável.
Nos diversos
bairros de Moscovo apenas restavam algumas pessoas movendo-se sem saberem o que
faziam, por simples hábito. Acabaram, com as precauções devidas, por comunicar
a Napoleão que Moscovo estava vazia. O imperador fitou, colérico, aquele que
lhe deu a notícia e continuou a andar de cá para lá em silêncio.
- A minha carruagem! - ordenou por fim.
E subindo
para o carro, na companhia do ajudante-de-campo de serviço, dirigiu-se para os
arrabaldes da cidade. «Moscovo deserta! Que acontecimento inverosímil!»,dizia
de si para consigo. Não chegou a entrar na cidade e deteve-se numa estalagem
dos arrabaldes, em Dorogomilov.
O golpe de
teatro falhara.
Quando nos
cortam a cabeça, não vale a pena chorar a perda dos cabelos. Pois que levem o
que quiserem…
Contra a
vontade de Deus nada pode o braço do homem.
No dia 1º de
Setembro, pela noite, depois da sua entrevista com Kutuzov, o conde
Rostoptchine regressou a Moscovo magoado e triste; não o tinham ouvido na
reunião do conselho de guerra.
Kutuzov não prestara a mais pequena atenção à
sua proposta no sentido de se defender a capital. Surpreendera-o muito a nova
teoria adoptada pelo estado-maior segundo a qual o sossego da cidade e os
sentimentos patrióticos dos seus habitantes eram não só coisas secundárias, mas
desprezíveis e sem qualquer alcance.
Depois da
ceia estendeu-se, vestido como estava, em cima de um canapé. À uma hora da
madrugada foi acordado por um correio que lhe trazia uma carta de Kutuzov.
Pedia-lhe este, visto as tropas baterem em retirada pela estrada de Riazan,
para além de Moscovo, que enviasse polícias proteger a sua passagem através da
cidade.
Não era
novidade para Rostoptchine. Pressentira aquilo mesmo muito antes da sua
entrevista da véspera com o general-chefe, no monte Polclonaia, no dia seguinte
ao da batalha de Borodino, visto ter ouvido os generais chegados a Moscovo
declararem unanimemente ser impossível travar uma batalha, e todos os dias, com
o seu consentimento, saírem de Moscovo, com destino a lugar seguro, os bens da
coroa e metade dos habitantes da capital já terem abalado. Mesmo assim, aquela
ordem de Kutuzov, expedida como uma simples nota e recebida durante a noite,
quando ele dormia o seu primeiro sono, surpreendeu-o e irritou-o
extraordinariamente.
Mais tarde, quando quis explicar o que fizera
naquele momento, repetiu, várias vezes, nas suas Memórias, que tivera então
como objectivo principal «manter a tranquilidade em Moscovo e evacuar os
habitantes!» Se fizermos fé nas suas palavras, tudo quanto fez foi
irrepreensível. Porque não tinham levado, então, da cidade os tesouros
moscovitas, as armas, os cartuchos, a pólvora, as reservas de trigo? Porque
foram enganados milhares de habitantes com a afirmação de que a cidade não
capitularia, o que fez que ficassem arruinados? Para que a tranquilidade fosse
mantida, explica Restoptchine. Mas porque se evacuaram, então, montes e montes
de papéis inúteis das repartições? Porquê o balão de Leppich e tantas outras
coisas? Para que a cidade ficasse vazia, replica ele ainda. Basta a
tranquilidade pública estar ameaçada para tudo se justificar. Também as
chacinas do Terror só tiveram em vista a tranquilidade pública.
Em que se
baseava então o conde Rostoptchine para temer que a tranquilidade pública, em
1812, viesse a ser perturbada em Moscovo?
Nem em Moscovo nem em qualquer outra parte da
Rússia, aquando da chegada do inimigo, se passou fosse o que fosse parecido com
uma rebelião.
A 1 e 2 de Setembro ainda havia na capital
mais de dez mil pessoas e além do ajuntamento no pátio da residência do
governador, por ele próprio provocado, nenhum outro incidente ocorreu.
Evidentemente
que ainda se teria receado menos qualquer efervescência popular se depois de
Borodino, quando o abandono de Moscovo se tornou coisa certa ou pelo menos
verosímil, em vez de se haver exaltado o povo com a distribuição de armas ou a
afixação de proclamações, Rostoptchine houvesse tomado as medidas necessárias
para retirar as coisas preciosas, a pólvora, as munições e o dinheiro, e
houvesse declarado francamente ao povo que a cidade ia ser abandonada.
Rostoptchine, homem impulsivo e sanguíneo,
como vivera sempre nas altas esferas administrativas, apesar de todo o seu
patriotismo, não fazia a mínima ideia de como era o povo que julgava governar.
Depois da entrada dos Franceses em Smolensk, imaginara desempenhar o papel de
guia do sentimento nacional no «coração da Rússia». Julgava ele, como todo o
bom administrador, ser obrigação sua não só presidir à vida material dos
habitantes de Moscovo, mas também guiar-lhes a disposição moral através de
proclamações e de editais redigidos nesse estilo corriqueiro de que a massa
popular, no seu próprio meio, não faz o mais pequeno caso, e que deixa de
compreender sempre que o ouve na boca de personagens das classes elevadas. Este
lindo papel de guia da moral popular agradava-lhe tanto, tão bem se lhe
adaptara, que a necessidade de abandonar Moscovo sem realizar qualquer acto
heróico o havia apanhado desprevenido.
De súbito notou que o terreno que pisava lhe
resvalava debaixo dos pés. E decididamente não soube que fazer. Embora o
pressentisse, recusou-se sinceramente até ao último minuto a acreditar no abandono
da capital e nada fez na previsão de semelhante eventualidade.
Se os habitantes se retiraram, foi contra a
sua vontade. Se mandara transferir as repartições públicas, é que tinham sido
os funcionários a pedir-lho, e só com relutância dera autorização para tal. Por
si nunca pensara noutra coisa senão em desempenhar o papel que a si próprio
atribuíra.
Como é
frequente nas pessoas de imaginação viva, de há muito sabia que Moscovo seria
abandonada, mas só a razão lho dizia; no fundo do coração não acreditava. A
imaginação não o acompanhava nesse novo domínio dos factos.
Todos os
seus esforços, realmente eficazes e enérgicos - e não se cura aqui de saber até
que ponto foi útil e qual a influência que exerceu no povo -, apenas serviram
para excitar nos habitantes sentimentos que ele próprio experimentava: o ódio
patriótico contra os Franceses e a confiança em si mesmo. Mas quando os
acontecimentos ganharam proporções históricas, quando se tornou insuficiente
exprimir apenas por palavras o ódio contra o inimigo, quando não foi possível
proclamá-lo mesmo no campo de batalha, quando a autoconfiança se tornou
inoperante para salvar Moscovo, quando toda a população, como um só homem,
abandonando o que era seu, correu em torrentes para fora da cidade, mostrando, com
este acto negativo, o prestígio do sentimento nacional, o papel que
Rostoptchine escolhera perdeu subitamente todo o sentido. Viu-se, de chofre,
fraco e ridículo, sem terra firme debaixo dos pés.
Ao receber a
nota fria e autoritária de Kutuzov sentiu-se tanto mais irritado quanto era
certo reconhecer-se culpado. O que lhe fora confiado, os bens do tesouro, que
ele devia ter retirado, ficava em Moscovo. E agora era impossível levar dali
fosse o que fosse.
«Quem tem a culpa disto?», dizia ele de si
para consigo. «Eu não, com certeza. Tinha tudo preparado, mantive Moscovo, e
não é pouco. E aqui está onde eles nos levaram! Miseráveis! Traidores!»
Não lhe teria sido fácil determinar que eram
esses traidores, esses miseráveis, mas sentia-se impelido, por necessidade, a
odiar esses traidores que o haviam colocado na situação falsa ridícula em que
se encontrava.
Durante toda
a noite emitiu ordens que junto dele vinham receber de todos os pontos de
Moscovo. Os da sua roda nunca o tinham visto tão taciturno e furioso.
«Excelência, vieram receber ordens da parte do director do Património... da
parte do Consistório, do Senado, da Universidade, do asilo das crianças
abandonadas. O ecónomo mandou saber... Pede... Que ordens se devem transmitir à
corporação dos bombeiros? Estão aí da parte do director da cadeia... Da parte
do director do manicómio...» Não lhe largaram a porta durante toda a santa
noite. A todos dava respostas rápidas e graves, dizendo que as suas ordens
doravante eram inúteis, que a obra que preparara com todo o cuidado fora
malograda por terceiros, responsáveis dos acontecimentos que sobreviessem. -
Diz a esse imbecil - respondeu ao pedido da Repartição do Património - que
fique de sentinela aos seus documentos.
E, tu, que tolice me estás tu a pedir a
propósito dos bombeiros? Se têm cavalos, vão para Vladimir. Não os vão deixar
aos Franceses.
-
Excelência, está ali o director do manicómio. Que devo dizer-lhe?
- Que deves dizer-lhe? Que se vão todos, nada
mais simples... E, quanto aos doidos, que os solte na cidade. Já que quem
comanda o exército é doido, ficarão no seu devido lugar.
Quando lhe
perguntaram qual o destino a dar aos presos da cadeia, gritou, furioso, para o
director:
- Que quer
que eu faça? Que lhe dê dois batalhões, que não temos, para os escoltar?
Solte-os, é bem de ver!
-
Excelência, há presos políticos: Miechkov, Verechtchaguine.
-
Verechtchaguine! Ainda o não enforcaram?! - exclamou. - Tragam-no.
Em tempo de
paz, todo o governante julga sempre que dele depende toda a população confiada
ao seu cuidado e, supondo-se indispensável, vê nisso a principal recompensa dos
seus trabalhos e dos seus esforços. Enquanto o mar da história está sereno, é
lógico que o governante-piloto que na sua ligeira embarcação manobra o leme do
navio de grande calado que é o Estado julgue ser ele quem o faz mover. Mas
assim que se levanta uma tempestade, logo que o mar se encapela e o navio é
levado pela corrente, então a ilusão acaba. O navio prossegue na sua rota,
independente e majestoso, e o leme do piloto já para nada serve. Esse homem,
momentos antes todo-poderoso, centro de todas as energias, não passa então de
um ser fraco, inútil e nulo.
(…)Como
costuma suceder muitas vezes com os homens impulsivos, o conde não podia
dominar a cólera que o tomava, embora procurasse ainda sobre quem lança-la. «Lá
está ela, a populaça, a ralé, a plebe, que eles sublevaram pela sua estupidez.
Precisam de uma vítima», pensava ele, olhando para o operário que fazia,
grandes gestos. E ao mesmo tempo ocorreu-lhe que também ele precisava de uma
vítima, fosse quem fosse, sobre quem descarregar aquela ira.(…)
Oh! Meu
Deus! Que animal feroz é o povo! (…) A populaça é terrível, é repulsiva. São
como os lobos, que só com carne se saciam.
Embalado
suavemente pelas molas da carruagem e não ouvindo já os gritos medonhos da
multidão, sentia uma grande tranquilidade física, e como sempre acontece, ao
mesmo tempo que sossegava fisicamente, o espírito ia-lhe proporcionando
argumentos conducentes à tranquilidade da alma.(…) Os argumentos nada tinham de
novo. Desde que o mundo é mundo e os homens se matam uns aos outros, que
ninguém cometeu qualquer crime para com o semelhante sem tratar de apaziguar a
consciência apelando para aquilo a que se chama o bem público, aquilo que se supõe o bem dos outros.
Embora
esfarrapadas, esfomeadas, extenuadas e reduzidas a metade dos seus efectivos,
as tropas francesas nem por isso deixaram de entrar em Moscovo devidamente
ordenadas. Era um exército esgotado e destroçado, mas ainda combativo e de temer.
No entanto apenas se conservou exército até ao momento em que os soldados se
dispersaram pelas casas da cidade. Desde que eles se viram instalados em todas
essas casas ricas e desertas, o exército desapareceu para sempre,
transformando-se num amálgama nem de civis nem de militares, num bando de
bandidos. Quando, cinco semanas mais tarde, deixaram Moscovo, as tropas
regulares tinham desaparecido por completo. Eram apenas um bando de salteadores
levando consigo um nunca acabar de coisas que entendia indispensáveis e
preciosas. Não pensavam mais na guerra, só cuidavam em conservar o produto das
pilhagens. Tal como o macaco que tendo metido a mão na estreita boca de uma
jarra para apanhar um punhado de nozes não a quer abrir para não deixar o que
apanhou, e assim se perde, os Franceses, ao abandonarem Moscovo, tinham
fatalmente de se perder, pois levavam consigo o produto dos seus roubos, não
podendo, como o macaco, abandonar a presa. Dez minutos depois da ocupação por
um regimento francês de qualquer bairro da cidade já não era possível
distinguir os oficiais dos soldados. Através das janelas viam-se homens de
capote e polainas, rindo e girando pelos quartos; nas caves e nos sótãos
abasteciam-se de provisões; nos pátios abriam as portas dos armazéns e das cavalariças:
nas cozinhas acendiam as lareiras e faziam o rancho, de mangas arregaçadas,
assustando e fazendo rir mulheres e crianças. Eram muitos os homens nas lojas e
nas casas: exército, porém, era coisa que já não existia.
Naquele
mesmo dia circularam ordens sobre ordens, emanadas dos comandantes, para que os
soldados fossem impedidos de circular na cidade, para que fossem proibidos os
saques e as violênci4s, e determinando que houvesse à noite chamada geral. No
entanto, apesar das medidas tomadas, os homens que ainda na véspera formavam o
exército espalhavam-se por toda a cidade confortável e vazia, onde abundavam as
provisões. Como um rebanho faminto que avança, comprimido, ao longo de um campo
de escassa pastagem espalhando-se logo que chega a uma farta pradaria, assim se
dispersava o exército francês através daquela opulenta cidade.
Como dos
habitantes poucos estavam, os soldados, à semelhança da água num areal,
infiltravam-se por toda a parte e irradiavam por todos os lados a partir do
Kremlin, o primeiro lugar onde haviam penetrado. Soldados de cavalaria que
penetrassem numa casa abandonada com tudo que era preciso e até cavalariças com
lugar de sobra para as montadas, nem por isso deixavam de se mudar para a casa
vizinha que se lhes afigurasse preferível. Muitos ocupavam várias casas,
riscando-as a giz, batendo-se com homens de outros destacamentos para lhes
disputarem a propriedade. Antes mesmo de se instalarem em qualquer lado, havia
soldados que percorriam as ruas, e ao verificarem que tudo estava abandonado
introduziam-se onde pudessem pilhar objectos de valor. Os chefes encarregados
de prender os que se dedicavam à pilhagem acabavam por se entregar à prática
dos mesmos actos.
No Mercado
Karetnii ainda havia estabelecimentos cheios de carruagens de, todo o género:
os generais juntavam-se para escolherem aí seges e carros para seu uso. Os
habitantes que haviam ficado na cidade convidavam os oficiais superiores a
instalar-se em suas casas na esperança de assim impedirem que elas fossem
saqueadas. Tantas eram as riquezas que dir-se-ia não terem fim. Por toda a
parte, em torno dos locais ocupados pelos Franceses, havia outros, ainda não
ocupados, em que eles julgavam vir a encontrar mais riquezas. E Moscovo ia-os
absorvendo pouco a pouco. Assim como quando se deita água numa terra seca
desaparecem a terra seca e a água, assim aquele exército esfomeado, uma vez
naquela cidade opulenta, mas deserta, foi desaparecendo ao mesmo tempo que a
própria cidade: resultado, muita lama, incêndios e saques por toda a parte.
Os Franceses
atribuem o incêndio de Moscovo ao patriotismo feroz de Rostoptchine, os Russos,
ao fanatismo dos Franceses.
Moscovo
ardeu por se encontrar nas mesmas condições de qualquer cidade de madeira,
independentemente das suas cento e trinta más bombas de incêndio. Moscovo tinha
de arder, porque os seus habitantes a haviam deixado; o que era tão inevitável
como arder o monte de aparas em que vão caindo fagulhas dia após dia. Uma
cidade de madeira onde, mesmo com a presença dos habitantes e da polícia, quase
todos os dias se registam incêndios, não pode deixar de arder se os
proprietários das casas estão ausentes e se por toda a parte há soldados de
cachimbo aceso e fogueiras em que preparam o rancho duas vezes por dia, em
plena Praça do Senado, atiçando o lume com as cadeiras dos palácios
circunvizinhos.
Em tempo de paz, basta que as tropas se alojem
numa aldeia para que os incêndios aumentem imediatamente. Como não hão-de
aumentar as probabilidades de fogo numa cidade abandonada, construída de madeira,
em que acampou um exército estrangeiro? Nem o patriotismo feroz de Rostoptchine
nem o fanatismo dos Franceses tiveram que ver com o incêndio de Moscovo.
A cidade
ardeu por causa dos cachimbos, das cozinhas, dos acampamentos e da negligência
dos soldados inimigos, instalados nas casas, mas não seus proprietários.
Se realmente houve incendiários, o que parece
duvidoso, pois não se percebe qual o motivo de uma coisa dessas, além de que
seria expor-se quem o fizesse a um perigo que a todos ameaçava, não vale a pena
atribuir-se-lhes essa responsabilidade porque sem a sua intervenção o resultado
teria sido praticamente o mesmo.
Por muito
que agrade aos Franceses acusar Rostoptchine de ferocidade e aos Russos dizerem
que Bonaparte era um malfeitor, ou colocarem nas mãos de seus compatriotas um
archote heróico, é impossível admitir uma causa directa da catástrofe já que
Moscovo tinha de arder, como arderia igualmente qualquer aldeia, qualquer
fábrica, qualquer casa cujos proprietários se ausentassem e em que se
consentisse que estranhos se instalassem para comer e dormir.
Moscovo foi
incendiada pelos seus habitantes, é um facto, mas não pelos habitantes que lá
ficaram, antes por culpa daqueles que partiram. Invadida pelo inimigo, Moscovo
não ficou intacta como Berlim, Viena e outras capitais pela simples razão de
que os seus habitantes não vieram oferecer pão e sal aos Franceses nem lhes
depuseram nas mãos a chave da cidade, preferindo, pelo contrário, abandoná-la.
(…)
apossara-se dele uma embriaguez estranha ao compreender, de súbito, que a
riqueza, o poderio, a própria vida, tudo que o homem preserva e guarda
cautelosamente, não tem o mais pequeno valor além da satisfação que dá àquele
que dispõe da coragem de renunciar a isso mesmo. Era um sentimento semelhante
àquele que leva o recruta a beber, beber, até se lhe esgotar o dinheiro e o
bêbedo a quebrar vidros e espelhos sem razão, sabendo que os terá de pagar, um
sentimento igual ao do homem que pratica acções que o senso comum qualifica de
loucas, embora em verdade sejam a revelação de uma visão superior e quase
sobre-humana das coisas da vida.
O homem de
espírito são aplica a sua faculdade de pensar, de sentir, de se recordar,
simultaneamente, a um número infinito de coisas, mas dispõe do poder e da força
necessários, desde que se detém num objecto determinado, para concentrar nele
toda a sua atenção. O homem de espírito não sabe interromper os seus
pensamentos mais absorventes para saudar a pessoa que chega e voltar em seguida
às suas reflexões.
«Sim, o
amor», disse consigo mesmo, de novo, completamente lúcido. «Mas não esse amor
que se sente por alguma, coisa e por alguém, mas o amor como eu o senti pela
primeira vez quando, no limiar da morte, se me deparou o meu inimigo e o amei.
Senti então essa espécie de amor por assim dizer a essência da nossa alma e que
dispensa perfeitamente o objecto amado. E ainda agora mesmo continuo a sentir
esse bem-aventurado amor. Amar o próximo, amar os nossos inimigos, amar tudo e
todos é amar Deus em todas as Suas manifestações. Amar alguém querido é amor de
homem; só a um inimigo nos é dado amar com o amor de Deus. E aí está porque
senti felicidade tamanha ao compreender que amava aquele homem. Que teria sido
feito dele? Estará vivo ainda?... Quando queremos com um amor de homem, é-nos
fácil passar do amor ao ódio, mas o amor de Deus, esse, não pode trair. Nada,
nem a própria morte, o pode destruir. É a essência da própria alma. Odiei muita
gente na minha vida. Mas a ninguém amei e odiei tanto como a ela.»
(…)absorto
no presente, o que o atormentava, como acontece a todos os obstinados que se
propõem realizar qualquer coisa impossível, não eram as dificuldades que teria,
mas o facto de a sua natureza íntima recalcitrar contra um acto daquela
espécie: tinha medo de fraquejar no momento decisivo, perdendo, assim, toda a
consideração por si próprio.
- Coronel
Michaux, não se esqueça do que eu lhe digo aqui; talvez um dia o recordemos com
satisfação... - E, falando assim, batia na arca do peito. - Napoleão ou eu. Não
pode continuar a reinar ao mesmo tempo. Aprendi a conhecê-lo, não me voltará a
enganar.
- Sire! -
articulou o coronel. - Vossa Majestade assina neste momento a glória da nação e
a salvação da Europa.
E o imperador, com um aceno de cabeça,
despediu Michaux.
Todos os
relatos daquela época, sem excepção, falam de sacrifícios, de amor à pátria, de
desespero e de heroísmo. Mas a realidade não era bem essa. Do passado apenas
vemos as grandes linhas históricas, enquanto os interesses puramente humanos e
pessoais nos passam despercebidos. No entanto, esses interesses puramente
humanos e pessoais são muito mais importantes que os interesses colectivos. Os
primeiros não deixam ver nem sentir os últimos. A maior parte dos homens
daquela época não prestava a mais pequena atenção à marcha geral dos
acontecimentos, inteiramente ocupada com os seus próprios interesses. E esses
homens é que gozavam da fama de ser as criaturas mais indispensáveis desse
tempo.
Aqueles que,
pelo contrário, procuravam apreciar os acontecimentos de um ponto de vista
elevado, tentando agir com devoção e heroísmo, esses eram tidos como inúteis na
sociedade. As suas ideias divergiam em tudo das dos demais e tudo quanto
levavam a cabo, na melhor das intenções, aos olhos da maior parte das pessoas não
passava de inutilidades, como, por exemplo, os regimentos organizados por Pedro
e Mamonov, que não faziam outra coisa senão saquear as aldeias e roubar as
ligaduras preparadas pelas senhoras da sociedade, as quais nunca chegavam às
ambulâncias. Até mesmo aqueles que, para exibirem os seus dotes de inteligência
e as suas louváveis intenções, se davam a fazer comentários à situação eram
acusados de duplicidade e de mentira ou de fazerem juízos temerários e
malévolos sobre as pessoas que assim tornavam responsáveis de actos de que
ninguém era culpado. Em história, ainda mais do que em qualquer outro assunto,
devemos coibir-nos de provar dos frutos da, árvore de ciência. Só os actos
inconscientes frutificam deveras e os homens que desempenham papel na história nunca
percebem a importância do que fazem. Quando porventura acontece darem por isso,
imediatamente os seus actos se tornam estéreis.
O
significado dos acontecimentos que naquela altura se estavam a dar na Rússia
era tanto mais inapreensível quanto era certo os homens deles participarem
muito intimamente. Tanto em Petersburgo como nas províncias distantes de
Moscovo, as senhoras e os cavalheiros elegantemente fardados de milicianos
deploravam a sorte da Rússia e da sua capital, falando em sacrifícios e noutras
coisas semelhantes, enquanto que no exército, ao proceder-se à evacuação de
Moscovo, quase nunca se falava desse acontecimento: era coisa em que ninguém
pensava. Diante das casas a arder ninguém falava em vingar-se dos Franceses. Só
se, pensava no terço do soldo que cada um ia receber, na etapa próxima, em
Matrechka, na vivandeira, e em coisas do mesmo género.
(…)Tudo era
fácil e divertido para ele naquela sua primeira visita a Vororteje, e o que é
facto é que tudo correu como geralmente acontece quando uma pessoa está na
melhor disposição deste mundo.
A sua
desenvoltura assombrou todo o mundo. Até ele próprio estava surpreendido com a
maneira como dançava naquela noite. Nunca dançara assim em Moscovo e teria
mesmo considerado pouco decente e ordinária a ligeireza dos seus modos, caso
não se tivesse sentido obrigado, naquele meio pequeno, a causar o espanto
daqueles provincianos, graças a atitudes e maneiras deveras extraordinárias até
na capital, mas que fariam aquela gente pensar serem habituais e ainda
desconhecidas na província.
Onde há
justiça há injustiça.
Para mim,
todos os filhos são iguais. Seja qual for o dedo que mordas, faz-te sempre
doer.
O destino é
que manda e nós passamos a vida a dar sentenças.
A nossa
felicidade, meu amigo, é como a água nas redes do pescador. Se puxamos por
elas, as redes incham, mas quando as tiramos de dentro da água já estão vazias.
Sentia que o
mundo moral que se desmoronara na sua alma se ia reedificando, pouco a pouco,
mais belo, e sobre alicerces novos e inalteráveis.
O amor é o
inimigo da morte. O amor é a vida. Tudo, absolutamente tudo que me é dado
compreender, graças ao amor eu o compreendo. Tudo que é, tudo que existe, pelo
amor existe. O amor é Deus; morrer é regressar, eu, parcela desse amor, à fonte
geral e eterna.
A razão
humana não pode compreender a correlação das causas e dos acontecimentos, mas a
necessidade de em tudo achar uma causa é inerente ao espírito humano. Eis
porque a inteligência, incapaz de penetrar as razões infinitas e infinitamente
complicadas dos acontecimentos, as quais, cada uma de per si, podem fazer
figura de causa, lança mão da primeira que lhe aparece, seja a mais acessível
das coincidências, e proclama: Esta é a causa! Nos factos históricos que têm
por objecto de estudo as acções humanas a mais vulgar coincidência costuma ser
a vontade dos deuses, e depois a dos homens colocados em situação de destaque,
os chamados «heróis da história». Basta, no entanto, aprofundar um pouco
qualquer facto histórico, isto é, ver agir as massas de homens que tomaram
parte nele, para nos persuadirmos de que não é a vontade deste ou daquele herói
que conduz as massas, mas, muito pelo contrário, é essa mesma massa que a todo
o momento é conduzida. Dir-se-á ser indiferente que os acontecimentos se
expliquem desta ou daquela maneira. Mas entre aquele que afirma que os povos do
Ocidente se dirigiram para o Oriente porque Napoleão assim o quis, e aquele que
sustenta que tal coisa aconteceu porque assim tinha de acontecer, existe a
mesma diferença que entre os que proclamam que a Terra está imóvel e que os
planetas giram em torno dela e os que confessam ignorar o que mantém a Terra no
espaço, embora saibam que há leis que regem o movimento da Terra e dos
planetas. Não há nem pode haver outras causas dos factos históricos que não
seja a causa de todas as causas, mas há leis que as conduzem, umas vezes desconhecidas,
outras acessíveis à nossa razão. A descoberta destas leis não é possível
todavia senão na medida em que renunciarmos deliberadamente a atribuir as
causas à vontade de um só homem, como acontece com a descoberta das leis do
movimento planetário, as quais apenas se tornaram viáveis a partir da altura em
que se pôs de parte o princípio da imobilidade da Terra.
Depois da
batalha de Borodino, da ocupação e do incêndio de Moscovo, o episódio mais
importante da guerra de 1812 teria sido, na opinião dos historiadores, o
movimento do exército russo ao deixar a estrada de Riazan para seguir pela de
Kaluga, dirigindo-se para o campo de Tarutino, isto é, aquilo a que se chamou
«a marcha de flanco» para Krasnaia Pakra. Atribuem eles a glória deste acto
genial a diferentes pessoas e discutem a quem pertence realmente. Os
estrangeiros, de maneira geral, e os próprios Franceses, prestam jus ao génio
militar dos generais russos sempre que falam desta marcha de flanco. Mas
difícil de compreender é a razão por que os escritores militares, e de todos os
demais na sua esteira, admitem que esta famosa marcha de flanco seja uma
invenção profunda de um indivíduo determinado para salvar a Rússia e perder
Bonaparte. Aliás é difícil de compreender, de facto, a genialidade deste
movimento, pois a verdade é que se não carece de grande rasgo de inteligência
para compreender-se que a melhor posição de um exército não atacado é aquela
que lhe oferece mais nutrido abastecimento. Qualquer pessoa, até a menos
esperta das crianças, sem grande esforço, compreenderia que, em 1812, a estrada
de Kaluga era o caminho mais vantajoso para a retirada do exército depois da
capitulação de Moscovo. E é impossível compreender-se à custa de que deduções
chegam os historiadores a atribuir tamanha profundeza a esta manobra. E ainda
mais difícil é admitir como podem eles descobrir que esta manobra salvava os
Russos e perdia os Franceses, quando é certo que, muito pelo contrário, em
consequência das circunstâncias que a precederam, a acompanharam ou se lhe
seguiram, essa manobra poderia ter sido fatal para o exército russo, dando a
vitória ao exército francês. Se, com efeito, a partir do momento em que esse
movimento se realizou, a situação dos Russos beneficiou, não é razão para se
dizer que a causa disso fosse esse mesmo movimento.
Não só podia
não ter trazido qualquer vantagem ao exército russo esta marcha de flanco, como
podia mesmo ter sido a causa da sua perda. Para isso bastava que outras
circunstâncias não tivessem surgido. Que teria acontecido se se não tivesse
dado o incêndio de Moscovo, se Murat não houvesse perdido o contacto com os
Russos, se Bonaparte não tivesse sido forçado à inacção, se o exército russo
houvesse travado batalha em Krasnaia Pakra, como queriam Bennigsen e Barclay?
Que teria acontecido se os Franceses tivessem atacado os Russos durante a
marcha sobre Pakra ou se, em seguida, Napoleão houvesse atacado os Russos em Tarutino,
apenas com a décima parte da energia que empregara em Smolensk? Que teria acontecido
se os Franceses tivessem marchado sobre Petersburgo?... Em qualquer destas
eventualidades a salvadora marcha de flanco teria redundado num desastre.
Por último, o que é ainda mais inconcebível,
as pessoas que estudaram a história de peito feito não querem ver que a marcha
de flanco não podia de maneira alguma ser atribuída à vontade de um só homem,
que nunca ninguém a previra, que esta manobra, tal como aconteceu com a
retirada de Fili, nunca fora em verdade encarada por quem quer que fosse no seu
conjunto, mas era apenas o resultado de um número infinito de circunstâncias
variadas, só sendo considerada em toda a sua amplitude quando se concluiu e já
pertencia ao passado.
No conselho de guerra de Fili o comando russo
teve como ideia dominante a retirada, coisa óbvia, em linha recta, isto é, pela
estrada de Njjni- Novgorod. A prova está no facto de a maioria das vozes se
terem pronunciado nesse sentido e sobretudo na célebre conversa do
general-chefe, após o conselho, com Lanskoi, intendente-geral. Lanskoi informou
Kutuzov de que os abastecimentos tinham sido principalmente concentrados ao
longo do Oka, através do qual seria impossível
transportá-los nos princípios do Inverno. Foi esta, portanto, uma das primeiras
razões que determinaram o abandono do plano de retirada em linha recta,
aparentemente o mais natural. As tropas mantiveram-se, pois, mais ao sul, na
estrada de Riazan, mais próximas, por conseguinte, dos seus abastecimentos.
Posteriormente, a inactividade dos Franceses,
que chegaram, mesmo a perder o contacto com os Russos, a preocupação de
defender as manufacturas de Tula e sobretudo a vantagem de estar mais perto dos
abastecimentos obrigaram o exército a obliquar mais para sul ainda, na direcção
da estrada de Tula.
Depois de alcançarem, em marchas forçadas, a
estrada de Tula, era intenção dos chefes militares não fazerem alto senão em
Podolsk, e não se falava sequer, então, das posições de Tarutino, mas o caso é
que uma série de circunstancias diversas -a aparição dos Franceses, que tinham
voltado a estabelecer contacto com o exército russo, projectos de batalha e
sobretudo a abundância de provisões em Kaluga- levou as tropas russas a
descerem ainda mais para o sul a fim de se fixarem no centro do campo de
abastecimentos, dirigindo-se da estrada de Tula na direcção da de Kaluga, rumo
a Tarutino. Só quando as tropas chegaram a Tarutino, mercê de um concurso de
circunstâncias, e que os homens principiaram a convencer-se de que tinham desejado
aquela manobra e que a haviam planeado havia muito.
A famosa
marcha de flanco apenas consistiu, em última análise, no seguinte, os exércitos
russos, que até ai haviam retirado no sentido contrario ao da invasão,
desviaram-se, uma vez que o movimento invasor cessou, da linha recta, até então
seguida, e verificaram que não eram perseguidos, encaminharam-se naturalmente,
na direcção das maiores reservas de abastecimentos.
Admitindo
que os exércitos russos nenhum chefe militar genial tivessem a comandá-los, que
ninguém tivessem, mesmo, a comandá-los, não teriam podido fazer outra coisa,
depois da sua retirada sobre Moscovo, senão descrever um arco de círculo na
direcção do local onde se encontravam os abastecimentos e em que havia
abundância de tudo.
O movimento da estrada, de Nijm para a de
Riazan, Tula e Kaluga era tão óbvo que nessa mesma direcção seguiam os bandos
de salteadores e de Petersburgo se impunha a Kutuzov o mesmo caminho.
Em Tarutino
foi por assim dizer repreendido pelo imperador por ter tomado a estrada de
Riazan, e de Petersburgo indicaram-lhe essa mesma posição em frente de Kaluga,
onde aliás, ele já se encontrava quando a carta do imperador lhe chegou às
mãos.
Depois de
rodar na direcção que a batalha de Borodino lhe impusera, a bola que era então
o exército russo, após a supressão da força propulsora inicial, e na falta de
novos impulsos, tomou o caminho que naturalmente se lhe impunha. O mérito de
Kutuzov não está nessa manobra estratégica a que chamaram genial, mas no facto
de ter percebido por si o que, significava esse acto. Só ele, a partir desse
momento, compreendeu a importância da inactividade do exército francês: só ele
teimou em afirmar que a batalha de Borodirio fora uma vitoria; e só ele
empregou toda a sua energia em evitar que o exército se entregasse a combates
inúteis, embora, na sua qualidade de general-chefe devesse ser partidário da
ofensiva.
A fera atingida em Borodino continuava agora
no ponto onde a linham deixado ao afastarse, mas ainda não se sabia se estava
viva, se se encontrava exausta ou se apenas o fingia. E de súbito a fera soltou
um gemido. Esse gemido de fera atingida anunciando o aniquilamento foi o envio
de Lauriston ao campo de Kutuzov com uma proposta de paz.
Napoleão,
persuadido, como sempre, de que tudo quanto fazia era perfeito, escreveu a Kutuzov
nos termos que lhe vieram à cabeça, sem se dar ao cuidado de saber se era
sensato o que escrevia:
Senhor Priucipe Kutuzov:
Envio-lhe um
dos meus ajudantes-de-campo para lhe falar de alguns assuntos de importância.
Peço a Vossa Alteza que faça fé no que ele lhe dirá, sobretudo quando ele lhe
exprimir os sentimentos de estima e de particular consideração que eu desde há
muito nutro pela pessoa de Vossa Alteza. Como não é outro o fim, desta carta, rogo
a Deus, Sr. Príncipe Kutuzov, que vos tenha sob a Sua santa quarda,
Moscovo. 30
de Outubro de 1812,
Assinado:
Napoleão
- Seria amaldiçoado pela posteridade
se viesse a ser encarado como o primeiro motor de um acordo qualquer. Tal é o
espirito presente da minha nação - respondeu Kutuzov, e continuou a fazer tudo ao seu alcance
para impedir o exército russo de passar à ofensiva.
Durante o
mês em que o exército de Napoleão se entregara ao saque de Moscovo e o russo
acampava, tranquilamente, em Tarutino, uma mudança importante se verificara
quer nas forcas dos dois adversários, quer no espirito que os animava: o fiel
da balança inclinou-se a favor dos Russos. Embora eles não conhecessem a situação
exacta do exército francês e as mudanças assaz rápidas que nele se tinham operado,
a necessidade de passar à ofensiva traduzia-se agora em infinitos sintomas.
Grande
numero de razões os compelia a isso: a missão de Lauriston, abundância de
abastecimentos em Tarutino, as notícias provenientes de todos os lados sobre a
inactividade das tropas francesas e as desordens que entre elas lavravam, a
reconstituição dos regimentos russos pela incorporação de novos recrutas,
tempo, o prolongado repouso de que os soldados tinham beneficiado, a impaciência
que em geral se manifesta entre as tropas em descanso ansiosas de cumprir a sua
missão, a curiosidade de saber o que acontecera ao exército francês que há
tanto tinham perdido de vista, a audácia com que os postos avançados russos
perseguiam os franceses desgarrados nas imediações de Tarutino, os
guerrilheiros e a emulação que daí resultava, o desejo de vingança que exaltava
a alma de cada russo desde que os Franceses se encontravam em Moscovo,
principalmente o sentimento obscuro, latente em todos, de que se modificara a
situação das tropas frente a frente, e que eram os Russos que tinham agora
superioridade sobre o inimigo. Se a proporção das tropas era outra, a ofensiva
tornava-se indispensável. E o certo é que, tal como acontece ao relógio pronto
a dar horas quando os ponteiros percorrem os devidos pontos do mostrador, assim
também nas altas esferas principiara um movimento acelerado de acordo com a
mudança produzida entre as tropas.
(…) O
objectivo das múltiplas intrigas estava sobretudo nas operações militares que
cada um queria orientar à sua maneira, quando a verdade é que as operações
prosseguiam independentemente de tudo o que se fizesse, consoante era mister
que prosseguissem, isto é, sem nunca coincidirem com o que congeminavam os
homens, pois a verdade era serem uma consequência das reacções mútuas das
massas. Todas aquelas combinações se cruzavam, se enredavam, reflectindo nas
altas esferas a imagem exacta do que devia realizar-se.
Numa carta
endereçada a Kutuzov no dia 2 de Outubro, a qual ele não viria a receber senão
depois da batalha de Tarutino, dizia o imperador:
Principe Mikail Ilarionovitch:
Desde o dia
2 de Setembro que Moscovo está nas mãos dos Franceses. Os seus últimos
relatórios são datados de 20 e durante todo este tempo não só nada fez contra o
inimigo no sentido de libertar a nossa primeira capital, como, inclusivamente,
nesses relatórios participa que continua a recuar.
Serpukov já se encontra ocupada por um
destacamento e Tula, com as suas fábricas indispensáveis ao exército, está em
perigo.
Por um relatório do general Wintzengerode,
verifico que um corpo de exército inimigo de dez mil homens avança pela estrada
de Petersburgo. Outro, composto de alguns milhares, encaminha-se para Dmitrov.
Um terceiro segue pela estrada de Vladimir. E um quarto, bastante importante,
está concentrado entre Ruza e Mojaisk. No dia 25 o próprio Napoleão estava em
Moscovo.
De acordo
com todas estas indicações, e visto, que o inimigo dispersou as suas forças em
destacamentos assaz iniportantes, e o próprio Napoleão ainda está em Moscovo
com toda a sua guarda, será possível que as forças que se encontram na sua
frente sejam tão poderosas que não possa tentar a ofensiva? É de supor, muito
pelo contrário, com toda a verosimilhança, que o inimigo o esteja a perseguir
com destacamentos ou, mais rigorosamente, com um corpo de tropas muito mais
fraco que o exército que lhe esta confiado a si. É de crer que, tirando partido
destas circunstância, e lhe seja possível, com vantagem evidente, atacar o
inimigo, em número inferior às forças que comanda, e exterminá-lo ou, pelo
menos, obrigá-lo a recuar, permitindo que continuem nas nossas mãos a maior
parte dos distritos actualmente ocupados, e deste modo afastando o perigo que
pesa sobre Tula e as demais cidades do interior.
Se o inimigo estiver em condições de marchar
com um importante corpo de tropas sobre Petersburgo, a fim de ameaçar esta
capital, quase inteiramente desguarnecida, a responsabilidade será sua, pois a
verdade é que com o exército de que dispõe, agindo com decisão e energia, tem
nas suas mãos todos os meios para evitar esta nova desgraça.
Lembre-se de
que já tem de prestar contas à Pátria, indignada pela perda de Moscovo. Sabe,
por experiência, que estou sempre disposto a recompensá-lo. Esta minha boa
disposição não se pode dizer de qualquer modo afectada, mas tanto a Rússia como
eu temos o direito de esperar de si todo o zelo, toda a firmeza e os êxitos que
a vossa inteligência, os vossos talentos militares e a valentia das tropas que
comanda nos autorizam a esperar.
Esta carta
prova que em Petersburgo se sabia com exactidão qual o cômputo das tropas em
presença, mas ainda ela vinha a caminho e já Kutuzov não podia impedir o
exército sob o seu comando de tomar a ofensiva. A batalha já estava travada.
«É sempre
assim na Rússia, faz-se tudo ao contrário!», diziam, depois de Tarutino, os
oficiais e os generais russos, como ainda hoje o repetem, para darem a perceber
que, se houve um imbecil que fez tudo ao contrário, eles, no seu caso, teriam
procedido de maneira muito diferente. A verdade, porém, é que aqueles que assim
falam ou não conhecem o assunto de que se trata, ou então se enganam
redondamente.
As batalhas, seja a de Tarutino, a de Borodino
ou de Austerlitz, nunca decorrem segundo as previsões daqueles que as dirigem.
Eis um facto essencial.
Número infinito
de forças independentes - em nenhuma outra circunstância é o homem mais livre
que numa batalha, para ele questão de vida ou de morte - influem na marcha das
operações, e esta marcha nunca poderá ser conhecida antecipadamente, nem nunca
coincidirá com a direcção que lhe tenha fixado tal ou qual força individual
única.
Quando sobre um determinado corpo agem, ao
mesmo tempo de vários lados, variadas forças, a direcção do movimento não pode
ser a de nenhuma dessas forças, mas como que a média de todas elas, o que em
mecânica costuma exprimir-se pela diagonal do paralelogramo das forças.
Quando os
historiadores, especialmente os franceses, afirmam que as suas guerras ou as
suas batalhas se desenrolam segundo um plano antecipadamente estabelecido, a
única conclusão que podemos tirar das suas descrições é que são inexactas.
O combate de
Tarutino, evidentemente, não atingiu o resultado que Toll se propunha, isto é,
conduzir as tropas em perfeita ordem ao ponto fixado pelo dispositivo, nem
tão-pouco aquele que desejava o conde Orlov, isto é, fazer prisioneiro Murat,
ou o de Bennigsen e de outros, o de esmagar instantâneamente o corpo inimigo;
ou ainda o dos oficiais desejosos de tomarem parte numa acção e de se
distinguirem; ou o dos cossacos, que não conseguiram recolher todos os despojos
que apanharam, e assim por diante.
Mas se o
objectivo real era justamente aquele que se alcançou e o que todos os russos
unanimemente desejavam: expulsar os Franceses e destruir o seu exército é
evidente que a batalha de Tarutino, graças, precisamente, a isso mesmo, aos
erros cometidos, foi a única eficiente naquele momento da campanha. Era difícil
e mesmo impossível imaginar resultado de batalha mais favorável.
Com os mais
mesquinhos esforços, no meio dos maiores erros, e com perdas quase
insignificantes, adquiriram-se os maiores resultados de toda a campanha: passou-se
da retirada à ofensiva. Foi demonstrada a fraqueza dos Franceses, e os Russos
provocaram o choque que os exércitos de Napoleão esperavam para empreender a
fuga.
Napoleão
entra em Moscovo depois da brilhante vitória do Moskva; não há dúvida de que a
vitória foi dele, pois o campo de batalha ficou nas mãos dos Franceses. Os
Russos recuam e abandonam a capital. Moscovo, a abarrotar de provisões, de
armas, de munições e de riquezas sem conta, está nas mãos de Napoleão. O
exército russo, duas vezes mais fraco que o francês, durante trinta dias não
esboça a mais pequena tentativa de ataque.
Não pode ser
mais brilhante a posição de Bonaparte. Para cair com forças duas vezes
superiores sobre os restos do exército russo e esmagá-lo; para propor uma paz,
vantajosa ou, em caso de recusa, esboçar um movimento ameaçador sobre
Petersburgo; para, mesmo no caso de desastre, retirar sobre Smolensk ou Vilna,
em vez de ficar em Moscovo; numa palavra, para conservar a situação admirável
em que os Franceses se encontravam, parece que não era necessário ser-se um
génio militar extraordinário.
Bastava
fazer a coisa mais simples e mais fácil deste mundo: impedir que as tropas se
entregassem ao saque, preparar roupas de Inverno, roupas que Moscovo estava em
condições de fornecer para o exército inteiro, e regulamentar a distribuição de
alimentos, os quais, na opinião dos historiadores franceses, eram suficientes
para seis meses.
Napoleão, esse génio dos génios, senhor de
plenos poderes sobre o exército, segundo referem os historiadores, não soube
pôr em prática esta coisa simplíssima.
E não só
nada disto fez, mas serviu-se de todo o seu poder para escolher, de entre todas
as medidas a tomar, a mais absurda e a mais nefasta; de tudo o que podia fazer
- hibernar em Moscovo, marchar sobre Petersburgo ou sobre Nijni-Novgorod, ou
retroceder, quer pelo norte, quer pelo sul, pela estrada que depois seguiu
Kutuzov-, escolheu a mais absurda e mais perigosa: ficar em Moscovo até
Outubro, deixando que os seus soldados saqueassem a cidade, e em seguida
hesitar entre manter uma guarnição na capital, sair dela ao azar, aproximar-se
de Kutuzov, não decidir travar batalha, passar pela direita, alcançar
MaloIaroslavets sem correr o risco de um recontro; o não tomar a estrada que
seguira Kutuzov, mas regressar a Mojaisk pela estrada escalavrada de Smolensk.
Nada se pode imaginar de mais insensato nem de mais nefasto, como ficou
amplamente provado pelas consequências. Admitindo que Napoleão tivesse como
objectivo perder o seu exército, teria sido difícil aos mais hábeis estrategos
imaginar plano de operações mais eficaz para a destruição completa desse exército,
e isso independentemente de tudo quanto o próprio exército russo pudesse ter
feito nesse sentido!
E no entanto
foi isto mesmo que o genial Napoleão acabou por fazer. E, apesar de tudo,
afirmar que este perdeu o seu exército porque quis ou porque não passava de um
tolo seria tão errado como dizer que ele levara as suas tropas até Moscovo por
ter sido esse o seu desejo e porque era uma inteligência e um génio. Quer num
quer no outro caso, a sua acção pessoal, não mais influente que a do mais
insignificante dos seus soldados, limitou-se a conformar-se com as leis que
presidiam ao acontecimento.
Estão em
erro os historiadores que nos apresentam Napoleão intelectualmente deprimido em
Moscovo, simplesmente porque os resultados não justificam a sua acção. Nesse
momento, como antes e depois, em 1813, Napoleão serviu-se de toda a sua força
moral para agir o melhor possível no interesse próprio e no interesse do seu
próprio exército.
Então a sua actividade não foi menos
surpreendente do que a que empregou no Egipto, na Itália, na Áustria e na
Prússia. A verdade é que não sabemos com precisão até que ponto se revelou o
seu génio no Egipto, onde quarenta séculos contemplaram a sua grandeza, visto
os seus feitos nos terem sido relatados por franceses.
É-nos impossível apreciar no seu justo valor o
génio por ele demonstrado na Áustria e na Prússia, pois a verdade é que não
podemos conhecer os seus actos senão através de fontes francesas e alemãs, e os
Alemães não podem explicar a capitulação sem combate do seu corpo de exército e
capitulação sem cercos em forma das suas fortalezas desde que não recorram ao
reconhecimento do génio que Bonaparte exibiu na guerra da Alemanha.
No que diz
respeito aos Russos, esses, graças a Deus, não têm qualquer razão para se
inclinarem perante essas qualidades excepcionais no intuito de esconderem a sua
vergonha. Os Russos pagaram caro de mais o direito de julgar os seus actos com
justeza e sem disfarces e não estão dispostos a abandonar o direito que lhes
assiste.
A actividade
de Napoleão em Moscovo foi tão espantosa e tão inspirada pelo génio como em
qualquer outra parte. Ordens e planos não cessaram de lhe emanar da cabeça
desde que entrou em Moscovo até, que partiu da capital russa. Não o
impressionam nem a ausência dos habitantes nem das deputações, como o não
impressiona o próprio incêndio da cidade. Não perde de vista nem o bem-estar do
seu exército nem os movimentos do inimigo, tão-pouco esquece o bem-estar das
populações russas, a administração dos negócios públicos de Paris e as
considerações diplomáticas relativas às condições de paz.
No ponto de
vista militar, Napoleão, assim que entrou em Moscovo, deu ordens severas ao
general Sebastiani para que seguisse exactamente os movimentos do exército
russo e enviasse corpos de tropas em várias direcções, tendo prescrito a Murar
que descobrisse o paradeiro de Kutuzov.
Em seguida toma medidas severas para
fortificar o Kremlin e estabelece um plano admirável para a sua futura campanha
na Rússia.
No ponto de vista diplomático convoca o
capitão Iakovlev, arruinado e andrajoso, que não sabia como sair de Moscovo,
para lhe expor detalhadamente a sua política, e a sua magnanimidade, e
entrega-lhe uma carta para o imperador Alexandre, onde se, sente no dever de o
pôr ao corrente do comportamento censurável de Rostoptchine, ordenando-lhe que
a leve a Petersburgo. E expõe igualmente os seus magnânimos projectos a
Tutolmina e manda também este ancião a Petersburgo como parlamentário.
No que diz
respeito a assuntos judiciais, após os incêndios ordena que se procurem e punam
os culpados. E o malfeitor do Rostoptchine é castigado, ordenando-se que lhe
deitem fogo às próprias casas.
Em matéria
administrativa, oferece a Moscovo uma constituição. Cria-se uma municipalidade
e afixa-se a seguinte proclamação:
Habitantes
de Moscovo! São grandes as vossas desgraças, mas Sua Majestade o Imperador e
Rei quer pôr termo aos vossos sofrimentos. Terríveis exemplos vos mostraram já
a maneira como ele castiga a desobediência e o crime. Severas medidas foram
tomadas para acabar com as desordens e dar lugar a que se restabeleça a segurança
de todos os indivíduos. Uma administração paternal, composta de homens
escolhidos de entre vós, formará a vossa municipalidade. O corpo administrativo
chamará a si cuidar de vós, das vossas necessidades, dos vossos interesses. Os
membros desta municipalidade distinguir-se-ão por uma faixa vermelha a
tiracolo.
O governador
civil, além da faixa, terá uma cinta branca. Fora das horas de serviço, porém,
os membros da municipalidade apenas usarão braçadeira vermelha no braço
esquerdo.
A polícia
municipal é instituída de acordo com o antigo regulamento, e graças à vigilância
por ela exercida a ordem na cidade já é outra. O Governo nomeou dois
comissários-gerais, ou police-meister, e vinte comissários, ou tchastni
pristavs, para todos os bairros da cidade. Conhecem-se pela braçadeira branca
no braço esquerdo.
Várias
igrejas afectas a cultos diversos estão abertas e as solenidades religiosas
realizam-se sem obstáculos. Os vossos concidadãos estão todos os dias a
regressar aos seus lares e deram-se instruções para que lhes seja prestada
ajuda e protecção, como é devido a quem sofre.
Eis os meios
pelos quais o Governo espera restabelecer a ordem e minorar as vossas
privações.
Mas para se
chegar a este objectivo é preciso que junteis os vossos esforços aos desta
gente, que esqueceis, se for possível, os sofrimentos por que acabais de
passar, que tenhais esperanças num futuro menos cruel, que estejais convencidos
de que a morte inevitável e infamante pesará sobre todos aqueles que atentem
contra a vossa vida ou contra a vossa propriedade, e sobretudo que não tenhais
dúvidas de que os vossos bens serão respeitados, que tal é o desejo do maior e
do mais justo de todos os monarcas, Soldados e habitantes, seja qual for a
vossa nacionalidade!
Restabelecei
a confiança pública, essa fonte de felicidade de todos os governos, vivei em
paz, ajudai-vos e protegei-vos uns aos outros, uni-vos para combater as
tentativas dos criminosos; obedecei às autoridades militares e municipais e não
tarda que deixem de correr lágrimas dos vossos olhos.
No que dizia
respeito a subsistências, Napoleão ordenou às tropas que viessem à vez a
Moscovo, à rapina, para assim arranjarem alimentos para que o exército pudesse
fazer face ao futuro.
No que tocava à religião, deu ordens de
trazerem os popes e de recomeçarem nas igrejas as cerimónias religiosas.
Mandou afixar por toda a parte a seguinte
proclamação, relativa às transacções comerciais e ao fornecimento de subsistências
ao exército:
Pacíficos habitantes de Moscovo, homens de
artes e ofícios que as desgraças afastaram da cidade, e também vós outros
agricultores dispersos, escondidos pelos campos, aterrorizados sem qualquer
fundamento, ouvi! A calma restabeleceu-se na capital e a ordem reina por toda a
parte. Os vossos compatriotas abandonam sem medo os seus refúgios, pois sabem
que serão respeitados. Qualquer acto de violência exercido contra eles ou em
prejuízo dos seus bens é punido acto contínuo.
Sua Majestade
o Imperador e Rei protege-vos e só considera inimigos aqueles que de entre vós
desobedecerem às suas ordens. É seu desejo pôr fim às vossas infelicidades e
restituir-vos a vossos lares e a vossas famílias. Correspondei às suas
benévolas medidas voltando a casa sem temor algum.
Habitantes!
Artesãos e trabalhadores laboriosos! Retomai as vossas actividades: os vossos
lares, as vossas tendas, protegidas por patrulhas, esperam-vos, e o vosso
trabalho será recompensado.
E vós, camponeses, abandonai as florestas onde
vos refugiastes levados pelo medo, regressai às vossas isbás, certos de que vos
saberemos proteger. Criaram-se nas cidades grandes armazéns onde os camponeses
podem colocar os produtos da lavoura que excedam as suas necessidades.
Para garantir
a livre circulação destes produtos, o Governo tomou as seguintes medidas: 1º De
hoje em diante os camponeses, lavradores e demais habitantes dos arrabaldes de
Moscovo, sem qualquer risco, podem trazer à capital os seus produtos e
colocá-los em dois dos armazéns montados para esse fim, um na Rua Mokovaia e
outro no Mercado Okotni. 2º Estes produtos serão adquiridos ao preço que se
convencione entre o vendedor e o comprador; porém se aquele que vende não
encontrar quem lhe pague preço justo tem o direito de tornar a levar a sua
mercadoria, sem que ninguém o possa impedir. 3º Em vista disto, semanalmente,
aos domingos e quartas-feiras, haverá feiras, e para esse efeito aos sábados e
terças-feiras serão destacadas tropas em número suficiente para protegerem os
comboios ao longo de todas as estradas, até certa distância da capital. 4º
Iguais medidas se adoptaram para proteger o regresso dos camponeses às suas
aldeias. 5º Procurar-se-á restabelecer no prazo mais breve possível os mercados
ordinários.
Habitantes
da cidade e das aldeias, e vós, artesãos, operários, qualquer que seja a vossa
nacionalidade! Apelamos para vós, rogando-vos que vos conformeis com as
paternais instruções de Sua Majestade o Imperador e Rei e que o ajudeis a
contribuir para o bem-estar comum. Depositai a seus pés o respeito e a
confiança e não vos demoreis a juntar-vos connosco!
No intuito
de elevar o moral das tropas e do povo, havia frequentes paradas e distribuíam-se
condecorações.
O imperador
percorria as ruas a cavalo, consolando os habitantes, e apesar das muitas
preocupações que lhe causavam os negócios públicos aparecia nos espectáculos
organizados segundo inspiração sua.
No que diz respeito à beneficência, a melhor
virtude dos soberanos, Napoleão fez também tudo que dependia dele. Deu ordem
para que se inscrevesse no frontão dos estabelecimentos de beneficência: Casa de minha mãe, maneira de associar,
assim, o terno afecto filial à magnanimidade do monarca. Visita o asilo das
crianças abandonadas, dá a beijar a sua branca mão aos órfãos que salvou e
conversa condescendentemente com Tutolmine.
Enfim,
segundo o eloquente relato de Thiers, manda pagar o soldo dos seus soldados com
o dinheiro russo por ele falsificado. «Relevando o emprego dos seus recursos
por um acto digno de si e do exército francês, mandou distribuir socorros aos
sinistrados. Mas como os víveres eram demasiado preciosos para serem dados a
estrangeiros, a maior parte dos quais inimigos, Napoleão preferiu
distribuir-lhes dinheiro para que eles se abastecessem fora da cidade, e mandou
distribuir-lhes rublos-papel.»
Enfim, no,
desejo de manter a disciplina do exército, constantemente expede ordens severas
para que sejam punidas as infracções ao regulamento e ao saque.
Mas, coisa
estranha, todas estas medidas, todas estas ordens e todos estes planos, em nada
piores que os tomados em circunstâncias idênticas, não afectavam a essência da
questão, como acontece aos ponteiros de um quadrante que, quando desligados do
maquinismo, giram arbitrariamente e sem objectivo, alheios às engrenagens que
os accionam.
No ponto de
vista militar, este genial plano de campanha, a respeito do qual Thiers disse
«que o seu génio nunca imaginara nada de mais profundo, de mais hábil e de mais
admirável», e a propósito do qual., na sua polémica com M. Fain, se empenha em
demonstrar ter sido redigido não a 4, mas a, 15 de Outubro, este plano nunca
foi nem nunca poderia ter sido executado, pois a verdade é que em coisa alguma
se aplicava às circunstâncias de momento.
A fortificação do KrermIin, que implicava a,
demolição da Mesquita, que assim chamava Napoleão à igreja de Basílio, o
Bem-Aventurado, provou ser absolutamente inútil. As minas cavadas no subsolo do
Kremlin apenas serviram para ajudar o imperador a pôr em prática o seu projecto
de o fazer ir pelos ares aquando da sua partida de Moscovo, no mesmo espírito
com que uma pessoa fustiga o soalho que fez cair uma criança.
A perseguição do exército russo, que tanto o
preocupou, proporcionou aos observadores um espectáculo extraordinário. Os
generais franceses perderam a pista de sessenta mil russos, e, segundo Thiers,
só graças à habilidade, e talvez mesmo ao génio de Murat, foi possível
encontrá-los, como se se tratasse de um simples alfinete perdido.
Na actividade diplomática, os argumentos que
Napoleão desenrolou para demonstrar a sua generosidade e o seu espírito de
justiça diante de Tutolmina e de IakovIev, o qual, entre parêntesis se diga, se
preocupava sobretudo em arranjar um bom capote e uma carruagem, resultaram
também inúteis; Alexandre I não recebeu esses embaixadores e não respondeu às
cartas de que eram portadores.
E no que diz respeito às suas medidas
judiciárias? Apesar de ter sido executado grande número de falsos incendiários,
o que restava de Moscovo acabou por arder.
E quanto às suas medidas administrativas? A
constituição de uma municipalidade não só não deteve o saque, como só foi útil
às pessoas que dela fizeram parte, as quais, a pretexto de manterem a ordem, se
entregaram à pilhagem ou apenas se deram ao cuidado de proteger o que era seu
contra a pilhagem alheia.
No que toca
a matéria religiosa, as medidas postas em prática no Egipto, como as visitas às
mesquitas, que aí deram tão bons resultados, em Moscovo não produziram efeito
algum. Os dois ou três padres que estavam em Moscovo procuraram pôr em execução
a vontade imperial, mas um deles foi esbofeteado por certo soldado francês
durante o serviço divino e acerca de outro escreveu um funcionário de Napoleão
o que se segue: «O padre que eu descobrira, e a quem convidara a celebrar
missa, limpou e fechou a igreja. Nessa noite vieram de novo arrombar as portas,
partir os cadeados, rasgar os livros e praticar outras desordens.»
No que se refere a assuntos comerciais, a
proclamação aos artesãos e camponeses não encontrou o mais pequeno eco. Já não
havia «trabalhadores laboriosos»: e, quanto aos camponeses, esses deitaram a
mão aos comissários portadores das proclamações que se aventuraram longe de
mais e mataram-nos.
Tão-pouco
deram resultado os espectáculos destinados a divertir o público e as tropas. Os
teatros organizados no Kremlin e em casa de Posniakov foram imediatamente
fechados, pois actores e actrizes viram-se despojados de tudo quanto tinham.
Também a
beneficência foi estéril. Moscovo viu-se inundada de papel-moeda, quer falso
quer verdadeiro, que logo perdeu todo o seu valor. Os Franceses, só preocupados
em encher as algibeiras, apenas queriam ouro. Não só carecia de valor a moeda
falsa que Napoleão distribuía tão generosamente pelos desgraçados, como as
próprias moedas de prata se trocavam por moedas de ouro muito abaixo do seu
valor.
Mas o
exemplo mais impressionante da ineficácia das medidas tornadas nas altas
esferas revelou-se na inutilidade dos esforços do imperador para deter a
pilhagem e restabelecer a disciplina.
Eis aqui informações das autoridades
militares: «O saque continua na cidade, apesar das ordens dadas para que
cessasse. A ordem, por enquanto, não está restabelecida e ainda não há um único
comerciante que pratique comércio legal. Apenas os cantineiros se arriscam a
vender, mas objectos provenientes do saque.» «A parte do meu bairro continua a
ser saqueada pelos soldados do 3º corpo, os quais, não se contentando em
arrancar aos desgraçados refugiados nos subterrâneos o pouco que lhes resta, se
mostram tão ferozes que os ferem à sabrada, como eu próprio pude observar.»
«Nada de novo, além de que os soldados continuam a roubar e a saquear, 9 de
Outubro.»
«O roubo e o
saque continuam. Há um bando de ladrões no nosso bairro que é preciso mandar
prender por uma força poderosa. 11 de Outubro.»
«O imperador está muito descontente com o
facto de, apesar das ordens severas dadas para se acabar com a pilhagem, só ver
chegar ao Kremlin destacamentos de merodistas da guarda. Na velha guarda
renovaram-se ontem e hoje com mais intensidade do que nunca os actos de
pilhagem. O imperador tem o desgosto de verificar que soldados de escol,
destinados a defender a sua própria segurança, e que deviam dar exemplo de
acatar as ordens, levam tão longe a desobediência que saqueiam os próprios
armazéns e as lojas preparadas expressamente para o exército. Alguns tão baixo
desceram que já não obedecem às sentinelas, antes as injuriam e as abatem a
tiro.»
«O grande marechal do palácio queixa-se»,
escrevia o governador, «de que, apesar das reiteradas proibições, os soldados
continuam a fazer as suas necessidades em todos os pátios e até mesmo debaixo
das janelas do imperador.»
O exército
francês, como um rebanho que pisasse aos pés o pasto destinado a salvá-lo da
fome, dispersava-se e perecia, pouco a pouco, mercê daquela longa permanência
em Moscovo. E a verdade é que se não movia. Não se moveu até ao dia em que de
súbito o assaltou um medo pânico, e isso veio a dar-se quando os soldados
souberam que haviam sido capturados comboios na estrada de Smolensk e que se
dera a batalha de Tarutino. A notícia desta batalha, inopinadamente levada ao
conhecimento de Napoleão durante uma parada militar, despertou no imperador o
desejo de castigar os Russos, como refere Thiers, e foi então que deu a ordem
de marcha reclamada pelo exército inteiro.
Ao abalarem
de Moscovo, os soldados levavam consigo tudo quanto tinham podido apanhar. O
próprio Napoleão fugia com o seu tesouro. Perante os pesados carregamentos que
o exército levava, segundo diz Thiers, Napoleão ganhou medo. Mas, com a sua
experiência da guerra, não mandou queimar todas as bagagens supérfluas, como
fizera com as carroças de um dos seus marechais, ao aproximar-se de Moscovo. Ao
ver essas seges e essas carruagens apinhadas de soldados, achou que estavam bem
e que esses carros poderiam vir a ser utilizados mais tarde para transportar
abastecimentos, doentes e feridos.
A situação
do exército francês fazia lembrar a de uma fera atingida que sabe próximo o seu
fim e já não atina com o que deve fazer.
Estudar as
hábeis manobras e os planos de campanha de Napoleão e do seu exército desde a
entrada em Moscovo até à destruição deste é como estudar os pinchos e as
convulsões de um animal ferido de morte. Acontece muitas vezes que esse animal,
assustado por um ruído qualquer, se atira para debaixo da espingarda do
caçador, corre direito a ele, volta para trás, precipitando deste modo o seu
próprio fim.
Eis o que fez Napoleão sob a pressão do seu
exército. A notícia da batalha de Tarutino encheu de medo o animal, que se
atirou para debaixo da espingarda, chegou até junto do caçador, voltou para
trás e, por fim, como sempre acontece, se precipitou no caminho mais
desvantajoso e mais perigoso, pois os seus trilhos já lhe eram conhecidos. Tal
como aos olhos dos selvagens, a figura esculpida à proa do barco se lhes
afigura a força que o faz mover, Napoleão, que nos é apresentado como o
dirigente de todo este movimento, na realidade, durante todo este período da
sua vida, foi apenas a criança que, agarrada às correias do interior de um
carro, julga estar a dirigi-lo.
(…) Precisamente
naquela altura atingia ele aquela serenidade e aquela satisfação de si próprio
a que debalde aspirara outrora. Por muito tempo, no decorrer da sua vida,
procurara, de vários modos e em várias direcções, aquela tranquilidade, aquele
acordo consigo próprio, que tão profundamente o impressionara nos soldados
durante a batalha de Borodino. Procurara-os na filantropia, na
franco-maçonaria, nas distracções da vida mundana, no vinho, na heróica
abnegação, no romanesco amor ; procurara-os pelas vias do puro pensamento e
sempre e em toda a parte só encontrara decepções. Mas agora, espontaneamente,
sem pensar nisso, ei-lo que achara essa serenidade nos horrores passados diante
da morte, nas privações (…)
O príncipe
André pensava e dizia que a felicidade apenas tinha carácter negativo, e isto
não sem que o dissesse e pensasse com um misto de amargura e ironia. Pensando
assim, parecia querer dizer que todas as aspirações do homem à felicidade
positiva lhe não tinham sido dadas senão para o atormentar, insatisfeitas que
sempre eram. Sem qualquer pensamento reservado, Pedro adoptara esta maneira de
pensar. A ausência da dor, a satisfação de todas as necessidades, e, como
consequência, a liberdade da escolha das suas próprias ocupações, isto é, do
género de vida que mais lhe quadrava, afiguravam-se-lhe, a Pedro,
incontestavelmente, o ideal da felicidade humana. Mas agora compreendera pela
primeira vez o prazer de comer quando se tem fome, de beber quando se tem sede,
de dormir quando se tem sono, de se aquecer quando se tem frio, de falar quando
apetece ouvir uma voz humana. A satisfação das necessidades, uma boa
alimentação, o asseio, a liberdade, agora, que estava privado de tudo isso,
apareciam-lhe como o supra-sumo da felicidade, e a liberdade da escolha das
suas ocupações, isto é, a própria vida, agora, que tão limitada lhe estava essa
escolha, parecia-lhe coisa tão fácil que esquecia que o próprio excesso das
comodidades da existência destrói toda a felicidade que resulta da satisfação
das necessidades e que uma perfeita liberdade de acção, essa liberdade que lhe
proporcionara a instrução, a fortuna, a posição na sociedade, torna a escolha
das ocupações excessivamente difícil e por isso mesmo destrói a necessidade e o
desejo de acção.
Todos os
pensamentos de Pedro se reportavam agora ao momento em que o restituíssem à
liberdade. E, no entanto, depois, e até ao fim dos seus dias, alegremente
recordaria aquele mês de prisão e com entusiasmo falaria das fortes e
inapagáveis alegrias que experimentara então e sobretudo da serenidade moral
perfeita, da completa liberdade interior que só nessa quadra da sua existência
profundamente conhecera.
Já nada o
comovia: dir-se-ia que a sua alma, preparando-se para uma luta difícil, repelia
de si toda a emoção capaz de a debilitar.
«Ah!, ah!,
ah!», gargalhava Pedro. E em voz alta ia dizendo para si mesmo: «O soldado não
me deixou passar, apanharam-me, encarceraram- me, fizeram-me prisioneiro. Mas a
quem? A mim, à minha alma imortal? «Ah!, ah!, ah…» E de tanto rir
enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas.(…) Ergueu os olhos para o céu, para as
profundezas onde se perdiam as estrelas cintilando. «E tudo isto me pertence,
tudo isto está em mim e tudo isto sou eu!», exclamou. «E a tudo isto deitaram
eles a mão e tudo isto encerraram numa barraca de madeira!» Sorriu e foi
deitar-se junto dos companheiros.
Nos
primeiros dias de Outubro Kutuzov voltara ainda a receber uma carta de
Napoleão, com propostas de paz, que lhe fora confiada por um parlamentário,
carta falsamente datada de Moscovo, pois o imperador já se encontrava para além
do exército russo, na velha estrada de Kaluga. Kutuzov repetiu o que respondera
à primeira que lhe fora apresentada por Lauriston: que não queria ouvir falar
em paz.
O
destacamento de guerrilheiros comandado por Dolokov, que operava à esquerda de
Tarutino, comunicou que haviam desaparecido tropas francesas em Fominskoie, e
que, essas tropas eram formadas pela divisão Broussier, a qual, isolada do
resto do exército, facilmente podia ser dizimada.
Soldados e oficiais exigiam, gritando, que os
deixassem combater. Os generais do estado-maior, encorajados pela vitória fácil
de Tarutino, insistiam com o generalíssimo para que a proposta de Dolokov fosse
aceite. Kutuzov continuava a considerar inoportuna qualquer actividade. Foi
então resolvido tomar uma medida intermédia: enviou-se um pequeno destacamento
a Fominskoie com o propósito de atacar Broussier.
Por um estranho acaso, esta missão - a mais
difícil e a mais importante de todas, como depois se verificou - foi confiada a
Dokturov, esse pequeno e modesto Dokturov, que ninguém concebia a gizar planos
de batalha, e lançar-se à frente dos seus regimentos, ou a espalhar cruzes às
mãos-cheias pelas baterias, esse homem que tinha fama de indeciso, e que, no
entanto, em todas as operações contra os Franceses, de Austerlitz até 1813,
estivera sempre na posição de comando onde a situação era mais difícil.
Em
Austerlitz fora o último a abandonar o dique de Augezd, reunindo os regimentos,
salvando o que podia, quando todos debandavam ou tinham sido mortos e mais
nenhum general havia na linha de fogo.
Enfermo e cheio de febre, acorreu a Smolensk
com vinte mil homens para defender a cidade contra o exército de Napoleão. Em
Smolensk, num grande acesso febril, passa pelo sono na Porta de Malakov. O
tiroteio desperta-o e a cidade aguenta-se todo o dia.
Em Borodino, depois que Bagration foi morto e
os Russos perderam, na sua ala esquerda, um por cada nove soldados, e quando
toda a artilharia francesa despejava metralha sobre eles é ainda este indeciso
e imprevidente Dokturov quem vai substituir um general mal escolhido numa
infeliz decisão de Kutuzov. E apresenta-se este miúdo, este modestíssimo Dokturov,
e Borodino transforma-se numa das mais brilhantes glórias russas.
No entanto,
embora sejam muitos os heróis celebrados em prosa e verso, de Dokturov ninguém
fala.
Foi ainda
Dokturov o general enviado a Fominskoie e daí a Malii Iaroslavets, local em que
se travou a última verdadeira batalha contra os Franceses, e onde, de facto,
verdadeiramente, principiou a derrocada dos exércitos napoleónicos. E, embora
sejam muitos os génios e os heróis glorificados desta campanha, de Dokturov ou
não se fala ou apenas se lhe dedicam algumas palavras de elogio equívoco. O
silêncio à volta deste homem é a mais evidente prova dos seus méritos.
É natural
que um homem que não conhece o funcionamento de uma máquina atribua grande
importância ao cisco que por acaso se introduziu nas suas engrenagens e a não
deixa funcionar. Sem conhecer a sua construção, esse homem não pode compreender
que o órgão essencial da máquina é a pequena roda que gira sem ruído.
(…)era uma
dessas engrenagens invisíveis que sem fazer qualquer ruído constituem um dos
órgãos essenciais de qualquer máquina.
Sabia que
quando se deseja muito qualquer coisa, pode uma pessoa acabar por preparar as
notícias de sorte a que elas confirmem o que se deseja, tendo o cuidado de
guardar silêncio sobre tudo que contradiga o que se pretende.
(…)Kutuzov
recua por toda a parte, mas o inimigo, sem esperar que ele recue, foge em
direcção oposta.
Os historiadores de Napoleão descrevem todas
estas hábeis manobras em direcção a Tarutino e Maloiaroslavets e fazem prognósticos
sobre o que teria acontecido se o imperador tivesse podido penetrar nas ricas
províncias do Sul.
Mas a
verdade é que, além de ninguém o impedir de penetrar nessas províncias, uma vez
que o exército russo lhe abria o caminho para elas, esses historiadores
esquecem-se de que nada podia já então salvar o exército napoleónico, visto ele
transportar consigo inevitáveis germes de morte. Esse exército, que encontrara
em Moscovo abundantes abastecimentos, e que, em vez de os conservar, os
desperdiçara por completo, esse exército, que ao chegar a Smolensk, em lugar de
repartir os mantimentos entre os seus homens, deixara que os pilhassem, estaria
esse exército em condições de recuperar forças na província de Kaluga, cujos
habitantes sentiam e pensavam como os de Moscovo e tinham, como eles, o fogo à
sua disposição? Tal exército não tinha maneira de se refazer fosse onde, fosse.
Depois de Borodino e do saque de Moscovo,
havia nele elementos de decomposição por assim dizer químicos. Os soldados
deste, por assim dizer, ex-exército fugiam com os seus comandantes sem saber
para onde, não desejando - tanto Napoleão como qualquer dos seus soldados -
senão uma coisa: sair, pessoalmente, o mais breve possível, daquela situação
sem apelo, de que todos se davam conta, embora confusamente.
Eis porque, em Maloiaroslavets, onde os
generais franceses, simulando um conselho de guerra, emitiram vários pareceres,
o ultimo, o do cândido soldado que era Mouton, exprimindo o que estava no
pensamento de todos, que o que havia a fazer era abalarem o mais depressa possível,
tapou a boca a toda a gente e ninguém, nem o próprio Napoleão, ousou objectar
fosse o que fosse a essa indiscutível verdade.
No entanto,
por mais que reconhecessem que era preciso partir, tinham vergonha ainda de confessar
a necessidade da fuga. Era preciso um impulso exterior para vencer essa
relutância humana. E esse impulso veio a produzir-se no momento necessário. Foi
o que os Franceses chamaram o «hurra do imperador».
No dia
seguinte, após este conselho de guerra, Napoleão, de madrugada, com o pretexto
de inspeccionar as tropas e o campo das batalhas passadas e futuras,
aventurou-se com a sua escolta até às primeiras linhas. Alguns cossacos que
andavam na pilhagem surpreenderam o imperador e por pouco não lhe deitaram a
mão. Se desta vez o não apanharam, salvou-o, precisamente, o que fora a causa
da derrota dos Franceses: o saque, que naquele caso, como antes, em Tarutino,
levou os cossacos a não pensarem noutra coisa.
Sem repararem em Napoleão, entregaram-se à pilhagem,
e assim o imperador pode escapar-se-lhe das mãos. Desde que os rapazes do Dom
tinham a possibilidade de o apanhar no meio do seu próprio exército, era
evidente não haver outra coisa a fazer senão fugir o mais depressa possível
pela estrada mais curta.
Napoleão,
com os seus quarenta anos e a sua barriguinha, já se não sentia com a
elasticidade e a audácia de outrora, e compreendeu a advertência. O medo que os
cossacos lhe provocaram levou-o a aceitar imediatamente o parecer de Mouton.
E deu ordem
de retirar, assim o dizem os seus historiadores, pela estrada de Smolensk. O
facto de Bonaparte se ter mostrado de acordo com Moutou e a circunstância de o
seu exército ter batido em retirada não provam de maneira alguma que a decisão
haja partido dele, mas apenas que as forças ocultas, agindo sobre os seus
homens, e impelindo-os a tomar a estrada de Mojaisk, também agiam sobre Napoleão.
Quando um
homem se move, o seu movimento tem sempre uma finalidade. Para percorrer mil
verstas é preciso, necessariamente, que o homem se figure que ao cabo dessas
mil verstas há qualquer coisa de muito agradável à sua espera. Para se resolver
a marchar tem de apetecer a terra prometida.
A terra prometida, para os Franceses, no
momento em que invadiam a Rússia era Moscovo; na altura da retirada a terra
prometida era a pátria. Mas a pátria estava muito longe, e o homem com mil
verstas a percorrer tem, necessariamente, de principiar por se dizer a si
próprio que fará hoje quarenta verstas, ao cabo das quais poderá descansar,
dormir e olvidar o termo da jornada. O primeiro descanso fá-lo esquecer a meta
a atingir e todos os seus desejos e todas as suas esperanças aí se concentram.
E o que se verifica com o indivíduo isolado em
mais alto grau se observa quando se trata da multidão.
Para os
Franceses em retirada pela antiga estrada de Smolensk, a pátria estava ainda
muito longe e por isso o termo mais próximo a que aspiravam todas as suas
energias, mais ardentes ainda por se tratar de um exército inteiro, era
Smolensk. Não que eles soubessem existir nessa cidade grandes reservas de
mantimentos ou esperassem aí encontrar tropas francesas - ninguém lhes dissera
uma coisa dessas, e não só os oficiais superiores como o próprio Napoleão
sabiam perfeitamente serem escassos o mantimentos aí existentes. No entanto,
essa perspectiva dava-lhes coragem para caminhar e para suportar as privações
bem reais. E tanto os que sabiam como os que não sabiam, atraídos pelo engodo,
se precipitaram em, direcção a Smolensk como se caminhassem para uma terra da
promissão.
Assim que
atingiram a estrada real, os Franceses, com uma energia extraordinária, uma
rapidez incrível, deram-se pressa de alcançar o fim almejado. Além das razões
já apontadas, nova causa os compelia para diante em massa compacta: o seu
grande número. Esta enorme massa, graças à própria lei da atracção, dos corpos,
chamava a si os átomos individuais. Avançava num bloco de cem mil homens como
se fosse um Estado inteiro em marcha.
Cada um de
per si apenas desejava uma coisa: cair prisioneiro. Era a maneira de se livrar
de todos aqueles horrores e de todo aquele sofrimento. Em primeiro lugar, no
entanto, a força que os compelia para Smolensk arrastava-os a todos numa única
e mesma direcção. E mais: não podia um corpo de exército inteiro entregar-se a
uma simples companhia e conquanto os soldados aproveitassem todas as
oportunidades para se separarem uns dos outros e se servissem do mais pequeno
pretexto para se entregarem, as ocasiões eram raras.
A
circunstância de serem muitos e a rapidez da marcha que levavam tiravam-lhes a
possibilidade de o conseguirem e tornava-se difícil, e por assim dizer
impossível para os Russos, deter um movimento em que punham toda a sua energia.
O desgarramento interior deste corpo não podia
acelerar além de uma certa medida o processo de decomposição que o ameaçava. É
impossível derreter instantaneamente uma bola de neve. Tem de decorrer um certo
lapso de tempo antes que o calor o consiga, por maior que seja. Pelo contrário,
quanto maior é o calor mais a neve endurece. Eis o que nenhum dos chefes russos
compreendera, à excepção de Kutuzov.
Desde que se
teve a certeza de qual a direcção que tomara o exército francês em fuga pela
estrada de Smolensk, principiou a realizar-se o que Konovnitsine previra na
noite de 11 de Outubro. Os altos postos não pensaram noutra coisa senão em
distinguir-se, cortando a retirada aos Franceses, cercando-os, fazendo-os
prisioneiros, aniquilando-os: todos, à compita, exigiam uma ofensiva.
Kutuzov era o único a empregar todas as suas
forças - e as forças do comandante-chefe são por vezes escassas em casos destes
- para se opor aos desígnios dos altos postos. Não lhe era possível argumentar
com eles como agora pode argumentar-se. Para quê uma batalha? Para quê
cortar-lhes as estradas, perder homens, chacinar desumanamente tantos
desgraçados? Para quê tudo isto, quando é certo que entre Moscovo e Viazma a
terça parte deste exército se derreteu sem uma única batalha em forma?
Na sua sageza de velho apenas lhes dizia o que
lhes era possível, a eles, compreenderem, falando-lhes na «ponte de ouro»
(Kutuzov dissera para o inglês que acompanhava as operações como representante
dos Aliados que preferia construir uma «ponte de ouro» para os Franceses
passarem que sacrificar os seus homens. (N. dos T.).
E eles zombavam do velho, caluniavam-no,
mostrando a sua bravura no lombo da fera morta.
Em Viazma,
Ermolov, Miloradovitch e Platov, ao verem-se perto dos Franceses, não puderam
refrear os seus ímpetos e aniquilaram dois corpos de exército inimigos. Para
informarem Kutuzov da sua intenção enviaram ao Sereníssimo, dentro de um
sobrescrito, à guisa de relatório, uma folha de papel em branco.
E, apesar dos esforços do general-chefe para
os reter, os soldados russos atacaram no intuito de tolher o passo aos
Franceses.
Segundo se disse, regimentos de infantaria
marcharam para a linha de fogo com bandas e tambores à frente, perdendo e
matando milhares de homens. Mas quanto a tolherem-lhes o passo, não tolheram
coisa alguma nem aniquilaram ninguém. E o exército francês, mais coeso graças
ao perigo, prosseguiu na sua caminhada fatal em direcção a Smolensk,
esgotando-se pouco a pouco.
A batalha de
Borodino, a ocupação de Moscovo, que se lhe seguiu, e a retirada dos Franceses
sem novos combates constituem acontecimentos históricos instrutivos.
Todos os
historiadores estão de acordo em afirmar que a actividade externa dos povos e
dos impérios se traduz nas suas colisões mútuas representadas pelas guerras e
que a força política dos países aumenta ou diminui na razão directa dos êxitos
militares maiores ou menores.
São sem
dúvida estranhas as descrições dos historiadores em que se relata que tal ou
qual rei ou imperador, em conflito com tal ou qual outro rei ou imperador,
convocou o seu exército, se bateu contra o exército inimigo, saiu vitorioso,
causou a morte de três, cinco, dez mil homens, em virtude do que conquistou
determinado Estado e um povo inteiro composto de muitos milhões de habitantes.
Que a derrota de um exército, apenas a centésima parte das forças de um povo
inteiro, leve à submissão desse povo, eis o que não pode deixar de ser
incompreensível.
No entanto,
estes factos, na medida em que chegam ao nosso conhecimento, confirmam a
justeza do que se diz acerca das vitórias militares, causa essencial da
grandeza dos povos. Ganha um exército uma batalha e imediatamente os direitos
do vencedor prosperam em detrimento dos do vencido. É uma derrota que o atinge,
e logo o povo perde os seus direitos na proporção do desastre sofrido, e se
porventura o seu exército é esmagado não tem mais que submeter-se por completo.
Assim tem sucedido, diz a História, desde os
tempos mais recuados até aos nossos dias.
Todas as guerras de Napoleão confirmam afinal
esta regra. À medida que os exércitos austríacos são derrotados, a Áustria
perde certos dos seus direitos, enquanto os da França aumentam, crescendo o seu
poderio proporcionalmente. As vitórias de Jena e de Auerstedt representam o fim
da, independência da Prússia.
No entanto, em 1812, os Franceses obtêm a
vitória em Moscovo, ocupam a cidade, e o certo é que, sem novas batalhas, não é
a Rússia que deixa de existir, mas, em primeiro lugar, esse imenso exército de
seiscentos mil homens e depois a própria França de Napoleão.
Tentar pôr
de acordo os factos com as leis históricas, afirmar que o campo de batalha de
Borodino ficou nas mãos dos Russos, que depois de Moscovo se travaram combates
que aniquilaram o exército napoleónico, eis o que é impossível.
Após a vitória dos Franceses em Borodino, não
tornou a haver mais nenhuma batalha geral, nem sequer houve qualquer recontro
importante, e, no entanto, o exército francês foi destruído. Que significa
isto? Se se tratasse de um acontecimento da história da China, ainda poderíamos
sustentar que se não tratava de um fenómeno histórico, recurso habitual dos
historiadores quando alguma coisa não joga perfeitamente com as suas teorias. E
ainda se se não tratasse senão de um conflito bastante episódico, em que apenas
tivesse tomado parte número restrito de tropas, isso ainda nos habilitaria a,
sustentar que estávamos perante uma excepção. Mas o acontecimento deu-se quando
os nossos pais eram vivos e se debatia a questão de vida ou de morte da sua
pátria, e essa guerra foi a maior de todas as guerras conhecidas.
O período da campanha de 1812 que vai de
Borodino à expulsão dos Franceses não só demonstrou que uma batalha vitoriosa
não é só por si razão suficiente da conquista de um país, mas nem sequer disso
é mesmo sintoma. Provou, pelo contrário, que a força que decide do destino dos
povos nem está nos conquistadores, nem nos seus exércitos, nem mesmo nas
batalhas que eles travam. Está em qualquer outra coisa. Os historiadores
franceses, ao referirem-se à situação do exército napoleónico antes da sua
retirada de Moscovo, afirmam que a ordem reinava em todos os corpos excepto na
cavalaria, na artilharia e no trem hipomóvel, acrescentando existir falta de
forragens para os cavalos e para o gado, penúria irremediável, uma vez que os
camponeses dos arredores preferiam queimar a palha a, entregá-la aos Franceses.
A vitória não trouxe consigo os resultados
habituais, porque os camponeses, os Karp e os Vlas, trataram de saquear Moscovo
quando os Franceses abandonaram a capital, não dando provas, em geral, de
grande heroísmo, e porque muitos outros preferiram queimar a palha a vendê-la
ao invasor por elevado preço.
Imaginemos dois homens dispostos a bater-se em
duelo à espada de acordo com todas as regras da esgrima. A peleja dura muito
tempo. De súbito, um deles, ao sentir-se ferido e ao compreender que se não
trata de uma brincadeira, pois é a sua própria vida que está em risco, joga
fora, a espada e, deitando a mão ao primeiro cacete que lhe aparece, põe-se a
lutar com ele. Suponhamos porém que esse duelista que com tanta oportunidade empregou
o melhor meio e o mais simples para conseguir os seus fins, animado pela
tradição cavalheiresca, procura ocultar a verdade e insiste em dizer que venceu
o seu rival com todas as regras. Poder-se-á fazer uma pequena ideia da confusão
que resultaria se ele porventura se pusesse a descrever o seu duelo?
O esgrimista que exige que o combate decorra
de acordo com todas as regras do duelo é o francês; o adversário que jogou fora
a espada e sacou do cacete é o russo; as pessoas que procuram tudo explicar pelas
regras da esgrima são os historiadores que se ocuparam do acontecimento.
A partir do incêndio de Smolensk principiou
uma guerra a que se não pode aplicar qualquer das tradições guerreiras
conhecidas até então. O incêndio das cidades e das aldeias, a retirada após as
batalhas, o golpe de Borodino e a nova retirada, os acontecimentos de Moscovo,
a caça aos merodistas, a captura dos transportes, as guerras dos partidários,
tudo isto estava à margem das regras ordinárias e das tradições bélicas.
Napoleão deu
por isso, e desde o momento em que se deteve em Moscovo na atitude correcta
imposta pela esgrima e se deu conta de que o adversário, em vez de brandir uma
espada, manejava um cacete, logo se pôs a queixar-se a Kutuzov e a Alexandre,
alegando que a guerra estava a ser conduzida de maneira contrária a todas as
regras, como se em verdade pudesse haver regras para matar criaturas humanas.
Mas, apesar
das queixas dos Franceses e da vergonha que sentiam certas altas personalidades
russas por se verem obrigadas a bater-se com cacetes quando desejavam seguir as
regras, colocando-se em posição de em quarta, ou em terceira, e atacando em
primeira, etc., o certo é que o cacete da guerra civil nacional se levantou com
força majestosa e devastadora e sem querer saber dos gostos de cada um o das
respectivas regras, simples e brutal, mas confiante nos seus golpes, caiu sobre
os Franceses e zurziu-lhes as costas até os invasores ficarem completamente
aniquilados.
Ditoso o
povo que, ao contrário dos Franceses em 1813, os quais saudaram segundo os
princípios da arte de esgrima, entregando a espada cortês, graciosamente, ao
magnânimo vencedor, ditoso do povo que, num momento de provação, sem querer
saber como se conduziriam os outros em caso semelhante, ergue, fácil e simplesmente,
o primeiro cacete que lhe vem às mãos e zurze com ele o inimigo até que na alma
lhe desponte, em vez da ofensa e da vergonha, o sentimento do desprezo e da
compaixão.
Uma das mais
impressionantes e fecundas excepções às pretensas leis da guerra é a acção de
indivíduos isolados contra as massas compactas de tropas. Eis um género de
operações que vem a produzir-se sempre nas guerras de carácter nacional. Em
lugar de se oporem em massa, os homens dividem-se em pequenos destacamentos,
atacam isoladamente e fogem desde que enfrentados por grandes forças, atacando
outra vez logo que a oportunidade se oferece.
Foi o que fizeram os guerrilheiros em Espanha,
assim agiram os montanheses no Cáucaso e os Russos em 1812 não procederam de
outra maneira. A esta forma de combater deu-se o nome de «guerra de guerrilhas»
e ao designá-la dessa sorte pensou-se explicar a sua significação.
Na verdade,
pode considerar-se à margem de todas as regras e até mesmo em oposição aos
princípios tácticos mais conhecidos e tidos por infalíveis. Segundo esses
princípios, aquele que ataca deve concentrar as suas tropas de maneira a que na
altura do combate se encontre mais forte que o adversário.
A guerra de
guerrilhas, sempre bem sucedida, como a história o demonstra, desmente
categoricamente tal princípio. A contradição deve-se ao facto de que a arte
militar supõe que a força de um exército está em relação com o número dos seus
homens. Segundo ela, quanto mais numeroso é um exército mais forte resulta. Os
batalhões pesados têm sempre razão. Ao sustentar esta afirmação, a ciência
militar parece-se com a teoria da mecânica afirmando que as forças estão na
relação directa das massas e que as forças são iguais entre si consoante as
massas são ou não iguais, também. A força como quantidade de movimento é o
produto da massa pela velocidade.
Na guerra, a
força das tropas é realmente o produto das massas, mas multiplicado por uma
incógnita x. A ciência militar, ao encontrar na história numerosos exemplos em
que a massa dos soldados não coincide com a sua força real, pois pequenos
destacamentos vencem por vezes grandes concentrações de tropas, admite
confusamente a existência desse multiplicador desconhecido e procura
descobri-lo, quer na construção geométrica de um plano, quer na superioridade
do armamento, quer, mais geralmente, no génio dos chefes.
Mas os
resultados obtidos por estes diversos multiplicadores estão longe de poderem
explicar os factos históricos. Basta, porém, renunciar a atribuir importância,
como em geral acontece, para agrado dos heróis, às disposições tomadas pelo
alto comando durante uma guerra, para se descobrir, finalmente, essa famosa
incógnita.
Este x é o
moral das tropas, isto é, o desejo mais ou menos vivo de os homens de que se
compõe o exército se exporem ao perigo, independentemente da questão de saberem
se se batem sob as ordens de um génio ou não, em duas ou três linhas, ou com
cacetes ou espingardas capazes de disparar trinta tiros por minuto. Os que
tiverem o desejo mais vivo de se bater serão os que se encontram nas condições
mais favoráveis para a luta. O moral das tropas, eis o multiplicador da massa
cujo produto é a força.
Precisar e
definir o valor do moral, esse multiplicador desconhecido, eis o que a ciência
da guerra tem de fazer. A resolução deste problema apenas se tornará possível
no dia em que deixemos de substituir arbitrariamente a incógnita, pelas
condições que manifesta a força, quer dizer, as disposições tornadas, o
armamento, etc., atribuindo-lhes o valor do multiplicador e reconhecendo essa
incógnita, em toda a sua integridade, como um maior ou menor desejo de bater-se
e de expor-se ao perigo.
Só então, ao
exprimir por equações os factos históricos, e tendo em conta o valor relativo
da incógnita, pode esperar-se encontrar esta última. Dez homens, dez batalhões
ou dez divisões, combatendo contra quinze homens, quinze batalhões ou quinze
divisões, vencem-nos, quer dizer, mataram e fizeram prisioneiros todos os seus
inimigos, perdendo os vencedores quatro unidades. Por conseguinte, de um lado
caíram quatro e do outro quinze. Logo, 4 é igual a 15, ou seja, 4x = 15y.
Assim, pois, x:y = 15:4.
Esta equação
não dá o valor da incógnita, mas a relação entre as duas incógnitas. Ao aplicar
o sistema das equações aos diferentes acontecimentos históricos considerados
separadamente - batalhas, campanhas, períodos de guerra - poder-se-á obter uma
série de números em que devem existir leis susceptíveis de se revelar.
A regra
táctica que prescreve que se deve agir por massas no ataque e em ordem dispersa
na retirada confirma, involuntariamente, a verdade segundo a qual o poderio de
um exército depende do espírito que o anima.
Para se
levarem os homens para a linha de fogo é preciso muito maior disciplina - e
essa disciplina apenas se consegue pelas massas em movimento - do que para
escapar aos assaltantes.
Mas toda a
regra que não tenha em conta a questão do moral das tropas é infalivelmente
falsa e está mesmo em absoluta oposição com os factos, ali onde se manifestar
uma violenta exaltação ou uma grande depressão no espírito do exército,
principalmente nas guerras civis de carácter nacional.
Os Franceses, durante a sua retirada de 1812,
quando, segundo a táctica, deveriam defender-se, isoladamente, concentram-se,
pelo contrário, em massa, pois o certo é que, o moral das tropas estava de tal
modo quebrantado que a massa era a única forma de manter a unidade.
Os Russos,
que, segundo a táctica, deveriam atacar em massa, dispersam-se, pelo contrário,
uma vez que o seu moral era de tal ordem que os homens isolados não precisavam
de ordem para combater os Franceses nem de disciplina para se exporem ao perigo
e à fadiga.
A guerra de
guerrilha, principiou no dia em que os Franceses entraram em Smolensk.
Muito antes
de esta guerra vir a ser reconhecida oficialmente pelo Governo russo, já muitos
milhares de homens do exército inimigo - desertores, merodistas, forrageadores
- haviam sido exterminados pelos cossacos e pelos camponeses e com tão poucos
escrúpulos como se se tratasse de cães danados.
Denis
Davidov foi o primeiro, com o seu faro patriótico, a reconhecer a importância
desta terrível guerra de cacete, sem quaisquer preocupações com as regras da
arte militar, matava numerosos franceses, e a ele pertence a glória de, ter
principiado por regularizar esta nova maneira de combater.
No dia 24 de
Agosto estava organizado o primeiro destacamento de guerrilheiros, e a ele logo
se seguiram muitos outros. Quanto mais se prolongava a campanha maior era o
número destes destacamentos.
Os
guerrilheiros iam destruindo, por partes, o grande exército. Varriam as folhas
que caíam da árvore seca que era o exército francês e por vezes chegavam a
abanar-lhe o tronco.
No mês de
Outubro, enquanto os Franceses fugiam em direcção a Smolensk, formavam-se
centenas destes destacamentos com efectivos e carácter diferentes. Tinham uns a
aparência de tropas regulares, com infantaria, artilharia, estado-maior e
fartos abastecimentos: outros apenas eram constituídos por cavalaria e
cossacos; havia alguns, pouco importantes, formados por tropas mistas de
infantaria e de cavalaria; e outros, enfim, compostos de camponeses e de
proprietários rurais, completamente desconhecidos.
Só um
sacristão, à frente de um grupo de guerrilheiros, conseguiu num mês fazer
centenas de prisioneiros, e a mulher de um estaroste, uma tal Vassilissa,
dizimou um centenar de franceses.
Nos últimos
dias de Outubro atingia a guerra de guerrilhas seu apogeu. Passara o período
inicial durante o qual os guerrilheiros se surpreendiam com a sua própria
audácia, receando a cada momento ver-se cercados pelos Franceses. Quase não
desmontavam dos seus cavalos e escondiam-se nas florestas, sempre à espera de
serem perseguidos.
Agora as
guerrilhas estavam organizadas, e todos sabiam claramente o que podiam ou não
fazer para atacar o inimigo. Só os comandantes de destacamento, que no séquito
do estado-maior, consoante as ordens recebidas, se mantinham afastados dos
Franceses, consideravam impossível certos empreendimentos.
Os
comandantes dos pequenos grupos de guerrilheiros, já bastante experimentados e
que perseguiam o inimigo de perto, consideravam realizáveis coisas em que os
demais nem sequer teriam ousado pensar.
Quanto aos
cossacos e aos camponeses que se infiltravam nas próprias linhas inimigas,
esses pensavam que doravante tudo era possível.
Enquanto
estivera preso no abarracamento, adquirira a convicção, não racional, mas
graças ao sentimento íntimo de todo o seu ser, de que o homem nascera para a
felicidade, de que a felicidade estava nele, homem, na satisfação das suas
tendências naturais, e de que todas as desgraças eram antes consequência de
excessos que propriamente de privações.
Mas depois
daquelas três últimas semanas de marcha, nova e consoladora verdade se lhe
revelara, a saber, que neste mundo nada há de verdadeiramente terrível. Assim
como o homem nunca consegue ser perfeitamente feliz e livre, também não há
situação alguma em que seja completamente infeliz e escravo.
Assim como
há limite para o sofrimento, também há limite para a liberdade, e esses limites
tocam-se mutuamente.
Agora sabia que o homem que sofre porque,
deitado em cama de rosas, o magoa uma ruga das suas pétalas, era tão infeliz
como ele próprio, dormindo na terra húmida e nua, com frio por um lado e calor
pelo outro.
Lembrava-se de que quando, outrora, enfiava
nos pés uns escarpins de baile muito apertados sofria tanto ou mais que
actualmente, que caminhava descalço, pois as botas há muito as não podia calçar
e tinha os pés cobertos de pústulas. Sabia que na altura do seu casamento, na aparência
perfeitamente livre, não era mais livre que neste momento, que passava a noite
fechado numa cavalariça.
(…) Na
segunda jornada, ao examinar as feridas nos pés ao clarão das fogueiras,
dissera de si para consigo que não poderia dar mais um passo; mas quando os
companheiros se puseram a caminho lá os foi seguindo, embora coxeando, e assim
que os pés lhe aqueceram não mais os sentiu, embora ficasse aterrado quando à
noite tornou a olhar para eles. E decidiu não lhes pôr mais a vista em cima e
pensar noutra coisa.
Só agora,
realmente, sabia até que ponto o homem pode resistir e quanto valia o poder de
distracção que lhe foi dado, espécie de válvula de segurança das caldeiras a
vapor para quando a pressão ultrapassa a normal.
- A saúde?
Chorarmos a nossa saúde não impede que Deus nos dê a morte.
- A vida é
tudo. A vida é Deus. Tudo vai e vem, tudo se move, e esse movimento é Deus. E
enquanto há vida, há a satisfação de reconhecermos a divindade. Amar a vida é
amar a Deus. O mais difícil e meritório é amar a vida nas suas dores, nos seus
sofrimentos imerecidos.
(…) e de
súbito viu, como se estivesse vivo, um velho mestre, de que há muito se
esquecera, que na Suíça lhe ensinara geografia. «Espera», dizia-lhe o velho,
mostrando-lhe o globo terrestre. Esse globo era uma esfera viva, oscilando e
sem contornos definidos. Toda a sua superfície era formada por gotas de água
muito unidas umas às outras, e essas gotas de água evoluíam, deslocavam-se, ora
unindo-se numa gota mais grossa, ora dividindo-se de novo. Cada gota procurava
dilatar-se, ocupar o maior espaço possível, mas, como as outras faziam o mesmo,
apertavam-na, obrigando-a a desaparecer, por momentos, e misturando-se com ela
outras vezes.
«Eis a
imagem da vida», dizia-lhe, o velho.
«Como é simples e claro», pensava Pedro. «Com
o não compreendi eu há mais tempo?» Deus está no centro e cada uma das gotas
tenta alargar-se, na esperança de O reflectir na sua maior extensão. E cresce,
alarga-se, comprime-se e desaparece da superfície, mergulha e volta depois a
sobrenadar.
A partir de
28 de Outubro, data em que principiaram os frios, a retirada francesa assumiu
um aspecto trágico. Alguns homens morriam gelados, outros tentavam aquecer-se
junto de fogueiras; outros ainda, embrulhados em quentes peliças, continuavam a
fuga, levando nas seges os bens do imperador, dos reis e dos duques. No
conjunto, porém, nada mudara no estado de decomposição do exército em retirada.
De Moscovo a Viazma, os seiscentos e treze mil
homens de que se compunha o exército francês ficaram reduzidos a pouco mais de
trinta e seis mil, sem contar a Guarda, a qual, durante toda a campanha, outra
coisa não fizera que pilhar. Dos seus trinta e seis mil homens, no máximo não
apareceram no campo de batalha mais de cinco mil. Eis o primeiro termo da
proporção que pode determinar exactamente o que veio a ocorrer depois. O
exército francês liquefez-se e desapareceu, na mesma proporção, de Moscovo a
Viazma, de Smolensk ao Beresina, do Beresina a Vilna, independentemente do frio
mais ou menos intenso, em consequência da perseguição que lhe moviam os Russos,
dos obstáculos que encontravam no caminho ou de todas as outras circunstâncias
isoladamente.
Berthier
escrevia ao amo nos termos seguintes, e toda a gente sabe quanto se afastam da
verdade os chefes que descrevem a situação do seu exercito:
Creio dever
levar ao conhecimento de Vossa Majestade o estado das suas tropas nos vários
corpos de exército, o qual pude verificar em diferentes pontos de há dois ou
três dias para cá. Estão por assim dizer em debandada. Os soldados que seguem
as bandeiras são apenas a quarta parte dos efectivos em todos os regimentos; os
demais marcham isoladamente, em diversas direcções, e por conta própria, na
esperança de encontrarem que comer e para se verem livres da disciplina. Em
geral consideram Smolensk o ponto onde se reorganizarão. Nestes últimos dias,
numerosos soldados deitaram fora as armas e os cartuchos. Perante tal estado de
coisas, o serviço de Vossa Majestade exige, sejam, quais forem os objectivos ulteriores,
que as tropas se reorganizem em Smolensk, principiando por desembaraçá-las dos
não combatentes, ou seja, dos homens a pé, das bagagens inúteis e do material
de artilharia, em desproporção com as forças actuais. Além de dias de descanso
são necessários mantimentos para os soldados extenuados pela fome e pela
fadiga; nos últimos dias morreram muitos nas estradas e nos bivaques. Este
estado de coisas vai de mal a pior e faz-nos recear, caso se lhe não dê pronto
remédio, não termos mão nas tropas para as obrigar a combater.
9 de Novembro, a trinta verstas de Smolensk.
Ao atingirem Smolensk, para os soldados uma
espécie de terra de promissão, matam-se uns aos outros pelo pão para a boca,
assaltam os seus próprios armazéns e quando tudo se acaba continuam a sua rota.
Todos caminhavam sem saber porque avançavam nem onde iam e ainda menos do que
ninguém o sabia o próprio Napoleão, esse génio, ele que não recebia ordens de
quem quer que fosse.
Mas nem por
isso deixavam de seguir os velhos hábitos, ele e os seus generais; lá
continuavam, como sempre, a expedir instruções, mensagens, relatórios, ordens
do dia, e a dizer uns para os outros: «Sire, meu primo, príncipe de Eckmühl,
rei de Nápoles.» No entanto, todas estas ordens, todos estes relatórios, não
passavam do papel. Já nada se executava, porque nada podia ser executado, e,
apesar de todos os pomposos títulos que se davam uns aos outros, sentiam que
não passavam de pobres e miseráveis criaturas, que muito mal haviam feito, e
agora tinham de prestar contas.
E, embora se
fingissem interessados pelo destino do exército, só numa coisa pensavam, lá no
seu íntimo: fugirem o mais depressa que pudessem e salvarem-se, se ainda fossem
a tempo.
Os
movimentos das tropas russas e francesas durante a retirada de Moscovo ao
Niémen fazem lembrar o jogo da cabra-cega. É como se vendassem os olhos dos
jogadores, e um deles, de tempos a tempos, tocasse numa sineta a desafiar o
outro. De princípio, toca destemido, mas, quando se vê em posição desvantajosa,
trata de fugir do parceiro em silêncio; e, no entanto, cai-lhe amiúde nas mãos.
Nos
primeiros tempos, os exércitos de Napoleão assinalavam a sua presença: foi isso
no início da retirada pela estrada de Kaluga. Mais tarde, quando meteram pela
de Smolensk, fugiram, com o badalo da sineta bem seguro, e por mais de uma vez,
pensando que escapavam, foram cair no papo dos Russos.
Graças à rapidez da fuga dos Franceses
perseguidos pelos Russos, e à fadiga dos cavalos que daí resultava, a melhor
maneira de conhecerem, aproximadamente, a posição do inimigo, isto é, os
reconhecimentos de cavalaria, era coisa que não existia. Além disso, resultado
das mudanças rápidas na situação recíproca dos dois exércitos, as informações,
quaisquer que fossem, não chegavam a tempo. Se no dia 2 do mês vinham a saber
que e exército inimigo se encontrava no dia 1 em tal sítio, no dia 3, data em
que era possível empreender qualquer acção, o dito exército já fizera duas
jornadas de marcha e ocupava outra posição, Um dos exércitos fugia, o outro
perseguia-o.
A partir de
Smolensk, várias eram as estradas que se ofereciam aos Franceses. Era de supor
que após quatro dias de permanência ali lhes fosse possível saber com exactidão
onde estava o inimigo, permitindo-lhes traçar um plano favorável e tentar nova
campanha. Mas, passados esses quatro dias, os bandos escaparam-se pela direita
e pela esquerda, sem um movimento definitivo ou um percurso previsto, tomando a
antiga estrada, a mais perigosa, a estrada por Krasnoie e Orcha, via já por
eles percorrida. Supondo terem o inimigo na retaguarda, e não na vanguarda,
fugiram, deixando entre eles intervalos de mais de vinte e quatro horas de
marcha.
À frente vinha o imperador, depois os reis e
os duques. O exército russo, persuadido de que Napoleão ia meter pela direita e
atravessar o Dniepre, aliás a única estrada razoável, seguiu esta direcção,
desembocando na estrada real para Krasnoie. E foi ali, como se jogassem à
cabra-cega, que os Franceses encontraram a vanguarda russa.
Tomados de pânico perante a inesperada
aparição, pararam, mas depressa se puseram em fuga, abandonando os que vinham
atrás deles. Eis, como durante três dias, passaram corpos separados uns atrás
dos outros através da torrente das forças russas, primeiro o do vice-rei,
depois o de Davout, em seguida o de Ney. Abandonaram-se mutuamente à sua
infeliz sorte, perdendo as bagagens, a artilharia, metade dos homens, fugindo,
com um único pensamento: contornarem os Russos pela direita a coberto da noite.
Ney, que,
apesar da infeliz situação das tropas, talvez precisamente por essa
circunstância, ficara para trás ocupado a fazer saltar as muralhas de Smolensk,
que a ninguém incomodavam, só para castigo da terra que determinara a sua
perda, era o último a marchar com o seu corpo de dez mil homens. Reunira-se a
Napoleão em Orcha, reduzido a mil homens, depois de ter espalhado o resto, bem
como os canhões, em marchas nocturnas através dos bosques para alcançar o
Dniepre.
De Orcha prosseguiram a sua rota para Vilna,
sempre a jogar à cabra-cega com o exército que os perseguia.
No Beresina,
nova confusão: muitos afogaram-se, outros renderam-se: mas os que conseguiram
atravessar o rio lá continuaram.
Entretanto o seu grande chefe enfiava uma
peliça, sentava-se num trenó e fugia sozinho, abandonando os companheiros. Os
que puderam fizeram o mesmo, os que não puderam deixaram-se apanhar ou
morreram.
Dir-se-ia
que perante esta fuga doida dos Franceses, quando eles faziam tudo para se
perderem a si mesmos, quando todos os seus movimentos, desde o desvio pela estrada
de Kaluga até à fuga atrás do chefe do exército, eram desprovidos de qualquer
bom senso, dir-se-ia que, ao menos, para este primeiro período da campanha, os
historiadores, que atribuem a acção das massas à vontade de um só homem,
confessassem o erro das suas teorias ao descreverem esta retirada.
Montanhas de
livros se escreveram sobre esta campanha e em toda a parte se encontram
exaltadas as disposições tomadas por Napoleão, a argúcia dos seus planos e das
suas manobras e o génio dos seus marechais.
Explicam-nos, por uma série de profundos
raciocínios, o motivo da retirada dos Franceses de Maloiaroslovets por uma
estrada devastada quando se lhes deixava a passagem livre por uma região rica
em abastecimentos e se lhes oferecia o caminho paralelo que seguiu
posteriormente Kutuzov para os perseguir.
Também se
nos explica assim a retirada de Smolensk para Orcha. Em seguida traçam-nos um
quadro do comportamento heróico de Napoleão em Krasnoie, onde, ao que parece,
teve intenção de travar batalha e pôr-se à frente das suas tropas. E
mostram-no-lo de um lado para o outro, com uma vara de olmo na mão, dizendo -
Já estou farto de fazer de imperador, é tempo de fazer de general. - O que o
não impediu, pouco depois, de prosseguir na fuga, abandonando à sua triste
sorte todos os corpos de exército dispersos que o seguiam.
Descrevem-nos
igualmente a bravura dos marechais, particularmente a de Ney, bravura que se
limitou a operar um desvio pela floresta a fim de atravessar o Dniepre de noite
e fugir na direcção de Orcha, depois de perder as bandeiras, a artilharia e
nove décimos dos efectivos.
Enfim, o
abandono pelo grande imperador do seu heróico exército é-nos apresentado como
uma grande acção e um rasgo de génio. Até mesmo o empreendimento final da sua
fuga, que em qualquer língua só pode ter um nome, a última das cobardias, acto
que envergonharia uma criança, até mesmo isso encontra a sua justificação na
pena dos historiadores.
Quando já lhes não é possível estenderem mais
o fio elástico dos raciocínios, quando o acto é realmente contrário ao que os
homens chamam o bem e a justiça, recorrem, à míngua de argumentos, à noção de
grandeza. A grandeza parece excluir a possibilidade de apreciar o bem e o mal.
O mal não existe para o que é grande. Quem é
grande nunca poderá ser acusado de uma atrocidade. «É grande!», dizem os
historiadores, e então deixa de existir o bem e o mal, para só haver o que é
grande e o que não é grande. O que é grande é o bem, o que não é grande é, o
mal. O grande é, segundo eles, privilégio de indivíduos especiais que recebem a
classificação de heróis.
Napoleão,
muito bem embrulhado numa peliça, volta para casa, deixando morrer não só
companheiros, mas pessoas que, assim ele o confessou, arrastara atrás de si.
Para si mesmo diz: sou o grande, e a alma tranquiliza-se-lhe. «Do sublime ao
ridículo vai apenas um passo», dizia Napoleão, e o sublime era ele próprio. E
de há cinquenta anos para cá o universo inteiro repete: «Sublime! Grande!
Napoleão, o Grande! Do sublime ao ridículo vai apenas um passo!» E a ninguém
ocorre que confessar que a grandeza está para além do bem e do mal é como
reconhecer ao mesmo tempo a sua inferioridade e a sua infinita pequenez. Para
nós, que recebemos de Cristo a medida do bem e do mal, nada existe fora dessa
medida. Não há autêntica grandeza sem espontaneidade, bondade e verdade.
Haverá algum
russo que ao ler as descrições do último período da campanha de 1812 não tenha
experimentado um penoso sentimento de despeito, descontentamento e inquietação?
Quem não terá perguntado a si próprio: porque não fizeram prisioneiros, porque
não exterminaram todos os franceses, tendo três exércitos muito superiores em
número a cercá-los, e eles, em debandada, morrendo de fome e de frio, se
entregavam em massa, e sabendo nós, assim no-lo diz a história, que o objectivo
dos Russos era precisamente deter, cortar a retirada e capturar todos os
franceses? Como se explica que o exército russo, menos numeroso que o francês,
tenha travado a batalha de Borodino e não haja atingido o seu objectivo quando
cercava o inimigo por três lados e a sua intenção era aniquilá-lo? Tinham então
os Franceses tão grande superioridade sobre nós que os não podíamos bater mesmo
cercados por forças esmagadoras? Como pôde acontecer uma coisa destas?
A história, pelo
menos a que se vangloria de tal nome, responde que a culpa foi de Kutuzov,
Tormassov, Tchitchagov, deste e daquele, que não fizeram estes ou aqueles
movimentos. Mas porque não fizeram eles esses movimentos?
Partindo do
princípio de que eram culpados de não terem sabido atingir o objectivo
previsto, porque não foram eles submetidos a conselho de guerra e devidamente
castigados? E, se se admite que Kutuzov, Tchitchagov e os outros são culpados
de tais reveses, não se compreende, mesmo nas condições em que se encontravam
as tropas russas em Krasnoie e no Beresina - e em ambos os casos a sua
superioridade era esmagadora -, não se compreende porque o exército francês não
foi capturado com os seus marechais, os seus reis e o seu imperador, uma vez
que essa era a finalidade dos Russos.
A explicação deste facto estranho, dada pelos
historiadores russos, qual seja que Kutuzov se teria oposto ao ataque, cai pela
base, pois toda a gente sabe que a vontade do general-chefe não evitara o
ataque em Viazma e em Tarutino.
Porque é que
este exército russo, que, com forças inferiores, em Borodino, alcançou uma
vitória sobre um inimigo em pleno vigor, veio a ser vencido por bandos
desorganizados de franceses em Krasnoie e no Beresina, quando dispunha, então,
de superioridade esmagadora?
Se o
objectivo dos Russos era cortar a retirada ao exército francês e aprisionar o
imperador e os seus marechais, o certo é que esse objectivo não só não foi
alcançado, como todos os esforços no sentido de o conseguir foram malogrados de
maneira lamentável, de tal modo que o último período da campanha se apresenta,
com justa razão, como uma série de vitórias dos Franceses e que os
historiadores russos se enganam redondamente ao considera-lo vitorioso.
Os
historiadores russos, forçados a admitir a lógica, chegam fatalmente a esta
conclusão, e a verdade é que, não obstante as suas pomposas frases sobre a
coragem e a dedicação, se vêem obrigados a admitir que a retirada de Moscovo é
assinalada por uma série de vitórias de Napoleão e de derrotas de Kutuzov.
No entanto,
pondo de parte todas as questões de amor-próprio nacional, sente-se que esta
conclusão encerra em si uma contradição, pois essa série de vitórias levou os
Franceses ao aniquilamento total, enquanto as derrotas dos Russos os levaram ao
esmagamento do inimigo e à libertação da Pátria.
A razão
desta contradição está no facto seguinte: que os historiadores, que estudam os
acontecimentos de harmonia com a correspondência dos imperadores e dos generais
e segundo relatórios, relações ou planos, pressupõem um objectivo errado, que
nunca existiu no período final da guerra de 1812, o qual era cortar a retirada
aos exércitos franceses e capturar Napoleão com os seus marechais. Nunca
existiu semelhante objectivo, nem podia existir, visto não ter o mais pequeno
sentido e ser absolutamente impossível de alcançar.
Semelhante
finalidade não tinha o mais pequeno sentido, primeiro porque o exército
derrotado de Napoleão fugia da Rússia o mais depressa que podia, isto é,
procedia exactamente de acordo com os desejos dos Russos. Para quê operações
contra os Franceses, quando eram eles próprios quem retirava a toda a pressa?
Em segundo
lugar, era absurdo cortar a retirada a quem se empenhava em fugir com toda a
força.
Em terceiro
lugar, era estúpido sacrificar as próprias forças para esmagar os exércitos
franceses, os quais, sem causas exteriores, desapareciam numa proporção tal
que, sem que se opusesse qualquer obstáculo à sua fuga, se lhes tornava mesmo
assim impossível transpor a fronteira (como o vieram a conseguir em Dezembro)
senão reduzidos à centésima parte dos seus efectivos.
Em último
lugar, o projecto para aprisionar o imperador, os reis e os duques era
ridículo, pois a captura de tais personalidades só teria servido para
prejudicar a política russa, como o reconheceram os melhores diplomatas da
época. Joseph de Maistre e outros. E ainda era mais insensato quererem os
Russos apoderar-se dos corpos franceses quando as tropas russas estavam
reduzidas a metade antes de Krasnoie e seria precisa uma divisão de escolta
para guardar os prisioneiros, quando era certo que os soldados russos nem
sempre tinham a sua ração completa e que os franceses já capturados morriam de
fome.
Esta profunda concepção segundo a qual se
deveria cortar a retirada aos exércitos franceses e aprisionar Napoleão faz
lembrar a atitude de um hortelão que para enxotar o gado que lhe espezinha a
horta corre à porta da quinta e se põe a bater na cabeça dos animais. Só um
excesso de ira justificaria semelhante atitude. Mas nem isto era de invocar
para justificação dos autores do projecto, pois a verdade é que não tinham tido
sequer o horto espezinhado. Aliás, cortar a retirada a Napoleão e ao seu
exército era uma operação não só absurda, mas impossível.
Impossível,
primeiro, porque, se é verdade que a experiência ensina que um movimento
executado a cinco verstas de um campo de batalha nunca se harmoniza com o plano
primitivo, era tão inverosímil que Tchitchagov, Kutuzov e Wittgenstein
chegassem a tempo ao local determinado que pode dizer-se impossível. Tal a
opinião de Kutuzov ao saber da existência do plano, dizendo que uma diversão a
grandes distâncias não pode dar o resultado esperado.
Em segundo
lugar, impossível porque, para se conseguir paralisar a força da inércia que
fazia recuar o exército francês, era preciso dispor de tropas a
incomparavelmente superiores àquelas que os Russos tinham.
Em terceiro
lugar, ainda impossível porque a expressão militar de «cortar a retirada» a um
exército não tem sentido. Pode cortar-se um bocado de pão, mas um exército, de
maneira nenhuma. Cortar a retirada a um exército, isto é, cortar-lhe o caminho,
não é coisa que se possa fazer, pois há sempre maneira de contornar o
obstáculo, e há a noite, durante a qual todo e qualquer movimento se torna
desapercebido, coisa de que os especialistas militares puderam persuadir-se
graças a Krasnoie e ao Beresina.
É
absolutamente impossível aprisionar seja quem for, a menos que o aprisionado
consinta, pela mesma razão de que não é possível apanhar uma andorinha, a não
ser que ela venha pousar na nossa mão. Capturam-se aqueles que se entregam,
como os Alemães, segundo as regras da estratégia e da táctica. Mas os Franceses
não viam nisso vantagem alguma, pois em fuga ou capturados só a fome e o frio
os esperavam.
Em quarto
lugar, sobretudo, deve considerar-se que desde que o mundo é mundo nunca houve
guerra em condições tão terríveis como a de 1812, e que os exércitos russos,
para perseguirem os Franceses, haviam posto em jogo todas as suas forças e não
podiam fazer mais sem se aniquilarem a si próprios. Durante a sua marcha de Tarutino
para Krasnoie, os Russos perderam cinquenta mil doentes e retardatários, quer
dizer, um número de homens igual à população de uma importante cidade de
província. Metade do exército perdeu-se, sem combate. A propósito deste período
da campanha em que as tropas, sem botas e sem agasalhos, com abastecimentos
insuficientíssimos, sem vodka, tiveram de passar as suas noites, durante meses,
no meio da neve, com temperaturas de quinze graus negativos em que os dias
apenas tinham sete ou oito horas de luz solar e as noites eram sem fim, o que
tornava impossível toda a disciplina eficaz: em que os homens, não como numa
batalha, onde não vêem a morte diante dos olhos senão durante algumas horas, passavam
meses inteiros receando, a cada instante, morrer de fome e de frio; em que, no
decurso de um mês, metade do exército soçobrou. A este propósito vêm os
historiadores contar-nos tranquilamente como Miloradovitch se viu obrigado a
fazer uma marcha de flanco em tal sítio, Tormassov em tal outro e Tchitchagov
se viu forçado a deslocar-se para determinado ponto, deslocação levada a cabo
com neve para cima dos joelhos dos homens, e como fulano caiu em cima do
inimigo e lhe cortou a retirada, etc. Os Russos, reduzidos, por morte, a metade
dos seus efectivos, fizeram tudo o que puderam e deviam fazer para atingir um
objectivo digno e a culpa não é sua se outros russos houve que, fechados em
quartos confortáveis, gizaram planos que se não podiam pôr em prática.
Esta
contradição estranha, que se não compreende nos nossos dias, entre os factos e
as descrições dos historiadores resulta apenas de estes terem querido fazer a
história dos belos discursos de certos generais em vez de contarem os
acontecimentos.
Interessante
para eles são as palavras de Miloradovitch, as condecorações recebidas por este
ou por aquele general, os planos propostos. Os cinquenta mil desgraçados que
ficaram nos hospitais ou caíram por terra não lhes interessam, porque não dizem
respeito aos seus estudos.
E, no
entanto, basta voltarmos as costas ao exame dos relatórios e dos planos para
vermos remexer essas centenas de milhares de homens que tomaram parte directa e
imediata nos acontecimentos e tudo o que anteriormente nos parecia insolúvel se
nos apresentar desde logo como a solução mais fácil e mais simples.
O intento de
cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército apenas existiu na imaginação de
meia dúzia de indivíduos. Era irrealizável, por absurdo e impossível. O povo só
queria uma coisa: libertar o solo pátrio da invasão. Esse objectivo
alcançou-se, primeiro sem a intervenção fosse de quem fosse, visto que os
Franceses fugiam e bastava deixá-los fugir; em segundo lugar, graças à guerra
patriótica que exterminava os Franceses; e por fim porque um poderoso exército
russo seguia de perto o inimigo, pronto a utilizar a força caso os Franceses
parassem no caminho. O exército russo devia agir como o chicote no dorso do
animal que foge. E os pastores hábeis sabem que a melhor maneira de conduzir o
gado é segurar o chicote ameaçador no ar sem fustigar a cabeça dos animais.
Quando o
homem vê morrer um animal, fica aterrorizado. A qualidade de ser vivo de que
ele próprio participa desaparece diante dos seus olhos, deixa de existir. Mas
quando aquele que morre é um ser humano, e um ser querido, além desse horror
perante a vida que desaparece, o homem sente um dilaceramento, uma ferida moral
que, como o ferimento físico, em certos casos leva à morte, noutras cura-se e
por vezes também continua sensível e receia os contactos exteriores.
É tão impossível uma dor pura e perfeita como
uma pura e perfeita alegria.
Por estranha
que pareça, a verdade é que a ferida moral produzida por um desregramento do
espírito cicatriza-se, pouco a pouco, como uma ferida física, renovando ela
própria os seus tecidos, graças à força vital que vem de dentro.
Não o sabia
nem poderia acreditar que assim fosse, mas a verdade é que sob a espessa camada
de húmus que lhe revestia a alma, parecia despontar já uma plantazinha tenra
que não tardaria a crescer e a estender os seus vigorosos rebentos sobre a dor
que a esmagava, dor que não tardaria muito a não ser visível nem perceptível. A
sua ferida cicatrizara pelo interior.
Depois do
choque dos exércitos em Viazma, onde Kutuzov não pudera refrear o desejo das
suas tropas ansiosas por aniquilar e cortar a retirada ao inimigo, o movimento
de recuo dos Franceses, perseguidos pelos Russos, continuou até Krasnoie sem
outra batalha.
A fuga era
tão rápida que o exército russo não podia acompanhar os Franceses. Havia falta
de cavalos na cavalaria e na artilharia e não se sabia com precisão onde o
inimigo estava.
Os homens,
extenuados por esta marcha ininterrupta, à razão de quarenta verstas em vinte e
quatro horas, não podiam andar mais depressa.
Para que possa compreender-se o grau de
esgotamento do exército russo basta verificar-se o seguinte: se desde Tarutino
esse exército não perdera, entre mortos e feridos, mais de cinco mil homens,
além de uma centena de prisioneiros, e se à saída de Tarutino contava cem mil
homens, o certo é que, ao chegar a Krasnoie os seus efectivos não iam a mais de
cinquenta mil.
A rapidez da perseguição agia sobre o exército
russo de maneira tão dissolvente como a fuga no exército francês. A única
diferença estava nisto: que o exército russo avançava a seu talante, sem a
ameaça que a cada momento pesava sobre o exército francês, que via os
retardatários doentes caírem nas mãos do inimigo. Os Russos sempre estavam em
sua casa.
A causa
principal das perdas do exército napoleónico foi a rapidez da sua marcha e a
prova incontestável está nas perdas idênticas das tropas russas.
Kutuzov, tanto em Tarutino como em Viazma, fez
tudo o que pôde para não entravar a retirada mortífera dos Franceses, como
queriam Petersburgo e os generais do exército, antes, pelo contrário,
favoreceu-a, facilitando o movimento avante dessas tropas. Mas, além da
lassidão das tropas e das perdas que sofreram, consequência da marcha
acelerada, Kutuzov ainda tinha outro motivo para moderar os seus ímpetos e
ganhar tempo. Evidentemente que o objectivo dos Russos era perseguir os
Franceses. A estrada que estes seguiam não era conhecida daí, quanto mais os
Russos lhe seguiam o rastro, mais distanciados eles estavam. Só seguindo-os a
uma distância respeitável era possível, metendo por atalhos, cortar os
ziguezagues que o inimigo efectuava na sua marcha. As sábias manobras propostas
pelos generais traduziam-se em toda a sorte de movimentos de tropas, numa
multiplicação das jornadas e a única coisa razoável a fazer era reduzir o
número destas marchas.
Foi esse o
objectivo que Kutuzov procurou realizar energicamente, durante toda a campanha,
de Moscovo a Vilna, não temporariamente ou ao acaso, mas com um tal espírito de
continuidade que dele se não desviou uma só vez. Kutuzov, não graças a um
esforço de raciocínio ou mercê dos seus conhecimentos militares, mas
instintivamente, com todas as fibras do seu ser, sentia que todos os seus
soldados acreditavam na derrota dos Franceses, que o inimigo fugia e que era
necessário reconduzi-lo. Ao mesmo tempo, porém, tanto ele como os seus homens,
davam-se conta do fardo que representava esta campanha inaudita na sua rapidez
e na estação do ano em que se realizava.
Quanto aos
generais, sobretudo os que não eram russos, e não queriam outra coisa senão
distinguir-se, provocar surpresa, aprisionar um duque ou um rei, esses eram de
opinião de que, para travar batalha e vencer, o movimento era preciso. E nada
teria sido mais absurdo e mais culpável.
Kutuzov
limitava-se a encolher os ombros quando general após general lhe vinham
apresentar os seus planos de movimentos com soldados mal calçados, sem roupas
quentes e esfomeados.
Num mês, sem
travar batalha, o exército russo perdera metade dos seus efectivos, e nas
condições mais favoráveis ainda tinha de percorrer até à fronteira uma
distancia maior do que a que percorrera já. Esta ânsia de se distinguirem, de
manobrarem, de esmagarem ou cortarem a retirada ao inimigo, manifestava-se
sobretudo sempre que os Russos vinham a encontrar-se na presença do exército
francês.
Assim
aconteceu em Krasnoie, onde julgaram ter pela frente uma das três colunas
francesas e onde vieram a defrontar o próprio Napoleão e dezasseis mil homens.
Apesar de todos os esforços de Kutuzov para evitar um conflito funesto e poupar
os seus homens, as tropas russas extenuadas levaram três dias a aniquilar os
bandos franceses.
Toll redigiu
o dispositivo: «die erste Kolonne marschirt» (Em alemão no texto original «A
primeira coluna marcha, etc.». (N dos T.), etc., E, como sempre, nada se fez
segundo o dispositivo.
O príncipe
Eugénio de Wurtemberg fuzilava do alto de um monte os franceses que fugiam e
pedia reforços, que nunca chegaram. Os Franceses, iludindo os Russos, durante a
noite, espalharam-se, esconderam-se nas florestas e acabaram por
escapar-se-lhes.
Milarodovitch,
que dizia não querer saber das necessidades materiais do seu destacamento, e
nunca ninguém encontrava onde era preciso, esse «cavaleiro sem medo e sem
mácula», como se cognominava a si mesmo, esse amador de entendimentos com os
Franceses, enviou-lhes parlamentários com a intimação de se renderem, perdeu o
seu tempo e acabou por fazer, precisamente, que lhe não tinham ordenado.
- Rapazes,
ofereço-vos esta coluna - dizia ele para os seus soldados de cavalaria,
mostrando-lhes os Franceses.
E a
cavalaria, em cima de cavalos que mal se podiam mexer, instigados à força de
espora e sabre, marchou a trote curto, penosamente, sobre a coluna que ele lhe
oferecia, isto é, sobre um bando de homens mortos de fome e enregelados. E a
coluna, lançando fora as suas armas, fez o que há muito desejava: rendeu-se.
Em Krasnoie
fizeram vinte e seis mil prisioneiros, tomaram centenas de canhões e um bastão,
que se dizia ser de marechal, houve discussões sobre quem mais se distinguira,
e sentiram-se contentes com isso, lamentando muito, todavia, não terem
capturado Napoleão ou outro qualquer herói, um marechal, por exemplo, e disso
se acusaram uns aos outros, responsabilizando sobretudo Kutuzov.
Estes homens, que só davam ouvidos às suas
próprias paixões, não passavam de cegos instrumentos de uma triste e inexorável
fatalidade. Mas estavam convencidos de que eram heróis e julgavam cumprir a
mais bela e a mais nobre das missões.
Acusavam
Kutuzov e diziam que desde que a campanha principiara não fizera outra coisa
senão impedi-los de vencer Napoleão, que apenas pensava em satisfazer as suas
paixões e não queria abandonar as suas «casas de pano», pois só aí se sentia em
sossego: que em Krasnoie detivera o exército, pois, ao saber da presença de
Napoleão, perdera por completo a cabeça; que estava em contacto com ele e que
fora comprado pelo imperador dos Franceses, etc. (Memórias de Wilson. (Nota de
Tolstoi).
Não só os
contemporâneos, cegos de paixão, falaram assim. A posteridade proclamou
Napoleão grande e os historiadores estrangeiros disseram que Kutuzov era um
velho cortesão, débil, manhoso e corrupto. E os Russos, esses, pintaram-no como
uma criatura indefinível, espécie de palhaço, apenas útil em determinado
momento, graças ao seu nome essencialmente eslavo.
Durante os
anos de 1812 e 1813, Kutuzov foi francamente acusado pelos seus erros. O
imperador estava descontente com ele.
Uma história
escrita nessa altura dizia que ele era um cortesão lisonjeador e embusteiro,
que tremia só de ouvir o nome de Napoleão e, mercê dos erros que cometera em
Krasnoie e no Beresina, privara o exército russo de obter uma completa vitória
sobre os Franceses (História do Ano 1812, por Bogdanovitch; retrato de Kutuzov
e dissertações sobre os resultados insuficientes da batalha de Krasnoie. (Nota
de Tolstoi).
Tal é o destino dos homens superiores que não
se atribuem a si próprios o título de «grandes homens», tão contrário ao
temperamento russo, dessas raras e únicas personalidades que, interpretando os
desígnios da Providência, a ela submetem os seus próprios.
O ódio e o
desprezo da multidão castigam estes homens por haverem previsto leis
superiores. Para os historiadores russos, por estranho e penoso que isso pareça,
Napoleão, esse insignificante instrumento da história, que nunca e em
circunstância alguma, nem mesmo no exílio, deu provas de dignidade humana, esse
Napoleão é motivo de entusiasmo e exaltações: é grande.
Kutuzov,
pelo contrário, ele, que desde o começo, em 1812, até ao fim da sua acção, de
Borodino a Vilna, nem uma só vez se contradisse por palavras ou actos, esse
homem, que é o exemplo mais notável da história de sacrifício e clarividência do
futuro na realidade presente, Kutuzov, aos olhos deles, não passa de qualquer
coisa de indefinível e lamentável e parece quase sempre envergonhado de falar
de si próprio e dos acontecimentos em que participou. E no entanto é difícil
conceber uma personagem histórica cujos actos tenham sido dirigidos com maior perseverança
para um só e único fim.
É difícil
imaginar escopo mais nobre e mais de acordo com a vontade de todo um povo. E
ainda é mais difícil encontrar na história um objectivo de antemão assinalado
que haja sido mais completamente realizado que aquele que se propôs Kutuzov em
1812.
Kutuzov
nunca falou dos «quarenta séculos que nos contemplam do alto das Pirâmides»,
dos sacrifícios que fez pela pátria, do que tencionava fazer ou do que
realizou; nunca falou propriamente de si próprio, nunca se propôs representar
um papel. Sempre teve o aspecto do homem mais simples e mais comum, dizendo as
coisas mais simples e mais banais.
Escrevia às
filhas e a Madame de Staël, lia romances, gostava do convívio das mulheres
bonitas, gracejava com os generais, os oficiais e os soldados, e nunca
desmentia as pessoas que lhe queriam provar fosse o que fosse.
Quando
Rostoptchine, na ponte de Iauza, lhe veio fazer censuras pessoais, acusando-o
de responsável pela perda de Moscovo e declarando-lhe: «Pois quê, o senhor
prometera entregar a cidade sem combate?», ele respondeu-lhe: «Mas não a
entregarei sem combate!», quando é certo que a cidade a essa hora já caíra nas
mãos dos Franceses.
Quando,
tendo-o procurado em nome do imperador, Araktcheiev lhe disse ser preciso
nomear Ermolov para o comando da artilharia, ele respondeu-lhe: «Sim, era
precisamente isso que eu dizia», embora momentos antes tivesse dito exactamente
o contrário. Que lhe importava a ele, a única pessoa no meio daquela gente
absurda que o cercava que compreendia então o sentido formidável dos
acontecimentos, que lhe importava que a infeliz sorte da capital fosse
atribuída a Rostoptchine ou a ele próprio? E se isso lhe não importava, como
lhe havia de importar o nome do comandante da artilharia? Não só nestes casos,
mas constantemente, este velho, que adquirira, pela sua experiência da vida, a
convicção de que tudo quanto se possa pensar ou dizer está longe de influir na
direcção dos homens, apenas dizia palavras insignificantes, as primeiras que
lhe vinham à cabeça.
Contudo este homem, que tão pouca importância
atribuía às suas palavras, nunca em toda a sua vida activa pronunciou uma
palavra que não tivesse em vista o objectivo único que se propusera no decurso
de toda a guerra.
No entanto,
involuntariamente, é certo, apesar de ter a certeza, bem triste, de que o não
compreenderiam, mais de uma vez, em circunstâncias muito diferentes, exprimiu o
fundo do seu pensamento.
Não foi ele,
depois da batalha de Borodino, causa inicial das dissensões com os homens que o
rodeavam, o único a exprimir a opinião de que aquela batalha constituía uma
vitória, opinião que repetiu tanto oralmente como nos seus relatórios e até nos
seus relatos, até à sua derradeira hora?
Só ele também se atreveu a dizer que a perda
de Moscovo não era a perda da Rússia.
Na sua
resposta a Lauriston, que pedia a paz, não é certo ter afirmado que a paz não
era possível porque o povo a não queria?
Não foi ele
o único, durante a retirada dos Franceses, que garantiu que os movimentos
russos eram inúteis, que as coisas se arranjariam por si melhor do que o que se
podia desejar, que ao inimigo que foge «ponte de ouro», que não tinham sido
necessários nem o combate de Tarutino nem os de Viazma ou de Krasnoie, que era
preciso atingir a fronteira com forças suficientes, que não daria um soldado
russo por dez franceses?
E foi só
ele, esse homem que nos pintam como se fosse um cortesão, e que dizem ter
mentido a Araktcheiev para agradar ao imperador, foi ele quem ousou, em Vilna,
sabendo que desagradava ao seu monarca, afirmar que a continuação da guerra
para lá da fronteira seria prejudicial e sem sentido.
Não disse
estas palavras apenas para provar que compreendia muitíssimo bem o sentido dos
acontecimentos. Os seus actos, todos, sem excepção alguma, visaram este
tríplice objectivo: concentrar todas as suas forças no intuito de fazer frente
aos Franceses, vencer o, inimigo e por fim expulsá-lo da Rússia, minorando
quanto possível os sofrimentos do povo e do exército.
Só ele, Kutuzov, o contemporizador, cujo lema
era: «Paciência e Tempo», só ele, o inimigo dos actos decisivos, trava a
batalha de Borodino dando aos preparativos dela uma solenidade sem exemplo.
Esse
Kutuzov, que em Austerlitz previra que a batalha seria perdida em Borodino, a
despeito da opinião dos generais que afirmavam certa a derrota, a despeito do
exemplo único na história de um exército vitorioso que abandona o campo de
batalha, afirma, só e até à morte, contra a opinião de todo o mundo, que essa
batalha constitui uma vitória.
Só ele,
enquanto dura a retirada, insiste para que se não travem novos combates, que
eram inúteis, sustentando que se não devia começar nova guerra, nem atravessar
a fronteira.
Hoje, desde
que se ponham de lado todos esses objectivos que só um reduzido número de
homens concebia, é fácil darmo-nos conta dos acontecimentos, pois estão a
ver-se agora todas as suas consequências. Mas como é que esse velho, sozinho
contra a opinião de todos os outros, pôde adivinhar tão bem o instinto popular
na inteligência dos factos que nunca o atraiçoou?
Essa
extraordinária clarividência tinha a sua fonte no sentimento patriótico que
nele vibrava em toda a sua força e em toda a sua pureza.
O povo, por
estranhas vias, soube reconhecer naquele homem esse sentimento intenso e escolher
esse velho, então do desagrado do monarca, contra a vontade do czar, para que
fosse ele a, conduzir a guerra patriótica. E só esse sentimento o colocou em
tal altura moral e fez que, generalíssimo, empregasse todos os seus esforços,
não para que fossem mortos e exterminados os seus homens, mas salvos e
poupados. Esta figura simples, modesta e por conseguinte magna figura, não
podia amoldar-se à forma mentirosa do herói europeu, pseudo-dominador dos
povos, que a história imaginou.
Não há
grandes homens para o seu criado de quarto, porque o criado de quarto tem a sua
maneira pessoal de compreender a grandeza.
O dia 5 de
Novembro foi o primeiro dia da batalha conhecida pela «batalha de Krasnoie».
Para a
noite, depois de muitos debates e de falsas manobras dos generais, após
numerosas expedições de ajudantes-de-campo portadores de ordens contraditórias,
quando se tornou evidente que o inimigo fugia por todos os lados e que era
impossível travar batalha, Kutuzov seguiu de Krasnoie para Dobroie, para onde fora
transferido, durante o dia, o quartel-general. Fazia um tempo claro e frio.
Kutuzov,
seguido de uma imponente comitiva de generais, que em voz baixa exprimiam o seu
descontentamento, dirigia-se para Dobroie, montado no seu bem nutrido cavalo
branco. Ao longo da estrada, em volta das fogueiras, juntavam-se os
prisioneiros franceses capturados durante o dia, num total de sete mil. A
pequena distância da aldeia, um grande grupo desses prisioneiros esfarrapados,
embrulhados nos primeiros trapos que tinham encontrado à mão, falava em tom
elevado, junto de uma longa fila de peças francesas desatreladas.
Quando o
general-chefe se aproximou, as conversas cessaram e todos os olhares
convergiram para Kutuzov, que, com um gorro branco de rebordos vermelhos,
embrulhado numa capa almofadada, caminhava lentamente, as costas vergadas e
esbarrondado sobre o cavalo. Um general ia-lhe explicando onde tinham sido
apreendidas as peças e capturados os prisioneiros.
Kutuzov,
preocupado, não ouvia o que lhe diziam. Piscava o seu único olho com uma
expressão descontente e observava os prisioneiros, de aspecto particularmente
lamentável. A maior parte deles tinham as faces e o nariz gelados e os olhos
vermelhos, inchados e lacrimosos. Um grupo encontrava-se mesmo junto do caminho,
e dois soldados, um dos quais com a cara cheia de pústulas, rasgavam à mão um
pedaço de carne crua. No olhar furtivo que lançaram aos generais havia qualquer
coisa de terrível e bestial e o soldado do rosto em ferida teve uma expressão
feroz quando viu Kutuzov, voltando-se em seguida e continuando a sua tarefa. O
general-chefe contemplou por algum tempo esses dois soldados. Com uma expressão
cada vez mais preocupada, abanava pensativamente a cabeça. Noutro ponto reparou
num soldado russo que, rindo e batendo familiarmente no ombro de um francês,
lhe falava amistosamente, Kutuzov teve idêntico abanar de cabeça.
- Que estás
tu a dizer? - perguntou ele ao general que continuava a fazer o seu relatório,
procurando chamar-lhe a atenção para as bandeiras francesas capturadas que,
hasteadas, se encontravam diante do regimento Preobrajenski.
- Ah! As
bandeiras! - exclamou Kutuzov, arrancando-se, penosamente, ao curso das suas
reflexões.
E lançou à
sua roda um olhar distraído. Milhares de olhos, à sua volta, se fixaram nele,
aguardando o que ele ia dizer.
Diante do
regimento Preobrajenski parou, soltou um profundo suspiro e fechou os olhos.
Alguém da comitiva fez sinal aos soldados que empunhavam as bandeiras para que
se aproximassem e estes agruparam-se em volta do general-chefe, empunhando os
estandartes.
Kutuzov
esteve calado alguns instantes, e, sem grande prazer, apenas como se se
submetesse às circunstâncias, ergueu a cabeça e pôs-se a falar. A chusma dos
oficiais envolveu-o. Kutuzov percorreu-os atentamente com o olhar, reconhecendo
alguns.
-
Agradeço-vos a todos! - disse, primeiro virado para os soldados e depois para
os oficiais. E no silêncio que reinava as suas palavras destacavam-se
nitidamente.
-
Agradeço-vos o vosso penoso e fiel serviço. A vitória é completa e a Rússia não
vos esquecerá. Que a glória seja convosco para sempre! Calou-se e olhou em
volta de si.
-
Abaixa-lhe, abaixa-lhe a cabeça! - gritou ele a um soldado que inclinava, sem
querer, a águia francesa diante da bandeira do regimento Preobrajenski.
- Mais, mais
para baixo, assim. Hurra!, rapazes! - gritou, dirigindo-se aos soldados com uma
contracção nervosa do queixo.
- Hurra!
Hurra! - rugiram milhares de vozes. Enquanto os soldados gritavam, ele,
debruçado sobre a sela, inclinava a cabeça, e pelo seu único olho perpassou-lhe
um lampejo ligeiramente trocista.
- Ouçam-me,
rapazes - principiou, quando as vozes se calaram. E de súbito a sua voz e a
expressão do rosto mudaram por completo. Já não era o general quem falava, mas
um velho, simplesmente, que queria agora comunicar coisas urgentes aos seus
camaradas. Houve uma agitação no meio dos oficiais e nas fileiras dos soldados,
todos tentando ouvir o melhor possível o que ele ia dizer. - Ouçam, rapazes. Eu
bem sei que é duro, mas que havemos de fazer? Tenham paciência. Já não é por
muito tempo. Vamos acompanhar os nossos hóspedes e depois toca a descansar.
O czar não esquecerá os vossos serviços. É
duro, mas, seja como for, vocês estão naquilo que vos pertence: em vossa casa.
Mas esses, olhem para eles, onde estão eles? - acrescentou, apontando para os
prisioneiros. - Estão em pior estado que os mais miseráveis bandidos. Quando
eram poderosos, não tínhamos que nos compadecer deles, mas agora também os
podemos lamentar. São homens como nós. Não é verdade, rapazes?
Kutuzov
olhou à sua volta, e em todos os olhares atentos, respeitosamente
interrogadores, fixados nele, havia simpatia pelas suas palavras. O rosto cada
vez se lhe iluminava mais do seu bom sorriso de velho, que lhe abria estrelas
de rugas nas comissuras dos lábios e no canto dos olhos. Calou-se e baixou a
cabeça: dir-se-ia irresoluto.
- Mas, para falar verdade, quem os mandou cá
vir? É bem feito, com mil bombas! - disse, de súbito, erguendo a cabeça.
Brandindo o látego, abalou a galope, pela primeira vez em toda a campanha, no
meio dos risos e dos hurras alegres dos soldados, que principiavam a destroçar.
Evidentemente
que nem todos os soldados tinham compreendido as palavras de Kutuzov. Ninguém
seria capaz de repetir textualmente este discurso, solene no princípio e de uma
simplicidade cheia de bonomia nas suas últimas frases. A verdade, porém, é que
o seu sentido íntimo não só foi bem compreendido, mas chegou ao fundo da alma
dos soldados.
Esses
sentimentos de grandeza majestosa aliados à piedade para com o inimigo e à
consciência de que a razão estava do seu lado, expressos na imprecação
característica do velho, correspondiam ao que eles próprios sentiam, Essa a
razão por que soltaram prolongadas e alegres aclamações. Quando em seguida um
dos generais veio perguntar ao generalíssimo se ele queria seguir de carruagem,
Kutuzov respondeu-lhe com um soluço, tão viva era a emoção que, sentia.
A 8 de
Novembro, último dia dos combates de Krasnoie, já era noite quando as tropas
chegaram aos bivaques.
O dia fora
tranquilo, frio e com alguns raros flocos de neve que esvoaçavam pelo ar. Para
a noite o tempo clareou: através da neve ligeira surgiu um céu estrelado,
negro-violeta, e o frio tornou-se mais vivo.
O regimento de fuzileiros, que partira de
Tarutino com três mil homens e estava agora reduzido a novecentos, foi um dos
primeiros a chegar ao ponto indicado, uma aldeia situada na estrada real. Os
forrageiros que tinham saído ao seu encontro declararam que todas as isbás
estavam ocupadas por doentes ou cadáveres de franceses, a cavalaria e o
estado-maior. Apenas restava uma para o comandante do regimento.
Este último
dirigiu-se à isbá devoluta. O regimento atravessou a povoação e ensarilhou
armas nas últimas casas à beira da estrada.
Como um
grande animal de muitos braços, o regimento pôs-se a organizar o seu alojamento
e a tratar do rancho. Parte dos soldados, com neve até aos joelhos,
dispersou-se pela mata de álamos(…) lenha para as fogueiras(…)Tocou a recolher,
fez-se a chamada, os homens cearam e aninharam-se para a noite diante das
fogueiras, uns remendando as botas, outros fumando cachimbo, outros despindo-se
para catar os piolhos.
Dir-se-ia
que nas condições extremamente penosas em que se encontravam naquele momento os
soldados russos, sem botas de Inverno nem peliças e acampando a céu aberto, com
temperaturas de dezoito graus abaixo de zero, sem mesmo saberem o que era
rancho regulamentar, pois a pitança nem sempre chegava a horas, deviam oferecer
o mais lamentável e o mais desolador dos espectáculos.
E no entanto nunca os soldados tinham estado
tão alegres e animados, nem mesmo durante a época em que se encontravam em
situação material mais favorável. E isto explica-se, pois, à medida que o tempo
ia passando, do meio deles desaparecia tudo quanto era tristeza e fraqueza.
Todos os que se haviam debilitado física ou moralmente ficavam para trás. O que
estava ali agora era a fina flor do exército, do ponto de vista moral e do
vigor físico.
As tropas
francesas continuavam a decompor-se regularmente segundo uma progressão
matemática. A travessia do Beresina, sobre que se escreveu tanta coisa, não foi
mais que um incidente intercalar na obra de destruição e de modo algum um
episódio decisivo da campanha. Se muito se escreveu, se ainda continua a
escrever-se a este respeito, é que, do lado francês, esta ponte, que foi pelos
ares, sintetizava, por assim dizer, as desgraças, até aí mais ou menos iguais
umas às outras, experimentadas pelo exército francês, num espectáculo trágico,
que para sempre ficou na memória de todos. Se os Russos, pela sua parte, muito
comentaram este caso, é porque, longe do teatro da guerra, em Petersburgo, um
plano estabelecido por Pfuhl previra a ratoeira estratégica do Beresina. Ali
toda a gente estava, convencida de que na realidade tudo se passaria como
estava previsto no plano e por isso mesmo atribuíram à passagem do rio a perda dos
Franceses. A verdade, porém é que as consequências foram muito menos
desastrosas para eles, em homens e canhões, que as de Krasnoie, por exemplo,
como se pode provar com algarismos.
O caso do
Beresina só numa coisa é importante: em ter demonstrado de maneira evidente e
incontestável que todos os planos para cortar a retirada ao inimigo eram
errados e que a única coisa sensata era o que exigia Kutuzov e a massa das
tropas, isto é, que se seguisse o inimigo de perto.
Os Franceses fugiam cada vez mais depressa,
não pensando noutra coisa senão em chegar onde queriam. Fugiam como um animal
ferido e não lhes era possível deterem-se no caminho. E isso ficou bem
demonstrado menos pela própria organização da travessia do no que pela passagem
das pontes. As pontes tinham ido pelos ares, e toda aquela gente, soldados
desarmados, habitantes de Moscovo, mulheres e crianças que acompanhavam as
bagagens dos Franceses, graças à velocidade adquirida, em vez de se resignar a
esperar, precipitou-se para a frente, para dentro das barcas, e para cima das
águas geladas.
Compreendia-se esta precipitação. Tão má era a
situação dos que fugiam como a dos que os perseguiam. Conservando-se ao lado
dos seus, na sua desgraça, cada um esperava o auxílio do camarada, tinha o seu
lugar entre eles. Se se entregassem aos Russos, era para continuarem na mesma
desgraçada situação, passando a ser contados entre os últimos com direito a
receber mantimentos.
Os Franceses
não precisavam de informações precisas para saberem que metade dos prisioneiros
nas mãos dos Russos - e o certo é que estes não sabiam que destino dar-lhes,
por mais que quisessem salvá-los - morriam de fome e de frio. Pressentiam que
assim tinha de ser.
Os chefes
russos mais compassivos e que mais simpatias tinham pelos Franceses, os
próprios franceses ao serviço dos Russos, nada podiam fazer pelos prisioneiros.
A má situação em que se encontrava o exército russo concorria para a perdição
dos Franceses. Era impossível tirar pão e roupa a soldados esfomeados e cheios
de privações para dá-los aos Franceses, evidentemente inofensivos, nem sequer
hostis ou culpados, simplesmente inúteis. Alguns o fizeram, mas só
excepcionalmente.
Voltar para
trás era a perdição certa: avançar, a esperança.
Tinham-se
queimado as embarcações, só havia uma salvação, a fuga em comum, e todas as
forças francesas tendiam para essa meta.
Quanto mais demorada era a retirada, mais
lamentável o aspecto que ofereciam os restos do exército francês, sobretudo
depois do Beresina, que fizera nascer, graças ao plano de Petersburgo,
esperanças particulares, e mais se exasperavam as paixões dos chefes russos,
que se culpavam uns aos outros e principalmente Kutuzov. Diziam que ele seria
chamado à responsabilidade pelo malogro do plano do Beresina estabelecido em
Petersburgo, o que tornava maior o descontentamento, o desdém e a troça que ele
inspirava. Claro que tanto a troça, como as provas de desconsideração
exprimiam-se de uma forma respeitosa, e de tal sorte que o próprio interessado
nem sequer podia perguntar de que o acusavam.
Não lhe
falavam a sério; quando lhe apresentavam qualquer informação ou lhe pediam uma
decisão, dir-se-ia cumprirem uma cerimónia fúnebre. Por detrás das suas costas
piscavam o olho uns aos outros e faziam o que podiam para o enganar. Todos
aqueles homens, precisamente porque o não podiam compreender, estavam
convencidos de que era inútil discutir com semelhante velho, incapaz de
entender jamais a profundidade dos seus planos, o qual sempre lhes respondia
com uma das suas frases, para eles frases apenas, como a da «ponte de ouro» e
que não era possível chegar à fronteira com aqueles bandos de esfarrapados, e
coisas no mesmo género. Há muito que lhe conheciam semelhante estribilho.
Tudo quanto
ele dizia: que era preciso esperar pelos mantimentos, que os homens não tinham
botas para calçar, tudo era de uma simplicidade infantil, enquanto eles
propunham coisas complicadíssimas e sábias. E daí tornar-se evidente que
Kutuzov não passava de um velho imbecil enquanto eles, cabos-de-guerra geniais,
ali estavam sem poderes para realizar o que congeminavam.
Depois da
junção do exército de Kutuzov com o do preclaro almirante Wittgenstein, herói
de Petersburgo, todas essas malévolas disposições e todas essas intrigas do
estado-maior se agravaram ainda mais. Kutuzov, ao dar por isso, limitava-se a
despedir um suspiro e a encolher os ombros. Só uma vez, depois do Beresina, se
zangou e escreveu a Bennigsen, o autor das informações particulares enviadas ao
imperador, a carta seguinte:
Rogo a Vossa
Excelência que, ao receber esta carta, se apresente em Kaluga, em virtude do
seu estado de saúde pouco satisfatório, onde aguardará ordens ulteriores de Sua
Majestade Imperial.
Como
resultado do afastamento de Bennigsen, o grão-duque Constantino Pavlovitch, que
havia tomado parte na primeira fase da campanha e fora afastado por Kutuzov,
foi reintegrado no exército. Ao chegar informou o general-chefe de que o czar
estava muito descontente com os ligeiros êxitos das tropas russas e a lentidão
dos seus movimentos e anunciou-lhe que o imperador tinha a intenção de visitar
pessoalmente, o exército.
Kutuzov,
esse velho, tão experimentado cortesão quão bom militar, que em Agosto desse
ano fora nomeado generalíssimo contra a vontade do imperador, que determinara o
abandono de Moscovo, esse homem compreendeu imediatamente que a sua hora tinha
soado, que o seu papel acabara e que os supostos poderes que ainda lhe
pertenciam lhe iam ser retirados. E não só como cortesão compreendia que assim
era. Percebia que a acção militar em que desempenhara o seu papel estava no
fim, que a sua missão terminara. Por outro lado, principiava ao mesmo tempo a
sentir que o corpo, quebrado pela idade, cansado, pedia descanso.
No dia 29 de
Novembro, Kutuzov entrou em Vilna, na sua querida Vilna, como ele dizia. Duas
vezes na sua carreira fora governador da cidade. Na rica Vilna, que se
conservava intacta, além das comodidades de que por tanto tempo estivera
privado, encontrava velhos amigos e boas recordações. Liberto, de súbito, de
todas as preocupações oficiais e militares, entregou-se a uma vida regular e
tranquila, na medida em que o permitiam as paixões que germinavam à sua roda,
como se tudo que se estivesse a passar naquele momento, e que ainda tinha de se
cumprir como acontecimento histórico, lhe fosse de todo indiferente.
Tchitchagov um dos mais ardorosos partidários
da ideia de se cercarem e derrotarem os Franceses, que a princípio quisera
levar a cabo uma diversão militar na Grécia, e depois em Varsóvia, mas que
nunca se apresentava onde o mandavam, esse homem célebre pela ousadia com que
falara ao imperador, que ao mesmo se considerava protector de Kutuzov, pois,
quando se fora à Turquia, em 1811, incumbido da missão de concluir a paz, ao
saber que a paz já fora concluída, dissera ao imperador que o mérito de tal
missão pertencia a Kutuzov - Tchitchagov foi o primeiro a receber o
generalíssimo junto do castelo de Vilna, onde este devia hospedar-se.
Com o seu
uniforme de marinheiro, de espada à cinta, o chapéu debaixo do braço,
apresentou a Kutuzov o seu relatório sobre o estado da guarnição e as chaves da
cidade. A deferência um tanto desdenhosa que a juventude testemunhava a um velho
que ela entendia chegado à segunda meninice traduzia-se no mais alto grau na
maneira de agir de Tchitchagov, ao corrente das acusações que faziam ao
generalíssimo.
Na conversa
que teve com ele, Kutuzov dissera-lhe, entre outras coisas, que as suas
bagagens tomadas em Borissov, com toda a sua baixela, estavam intactas e lhe
iam ser entregues.
- É para me
dizer que eu não tenho que comer... Estou habilitado, pelo contrário, a
fornecer-lhe seja o que for, mesmo que pretenda oferecer banquetes -
respondeu-lhe Tchitchagov acaloradamente.
Queria mostrar-se importante em cada uma das
palavras que dizia e estava persuadido de que essa era a intenção do seu
interlocutor.
Kutuzov teve um sorriso fino e penetrante e
respondeu encolhendo os ombros:
- É apenas
para lhe dizer o que lhe estou a dizer.
Ao contrário do que o imperador queria, o
generalíssimo mandou que se detivesse em Vilna a maior parte das suas tropas.
Na opinião
das pessoas que o rodeavam, decaíra muito fisicamente durante a sua permanência
nesta cidade. Só muito ao de leve se preocupava com os assuntos militares,
deixando que os generais fizessem tudo, e enquanto aguardava a chegada, do
imperador entregava-se ao prazer.
Tendo saído
de Petersburgo com a sua comitiva no dia 7 de Dezembro - o conde Tolstoi, o
príncipe Volkonski, Araktcheiev e outros - o imperador chegou a Vilna no dia
11, dirigindo-se imediatamente ao castelo no seu trenó de viagem.
Apesar do
frio que fazia, esperavam-no, cá fora, uma centena de generais e de oficiais do
estado-maior, de uniforme de gala, bem como uma guarda de honra do regimento
Semionovski. O correio que precedia o czar chegou ao castelo, numa troika,
coberto de suor, e gritou:
- O imperador!
Konovnitsine
precipitou-se no vestíbulo para advertir Kutuzov, que esperava no compartimento
do porteiro. Um minuto depois, Kutuzov, no seu uniforme de gala, com todas as
condecorações e cobrindo-lhe o peito por completo, uma faixa a apertar-lhe o
ventre, surgia no alpendre em passos titubeantes. Cobriu a cabeça, como se
estivesse a comandar o exército, pegou nas luvas, desceu com dificuldade os
degraus do alpendre e pegou no relatório que ia ser apresentado ao czar.
Um grande
alarido se ouviu, uma troika passou vertiginosa a toda a gente fixou os olhos no
trenó que chegava, a galope, onde se destacavam as silhuetas do imperador e de
Volkonski. Apesar de mais de cinquenta anos de experiência, esta chegada não
deixou de impressionar, como sempre, o velho general. Apalpou-se, febrilmente,
à pressa, ajeitou o gorro e as condecorações, enquanto o imperador, apeando-se
do trenó, erguia para ele os olhos. Depois apresentou-lhe o relatório,
dominando a emoção que o tomava, sem perder o aprumo militar, e pôs-se a falar
numa voz comedida e insinuante.
O imperador olhou-o rapidamente da cabeça aos
pés, franziu as sobrancelhas por segundos, mas, dominando-se imediatamente,
aproximou-se e, de braços abertos, apertou-o contra o peito. Esta atitude do
imperador, acordando-lhe velhas impressões e pensamentos íntimos, produziu em
Kutuzov o efeito habitual: rompeu em soluços.
O imperador
saudou os oficiais, a guarda de honra do Semionovski e, apertando mais uma vez
a mão do generalíssimo, penetrou com ele no castelo.
Quando ficou só com o marechal exprimiu-lhe o
seu descontentamento por causa da morosidade na perseguição dos Franceses, dos
erros cometidos em Krasnoie e no Beresina e pô-lo ao corrente dos seus planos
sobre a futura campanha no estrangeiro. Kutuzov não fez a mais pequena
observação nem teve o mais pequeno comentário. No seu rosto havia a mesma
expressão submissa de sete anos antes, ao receber as ordens do soberano no
campo de batalha de Austerlitz.
Quando, no
seu andar pesado e cambaleante, saiu do gabinete do imperador e, de cabeça
baixa, atravessou o salão, uma voz deteve-o.
- Sereníssimo! - dizia-lhe alguém.
Kutuzov
ergueu a cabeça e ficou a olhar por muito tempo o conde Tolstoi, que estava
diante dele, com um minúsculo objecto dentro de uma salva de prata. Dir-se-ia
não compreender o que queriam dele. De súbito pareceu recordar-se, um sorriso
imperceptível lhe perpassou pelo rosto entumecido, e, inclinando-se
respeitosamente, numa grande vénia, pegou no objecto que estava na salva. Era a
cruz de S. Jorge de 1ª classe.
No dia
seguinte, o marechal ofereceu um jantar seguido de baile, que o imperador
honrou com a sua presença. Kutuzov recebia a cruz de S. Jorge de 1ª classe; o
imperador prestava-lhe as maiores honras; mas o descontentamento do soberano
não era segredo para ninguém. Tinham-se respeitado as conveniências e ele fora
o primeiro a dar o exemplo. Mas toda a gente sabia que o velho era culpado e já
para nada prestava. Como Kutuzov ordenasse, de acordo com um velho costume dos
tempos de Catarina, que no momento em que o imperador entrasse na sala de baile
lhe depusessem aos pés os estandartes tomados ao inimigo, o soberano,
descontente, franziu o sobrolho e pronunciou algumas palavras, onde alguns
julgaram surpreender esta frase: «Velho comediante! »
O descontentamento do czar ainda se tornou
mais evidente durante a permanência em Vilna quando verificou que Kutuzov não
queria ou não podia compreender a utilidade da campanha projectada. No dia
seguinte ao da sua chegada, o imperador dissera aos oficiais reunidos à sua
volta:
- Os
senhores não salvaram apenas a Rússia, os senhores salvaram a Europa.
- E então todos compreenderam que a guerra não
findara.
Só Kutuzov
não podia compreender e dizia a quem o queria ouvir que uma nova guerra não
melhoraria a situação nem aumentaria a glória da Rússia, mas, muito pelo
contrário, concorreria para piorar e diminuir o alto prestígio de que o país
então desfrutava, segundo ele. Esforçava-se por demonstrar ao imperador a
impossibilidade de convocar mais tropas, aludindo ao penoso estado das
populações, à possibilidade de qualquer malogro, etc. Era evidente que, numa
tal disposição de espírito Kutuzov não podia deixar de constituir um empecilho
para a guerra prevista.
Para evitar
qualquer conflito com o velho, acharam perfeitamente natural uma escapatória,
como se fizera com Barclay aquando de Austerlitz e no começo da campanha:
retirar o poder ao generalíssimo para o confiar ao próprio imperador, sem ruído
nem inúteis explicações. Nessa intenção, procedeu-se, pouco a pouco, a uma
reorganização do estado-maior e todo o poder efectivo de Kutuzov foi suprimido
e transmitido ao imperador.
Toll,
Konovnitsine, Ermolov, foram encarregados de outras missões.
Dizia-se
abertamente que o marechal estava muito enfraquecido e de saúde abalada.
Era preciso,
realmente, que a sua saúde estivesse muito abalada para transmitir as suas
funções àquele que o devia substituir. E de facto estava enfermo. Tal como viera
outrora da Turquia, o mais natural e simplesmente que é possível, a fim de
reunir a milícia em Petersburgo e depois colocar-se à frente do exército no
momento em que era indispensável, agora, o mais natural e simplesmente, e da
mesma forma progressiva, terminado o seu papel, substituíam-no por uma nova
engrenagem, a engrenagem que a situação requeria.
A guerra de
1812 não devia conservar o seu carácter estritamente russo de guerra
patriótica, mas assumir outro, tornar-se uma guerra europeia. Depois da marcha
dos povos do Ocidente para o Oriente, devia verificar-se uma, marcha do Oriente
para o Ocidente, e para levar a cabo esta nova guerra era necessário um homem
novo, dotado de qualidades que Kutuzov não tinha, com outras vistas, outros
objectivos. Para realizar esta marcha dos povos em sentido inverso e
restabelecer as fronteiras, Alexandre I, eis o homem indispensável, tão
indispensável quanto o fora Kutuzov para salvação e glória da Rússia.
Kutuzov era refractário a estas noções:
Europa, equilíbrio, Napoleão. Não podia entendê-las. O representante do povo
russo, esse russo, enquanto russo, já nada tinha a fazer naquela hora em que o
inimigo estava esmagado e a Rússia liberta e no pináculo da glória. O
representante da guerra patriótica só tinha agora um caminho a seguir: morrer.
E assim o fez.
Outrora
procurava Deus nas missões que a si próprio se impunha. Quando procurava um
objectivo para a vida, era Deus que no fim de contas procurava. E de repente,
durante o cativeiro, descobrira, não por meio de palavras ou raciocínios, mas
graças a uma espécie de íntima revelação, o que a sua velha ama tantas vezes
lhe dissera: «Deus está em toda a parte.» No cativeiro aprendera que Deus era bem maior, mais infinito, mais
inacessível que o Grande Arquitecto do Universo dos franco-mações. Dir-se-ia
que achara a seus pés o que andava buscando muito longe de si. Toda a sua vida
pusera os olhos lá longe, por cima da cabeça da multidão, quando não tinha mais
que olhar para diante de si. Até então não conseguia descobrir em parte alguma
o inacessível, o grande, o infinito. Apenas sentia que o infinito existia
algures e procurava-o. Em tudo o que o rodeava, em tudo o que lhe era dado
compreender, só via interesses acanhados, mesquinhos, absurdos, os interesses
que a vida nos revela. E armava-se de uma espécie de óculo moral para olhar ao
longe, para onde esses interesses mesquinhos, essas pequenas coisas exteriores,
escondidas na névoa da distância, se lhe afiguravam como que revestidas de
grandeza, verdadeiras imagens do infinito, pela simples razão de que as não via
com nitidez. Assim se lhe entremostrava a vida europeia, a política, a maçonaria,
a filosofia, a filantropia. Agora, porém, que se dava conta da sua fraqueza,
quando o seu espírito penetrava nessas misteriosas profundezas, era para
descobrir aí também essa mesma mesquinhez, esse mesmo absurdo, existentes na
vida quotidiana. Agora aprendera a ver o infinito em toda a parte, em tudo, por
isso achava perfeitamente natural que para usufruir da contemplação das coisas
eternas já não precisasse desse óculo que lhe permitia lobrigar para além dos
homens; admirava, à sua volta, com alegria, o espectáculo eternamente mutável,
eternamente grande, inacessível e infinito da vida. E quanto mais de perto
olhava esse espectáculo mais tranquilo e feliz se sentia. O terrível porquê que
outrora fazia ruir todas as construções do seu espírito deixara de existir para
ele. Agora essa interrogação angustiosa tinha uma resposta simples. Deus
existia, esse Deus - o assentimento do qual nem um só cabelo cairá da cabeça do
homem.
O mais
astucioso dos homens não teria sido capaz de ganhar a confiança da princesa
ainda que evocasse as melhores recordações da sua juventude e lhe falasse
comovidamente. A astúcia de Pedro limitou-se a mostrar interesse em acordar
sentimentos humanos naquela criatura azeda, seca e orgulhosa.
«Sim, é um
homem de bom coração quando não está sob influência de gente má mas de pessoas
como eu», dizia ela com os seus botões.
O médico que
o tratava e o visitava todos os dias, embora se julgasse na obrigação, como
todo o médico que se preza, de se dar ares de quem não tem um minuto a perder,
pois o seu tempo é precioso para a humanidade que sofre, passava horas junto
dele a contar-lhe as suas anedotas favoritas e a fazer observações sobre a sua
clientela em geral e em particular as senhoras.
Não discutia
as opiniões do amigo, parecia mesmo estar de acordo com ele, pois de si para
consigo dizia que a melhor maneira de evitar discussões sem qualquer resultado
era fingir que concordava com ele. E sorria, divertido, enquanto ele falava.
Assim como é
difícil explicar as idas e vindas das formigas quando vêem o seu formigueiro
arrasado, umas carregando os ovos e os cadáveres e outras voltando ao ninho,
tropeçando, perseguindo-se, lutando, também não seria fácil dizer o que impelia
os Russos, depois da partida dos Franceses, a agrupar-se naquele local a que
outrora se dera o nome de Moscovo. Se se observarem as formigas dispersas em
volta do seu formigueiro, compreenderse- á que, apesar da ruína completa do seu
lar, mercê da sua tenacidade, da sua energia, da actividade daqueles
inumeráveis insectos, tudo perderam, salvo o princípio inabalável e imaterial
que constitui a força da sua colónia.
O mesmo acontecia em Moscovo em Outubro.
Embora estivesse privada das suas autoridades, das suas igrejas, das suas
riquezas, das suas casas, a cidade era a mesma que fora em Agosto. Tudo estava
destruído salvo o que nela havia de imaterial, de verdadeiramente pode roso e
de indestrutível. Os objectivos que impeliam todos aqueles que, vindos de toda
a parte, afluíam a Moscovo depois de evacuada pelo inimigo, eram os mais
diversos, e sobretudo pessoais, e principalmente, nos primeiros tempos, de uma
natureza bestial e perfeitamente selvagem. Um único sentimento era comum a
todos: o desejo de regressar ao local onde fora Moscovo para cada um se
entregar à sua própria actividade. Ao fim de uma semana, Moscovo contava já
quinze mil habitantes, duas semanas mais tarde tinha vinte e cinco mil e assim
por diante. No Outono de 1813, aumentando sempre, a população da cidade atingia
um número de almas muito superior ao da população de Moscovo de 1812.
Os primeiros
russos que deram entrada em Moscovo foram os cossacos do destacamento
Wintzengerode, os mujiques das aldeias vizinhas e os habitantes que tinham
fugido, escondendo-se nos arredores. Estes, ao entrarem na cidade em ruínas e
encontrando-a a saque, saquearam-na também. Continuaram o que os Franceses
tinham principiado. Os mujiques, com as suas carroças, vinham buscar o que se
encontrava abandonado nas casas e ao longo das ruas. Os cossacos levaram
consigo, para o seu acampamento, o que puderam; os proprietários de imóveis
apoderavam-se do que encontravam nas casas alheias e diziam que tudo isso era
seu.
Depois dos
primeiros saques, vieram outros, e outros ainda, e a pilhagem, à medida que aumentava
o número dos salteadores, tornava-se mais difícil e obedecia a normas mais
metódicas.
Os Franceses
tinham encontrado a cidade abandonada, mas haviam conservado todas as formas de
uma administração regular, com o seu comércio, os seus ofícios, as repartições
públicas, a religião. A maior parte das vezes tratava-se de corpos sem vida,
mas que ainda assim mesmo existiam. Ainda havia galerias comerciais, lojas,
armazéns, entrepostos de farinhas, bazares, oficinas, ateliers, geralmente
abastecidos de mercadorias; e havia palácios, casas ricas cheias de luxuosos
artefactos; havia hospitais, prisões, escritórios, igrejas, catedrais.
À medida que
os Franceses foram ficando, todas estas formas de vida urbana desapareciam
pouco a pouco e por fim a cidade transformara-se num vasto campo de saqueio.
Quanto mais se prolongava o saque dos Franceses tanto mais se esgotavam as
riquezas de Moscovo e os recursos dos próprios saqueadores. Pelo contrário, o
dos Russos, nos primeiros dias do seu regresso à capital, quanto mais se
prolongava tanto maior era o número dos que nele tomavam parte, contribuindo
para restabelecer rapidamente a riqueza da cidade e a sua vida regular.
Assim como o
sangue aflui ao coração, afluíam a Moscovo, vindos de diversos pontos, além dos
saqueadores, pessoas de toda a sorte, atraídas quer pela curiosidade, quer pelo
desejo de se tornarem úteis, quer por interesse, proprietários, eclesiásticos,
pequenos e grandes funcionários, comerciantes, artesãos, mujiques. Ao cabo de
uma semana, os mujiques que entravam na cidade com os seus carros vazios para
levarem os objectos que encontravam eram detidos pelas autoridades e obrigados
a transportar os mortos para fora da cidade. Outros, ao saberem do que sucedera
aos companheiros, trouxeram trigo, aveia, feno, e em virtude da concorrência
que faziam uns aos outros, os preços baixaram a um nível inferior ao antigo. Os
artels (Associações de trabalho comunitário. (N dos T.) dos carpinteiros,
atraídos pelos bons salários, apareciam todos os dias e por toda a parte
reconstruíam ou reparavam as casas que tinham ardido. Comerciantes abriam lojas
em abarracamentos. Nas ruínas iam-se organizando estalagens, hotéis. O clero
restabelecia o serviço religioso em muitas das igrejas que haviam ficado
intactas. Donatários traziam alfaias religiosas que haviam sido roubadas.
Funcionários instalavam em pequenas divisórias as suas mesas cobertas de pano
preto e as suas estantes. As autoridades e a polícia procediam à distribuição
dos bens abandonados pelos Franceses. Os proprietários das casas em que os
Franceses tinham acumulado muitos objectos valiosos diziam que estavam a ser
lesados, porque tudo fora levado para o Palácio das Facetas. Outros sustentavam
que os Franceses tinham concentrado num mesmo local muitos objectos roubados de
diversas casas e diziam não ser justo entregarem aos proprietários essas casas
com tudo o que lá estava dentro. Insultavam a polícia, tentavam suborná-la.
Duplicavam o valor dos bens do Tesouro queimados, exigiam socorros em dinheiro.
O conde Rostoptchine redigia, as suas proclamações.
-
Queixamo-nos das desgraças e dos sofrimentos - disse Pedro -, mas se neste
mesmo instante me viessem dizer: «Queres voltar ao que eras antes do cativeiro
ou preferes tornar a viver o que passaste?», eu responderia: «Por Deus! Antes
uma vez mais o cativeiro e a carne de cavalo!» Julgamos nós que ao sermos
atirados para fora do caminho trilhado tudo está perdido, quando, pelo
contrário, é então que começa uma nova vida, a verdadeira vida. Enquanto há
vida há felicidade. Há muita, muitíssima esperança no futuro.(…)
Há quem diga
que as amizades entre homens se fundam sempre nos contrastes.
Mais tarde
veio a recordar muitas vezes estes dias de louca felicidade. Todos os juízos
que então fizera a respeito das pessoas e das circunstâncias ficaram para ele
como juízos exactos para sempre. Não só não renegou depois as suas opiniões de
antanho sobre os homens e as coisas, mas, pelo contrário, quando tinha dúvidas
e incertezas intimas, recorria às opiniões que tivera nessa altura e verificava
serem sempre exactas.
«É
possível», dizia ele com os seus botões, «que eu fosse então estranho e
ridículo, mas não era tão louco como parecia. Pelo contrário, nessa altura
sentia-me mais perspicaz e inteligente do que nunca. Compreendia tudo o que
valia a pena compreender na vida, porque... era feliz.»
Sete anos
tinham passado. O agitado mar que submergira a Europa regressara às suas
margens. Parecia ter sossegado, mas as forças que haviam impelido a humanidade,
ocultas porque as leis a que obedecem nos não são conhecidas, continuavam a
actuar. Embora tudo parecesse tranquilo à superfície das águas, a humanidade
continua a estar submetida a um movimento ininterrupto, como o do tempo.
Diversos agrupamentos humanos se combinaram, para em seguida se dissolverem,
causas novas de formação e deslocação dos estados, de amálgamas de nações se
preparam.
As vagas não
se encaminham agora, como antes, de uma só vez, de uma margem à outra: a
tempestade ruge nas profundezas. As personalidades históricas não são como outrora
arrastadas pelas vagas de uma margem para a outra: parecem agora turbilhonar no
mesmo sítio. Outrora presidiam, à frente das tropas, aos movimentos das massas,
por meio de guerras, de campanhas, de batalhas; agora tomam parte nos surdos
movimentos da tempestade por meio de combinações políticas e diplomáticas, de
leis, de tratados...
Esta
intervenção de certas personagens tem para os historiadores o nome de reacção.
(…)Mas se se
supõe que Alexandre se enganou, há cinquenta anos, sobre o bem dos povos, somos
levados a presumir que o historiador que hoje em dia emite tais juízos muito
bem poderá, dentro de alguns anos, parecer errado igualmente no que hoje se
julga ser o mesmo bem. Tal suposição é tanto mais natural e necessária que, se
se acompanhar a evolução da história, ver-se-á que com cada novo autor muda o
ponto de vista sobre o em que consiste esse bem da humanidade. De tal maneira
que o que parecia ser bem passou a ser mal dez anos depois e reciprocamente. E,
o que é mais, simultaneamente surgem opiniões contraditórias sobre o mesmo
assunto. Há historiadores que consideram mérito de Alexandre à constituição da
Polónia e a Santa Aliança, e há os que consideram esses mesmos actos motivos de
reproche.
Quer se
trate de Alexandre ou de Napoleão, não pode dizer-se que a sua acção foi útil
ou nociva, uma vez que se não sabe em que ordem de coisas foi ela útil ou
nociva Se os seus actos desagradam a este ou àquele é apenas porque vão de
encontro à noção limitada que este ou aquele têm do que é o bem. Se o bem para
mim está no facto de a casa de meu pai não ter sido destruída em Moscovo em
1812 ou na glória dos exércitos russos, ou na prosperidade das Universidades de
Petersburgo ou outras ou na liberdade da Polónia, no poder da Rússia, no
equilíbrio europeu ou ainda numa civilização europeia de um género a que se dá
o nome de progresso, devo confessar que, além destes escopos, esta ou aquela
personagem histórica tinha outros, mais gerais, que eu não posso compreender.
Admitamos
que a pretensa ciência tem o poder de reduzir todas as contradições e que
dispõe para as personagens e os acontecimentos históricos de um modo infalível
de medir o que é o bem e o que é o mal.
Suponhamos
que Alexandre poderia proceder de maneira completamente diferente.
Suponhamos
que tinha podido, de acordo com as indicações dos que o acusam, dos que
pretendem conhecer os objectivos finais da humanidade, que ele tinha podido
cumprir o programa de interesse nacional, de liberdade, de igualdade e de
progresso que os seus críticos actuais acham que devia ter realizado e, segundo
eles é o único válido. Suponhamos que um tal programa era possível e prático e
que Alexandre o pudera aplicar.
Que teria
acontecido à acção dos indivíduos que se opuseram às tendências do governo de
então, essa acção que, segundo os historiadores, foi boa e útil? Nada do que
fizeram teria sido realizado: toda a vida teria sido extinta.
Pretender-se
que a vida dos homens seja sempre dirigida pela razão é destruir toda a
possibilidade de vida.
Se
admitirmos, como os historiadores, que os grandes homens conduzem a humanidade
para determinados objectivos - a grandeza da Rússia ou da França, o equilíbrio
europeu, a expansão das ideias revolucionárias, o progresso geral ou qualquer
outra coisa - então é impossível explicar os fenómenos históricos sem recorrer
à intervenção do azar e do génio. Se a finalidade das guerras do princípio do
século foi a grandeza da Rússia, esta podia ter sido alcançada sem qualquer das
guerras precedentes e sem a invasão. Se essa finalidade era a grandeza da
França, tinha sido possível alcançá-la sem a Revolução e sem o Império. Se
fosse a propagação de certas ideias, a imprensa tinha-a podido realizar
muitíssimo melhor do que os soldados. Se era o progresso da civilização, temos
de concordar que há meios mais eficazes que a destruição das pessoas e das
riquezas. Porque se passaram então as coisas assim, e não de maneira diferente?
Muito simplesmente porque foi assim que se
passaram, «O azar estabeleceu determinada situação: o génio tirou dela
partido», dizem os historiadores. Mas que vem a ser o azar? Que é o génio? Como
estas palavras nada significam de realmente existente, não se podem definir.
Apenas indicam uma certa maneira de compreender os fenómenos. Ignoro a causa de
determinado acontecimento; reconheço que a não posso vir a conhecer, e por isso
falo no azar. Vejo uma força que produz resultados que ultrapassam a craveira
dos acontecimentos ordinários: não compreendo como as coisas se deram, e invoco
o génio.
Num rebanho
de carneiros, o carneiro que o pastor fecha todas as noites num cercado
especial para que seja alimentado à parte e venha a ficar duas vezes mais
nutrido do que os outros deve necessariamente parecer um génio. E pelo facto,
precisamente, de este carneiro ter sido criado à parte, com uma alimentação
especial, o ser vendido para o talho deve considerar-se uma circunstância
genial ligada a toda uma série de circunstâncias extraordinárias. Basta, porém,
que os outros carneiros deixem de acreditar que o que acontece é apenas o
resultado de se pretender realizar os objectivos próprios dos criadores de
gado; basta-lhes admitir que os objectivos em vista podem ser-lhes
ininteligíveis, para que eles encarem a engorda de um dos seus pares um
acontecimento com a sua unidade e o seu desenvolvimento lógico. Ignorando a
razão desse acontecimento, saberão pelo menos que ele se não produziu de
improviso e que não terão necessidade de recorrer nem ao azar nem ao génio.
Só quando
renunciamos a conhecer a meta próxima e compreensível, e ao admitirmos que a
meta final nos é inacessível, podemos ver encadeamento e lógica na vida das
personagens históricas; descobriremos a razão da desproporção existente entre
os seus tetos e, a capacidade comum a toda a gente e dispensaremos de uma vez para
sempre tanto o azar como o génio.
Basta
reconhecermos que, a razão das agitações dos povos europeus nos é desconhecida,
que apenas conhecemos factos, primeiro as matanças em França, depois na Itália,
em África, na Prússia, na Áustria, na Espanha, na Rússia, e que tudo isso não
passa de uma deslocação do Ocidente para o Oriente, depois do Oriente para o
Ocidente, para que não só renunciemos a admitir qualquer coisa de excepcional e
de genial nos caracteres de Napoleão e de Alexandre, mas até para que não seja
possível vermos neles homens diferentes dos outros.
Não teremos
mais necessidade de explicar por um feliz azar as mínimas circunstâncias que
fizeram destes homens o que eles foram; tornar-se-nos-á evidente que essas
circunstâncias eram necessárias. Se renunciarmos a conhecer a meta final das
coisas, compreenderemos que, da mesma maneira que uma planta não pode ter outra
cor nem outras sementes, não podemos imaginar duas pessoas cujos actos
correspondam melhor que os dos dois imperadores, numa tal escala e até nos mais
pequenos pormenores, à missão que lhes foi atribuída.
O facto
essencial e fundamental dos acontecimentos do princípio do século XIX consiste
numa deslocação em massa dos povos da Europa Ocidental para o Oriente, depois
do Oriente para o Ocidente.
Para que os
povos do Ocidente tenham podido levar a marcha bélica até Moscovo foi
necessário: 1º, que formassem um conjunto militar suficientemente poderoso para
suportar o choque da massa dos guerreiros do Oriente; 2º, que renunciassem a
todas as suas tradições e aos seus hábitos; 3º, que, para levar a bom termo o
seu empreendimento, tivessem à sua frente um homem capaz de justificar aos seus
próprios olhos e aos olhos deles as fraudes, os saques e as chacinas que o
acompanharam.
O primeiro grupo,
oriundo da Revolução Francesa, insuficientemente forte, dissolve-se depressa;
ao mesmo tempo são destruídos os velhos hábitos e as tradições antigas; depois
forma-se, pouco a pouco, um novo grupo e mais considerável, novas tradições se
estabelecem e então prepara-se para desempenhar o seu papel o homem que irá
colocar-se à frente do futuro movimento e chamar a si toda a responsabilidade
dos acontecimentos que devem seguir-se.
Este homem,
sem convicções, sem passado, sem tradições, sem nome, que nem sequer é francês,
graças a um concurso de circunstâncias, insinua-se entre os partidos que agitam
então a França e sem fazer parte de nenhum deles vem a ser guindado a uma alta
esfera. A grosseria dos seus companheiros, a fraqueza e a nulidade dos seus adversários,
o cinismo na mentira, a mediocridade brilhante e vaidosa desse homem, levam-no
ao comando do exército. O ar espaventoso das tropas de Itália, a nula vontade
de se baterem que tinham os seus rivais, a sua audácia e a sua vaidade pueril
asseguram-lhe a glória das armas. Uma série de circunstâncias felizes
acompanha-o por todos os lados. O afastamento em que os dirigentes o mantêm
é-lhe útil.
As
tentativas que faz para mudar de rota não frutificam: recusam aceitar os seus
serviços na Rússia, falha igualmente na Turquia. Durante a guerra de Itália,
por várias vezes, vê-se a dois passos da perdição e sempre qualquer
circunstância imprevista o livra de apuros.
Os exércitos russos, precisamente os que lhe
podiam ofuscar a glória, mercê de várias combinações diplomáticas, não põem o
pé na Europa enquanto ele ali se mantém.
No seu
regresso de Itália encontra o governo de Paris num tal estado de decomposição
que aqueles que dele fazem parte têm fatalmente de se apagar e desaparecer. E
espontaneamente se lhe apresenta a maneira de sair de uma situação perigosa: a
expedição à África, absurda e sem qualquer razão de ser.
E os mesmos felizes acasos o acompanham.
Malta, considerada inexpugnável, rende-se sem um tiro. Os actos mais
imprudentes são coroados de êxito. A armada inimiga, que pouco depois não
deixará passar um único barco, deixa as águas livres a uma esquadra inteira.
Em África
comete-se toda uma série de abominações sobre uma população quase desarmada. E
os homens que cometem esses crimes, e sobretudo o seu chefe, estão persuadidos
de que tudo isso é heróico, que estão a cobrir-se de glória e que os seus
empreendimentos são dignos de rivalizar com os de César e de Alexandre da
Macedónia. Este ideal de glória e de grandeza que consiste não só em não recuar
perante seja que crime for, mas em vangloriar-se disso mesmo, atribuindo aos
crimes uma espécie de valor sobrenatural, esse ideal que, de então para o
futuro, será o escopo desse homem e dos seus acólitos, elabora-se plenamente em
África. Tudo o que faz o faz com êxito. A peste não o contagia. As cruéis
chacinas de prisioneiros não lhe são imputadas como crime.
A sua
partida de África, de uma imprudência infantil, que nada justifica, acto de
flagrante ingratidão para com os seus companheiros em desgraça, é considerada
um mérito, e pela segunda vez a armada inimiga o deixa fugir.
É então que,
aturdido pelos crimes praticados e que lhe deram sorte, pronto a desempenhar o
seu papel, mas ainda sem objectivo, chega a Paris. A decomposição do governo
republicano, que um ano antes o teria podido perder, atingiu o mais alto grau,
e a presença desse homem novo, alheio aos partidos, só pode concorrer para a
sua salvação.
Não tem qualquer plano. Tem medo de tudo, mas
os partidos agarram-se a ele e pedem-lhe auxílio. Com o ideal de glória e de
grandeza que forjou na Itália e no Egipto, com a louca admiração de si próprio,
com a audácia revelada para o crime, com o cinismo que pratica na mentira, só
ele é capaz de justificar os acontecimentos que vão seguir-se. É o homem
necessário para o lugar que o espera e é por isso que, independentemente da sua
vontade, apesar da sua irresolução, da sua falta de planos, de todos os erros
que comete, é arrastado a uma conspiração para tomar conta do Poder e essa
conspiração é coroada de êxito.
Introduzem-no
à força numa reunião do Directório. Assustado, quer fugir, julgando-se perdido.
Finge uma síncope. Diz coisas insensatas, que lhe poderiam ter sido fatais, Mas
os membros do Directório, até então altivos e prudentes, ao perceberem que
desempenharam o seu papel, ainda se mostram mais perturbados do que ele
próprio, e dizem exactamente o contrário do que deviam para manterem o Poder e
aniquilar o adversário.
Um azar,
milhões de azares concedem-lhe o Poder e todos os homens parecem combinados
para lhe consolidar a autoridade. É, o azar que leva os governantes da França
de então a inclinarem-se diante dele é o azar que determina Paulo I a
reconhecê-lo; é, o azar que contra ele trama uma conspiração, a qual, em vez de
lhe abalar o Poder, o consolida. É o azar que põe à mercê dele o duque de
Enghien e o compele, inopinadamente, a mandá-lo assassinar, demonstrando à
populaça, desta sorte - meio mais poderoso que nenhum outro -, que o direito
lhe pertence, visto que dispõe da força. É o azar que o faz reunir todos os
recursos de que dispõe para levar a cabo uma expedição contra a Inglaterra,
empreendimento que evidentemente lhe poderia ser fatal, mas a expedição não se
realiza, caindo, de súbito, sobre Mack e os Austríacos, que se rendem sem
combate. É o azar, secundado pelo génio, que lhe concede a vitória em
Austerlitz e é ainda graças ao azar que não só a França, mas todas as nações da
Europa, com excepção da Inglaterra, a qual não tomará parte nos acontecimentos
subsequentes, que todos os povos, apesar do horror e da aversão que os crimes
deste homem lhes inspiram, e conhecem o seu poder, o título que a si próprio se
atribuiu e o seu ideal de grandeza e de glória, que todos acham magnífico e
sensato.
Como para se
exercitarem e prepararem para se porem em movimento, as forças do Ocidente, por
várias vezes, em 1805, 1806, 1807, 1809, dirigem-se para o Oriente, cada vez
mais poderosas e mais numerosas.
Em 1811, o
grupo de homens que se formou em França une-se, numa massa considerável, com os
povos do Centro da Europa. À medida que esta massa de homens vai crescendo,
maiores as razões de se justificar assistem àquele que as comanda.
Durante os
dez anos de preparação deste grande movimento estabelece entendimentos com
todos os monarcas da Europa. Os poderosos deste mundo, despojados de toda a
autoridade, para opor a este ideal de glória e de grandeza encarnado num
Napoleão, e desprovido de todo o bom senso, não dispõem de qualquer outro ideal
razoável. Um por um se dão pressa de mostrar-lhe a sua insigníficância.
O rei da Prússia manda a própria mulher
solicitar as boas graças do grande homem; o imperador da Áustria considera alta
mercê o facto de ele se dignar receber no seu leito a filha dos Césares; o
Papa, guardião do sagrado tesouro espiritual dos povos, põe a religião ao
serviço da glorificação deste homem.
Não é
Napoleão quem se prepara para desempenhar o seu papel mas são aqueles que o
rodeiam quem o compele a aceitar a responsabilidade dos acontecimentos
presentes e futuros. Não era acto, crime, desonestidade, cometido por ele que
se não transforme imediatamente em grande façanha na boca dos que o rodeiam.
Os Alemães,
para o lisonjear, nada têm de melhor que celebrarem as vitórias de Jena e de
Auerstedt.
Não é só
nele que reside a grandeza, mas nos antepassados, nos irmãos, nos sobrinhos,
nos cunhados. Tudo para o despojar dos últimos lampejos da razão, preparando-o
para o seu terrível papel. E quando chega o momento de estar preparado tudo à
sua volta está preparado também. A invasão avança para o Oriente, atinge o seu
objectivo final: Moscovo. A capital é tomada. O exército russo encontra-se num
estado de aniquilamento tal como nenhum outro exército o esteve nas precedentes
guerras, de Austerlitz a Wagram.
E de súbito, em vez destes golpes do génio e
do azar que de maneira tão persistente o conduziram, graças a uma cadeia
ininterrupta de êxitos, ao objectivo previsto, surge uma série inumerável de
azares contrários, desde a constipação de Borodino até ao gelo e à centelha que
incendiou Moscovo, e o génio é substituído por rasgos de estupidez e de vilania
sem precedentes. A invasão precipita-se, põe-se em fuga de novo e tudo desde aí
passa a ser, constantemente, não a seu favor, mas contra ele.
Produz-se um
movimento em sentido inverso, do Oriente para o Ocidente, em tudo parecido com
o anterior, do Ocidente para o Oriente. As mesmas tentativas prévias como em
1805, 1807, 1809, antes da marcha geral; a mesma aglutinação dos diversos
elementos para se formar a massa colossal; a mesma adesão dos povos do centro
da Europa; a mesma hesitação a meio do caminho e a mesma multiplicação da
velocidade à medida que se aproxima da meta.
Paris, o
objectivo último, é atingida. O governo imperial e o exército são destruídos. Napoleão
já não tem razão de ser; todos os seus actos de então para cá são lamentáveis e
repugnantes.
Mas eis que
um acaso inexplicável se produz. Os aliados odeiam esse homem, a quem atribuem
todas as suas infelicidades. Despojado da sua força e do seu poderio, convicto
de crimes e de perfídias, deveria ter-lhes surgido diante dos olhos como lhes
aparecera dez anos antes: um verdadeiro bandido à margem da lei. Graças, porém,
a uma estranha circunstância, ninguém o viu nesse aspecto.
Ainda não
estava terminado o seu papel. Este homem, este bandido fora da lei, é enviado
para uma ilha, apenas a dois dias de jornada da França, cuja jurisdição lhe é
entregue, com um corpo de guarda próprio e milhões que lhe pagam não se sabe
porquê.
O fluxo da
maré dos povos principia a recolher-se aos limites das suas margens. As vagas
refluem e sobre o apaziguado mar flutuam os diplomatas, convencidos de que esse
apaziguamento é obra sua.
Mas, de
súbito, o mar agita-se de novo. Os diplomatas persuadem-se de que são eles e
que é o desacordo que lavra entre si que constitui a causa deste novo afluxo de
violências: aguardam a guerra entre os soberanos; a situação afigura-se-lhes
insolúvel.
No entanto,
a maré, o refluxo que eles esperam, não surge do lado donde supunham que viria.
A mesma vaga se levanta do mesmo ponto de
partida, de Paris. Produz-se então o último movimento vindo do Ocidente,
agitação nova que deve resolver as dificuldades diplomáticas, que parecem
insolúveis, e pôr fim aos movimentos bélicos desse período- O homem que arrasou
a França volta só, sem conspiração prévia, sem soldados. Qualquer sentinela o
podia, ter prendido, mas, por estranho azar, não só ninguém lhe deita a mão
como todos acolhem, entusiasmados, o homem a quem na véspera maldiziam e a quem
irão amaldiçoar um mês depois.
Este homem era, necessário ainda para
justificar o último acto. O último acto terminou.
Depois de
representar o seu papel, o actor recebe ordem para despir as roupas de cena e
para se despojar dos adereços: ninguém já precisa dele. Alguns anos decorrem
ainda em que ele, na solidão da sua ilha, continua a representar para si
próprio uma miserável comédia, intrigando e mentindo, para justificar os seus
actos, quando essa justificação é inútil e prova ao mundo inteiro o que em
verdade era o que todos supunham ser a força numa época em que uma mão
invisível a guiava.
Uma vez
terminado o drama e despojado o actor das suas roupas de cena, o encenador
apontava para ele:
- Aqui
tendes aquele em quem acreditastes! Ei-lo! Vede agora como não era ele, mas eu
quem o conduzia.
Cegos pela
violência do impulso recebido, os povos levaram tempo a perceber.
Sequência e
fatalidade maiores ainda se encontram na vida de Alexandre I, ele que se achou
à frente do movimento em sentido inverso, o do Oriente para o Ocidente.
Que era
preciso ao homem que, eclipsando todos os demais, se encontrava a dirigir esse movimento?
Sentimento da justiça, visão geral dos interesses europeus não obscurecidos por
mesquinhas considerações. Ascendente moral superior sobre os demais soberanos
da época. Qualidades pessoais de doçura e sedução. Ter sido pessoalmente
ofendido por Bonaparte. E tudo isso se associou em Alexandre I.
Tudo isso
fora preparado pelos numerosos azares que tinham semeado a sua vida passada: a
educação, as tendências liberais, os conselheiros que o rodeavam, Austerlitz,
Tilsitt, Erfurth.
Durante a
guerra patriótica, a sua personalidade apaga-se, pois não é necessária. Mas,
logo que surge a necessidade de uma guerra europeia geral, ei-lo que aparece no
seu lugar no momento dado; e, promovendo a união de todos os povos, condu-los
ao fim em vista. O objectivo é finalmente atingido.
Depois da
última guerra de 1815 encontra-se com poderes como homem algum ainda tivera.
Como usou deles?
Alexandre, o
pacificador da Europa, esse homem que desde a sua mais tenra juventude só
pensou na felicidade dos seus povos, esse homem que foi o primeiro iniciador
das reformas liberais na sua pátria, agora que, ao que parecia, dispunha do
mais lato poder, e por conseguinte dos meios de realizar a felicidade com que
sonhara, ao mesmo tempo que Napoleão, no exílio, se entrega a planos mentirosos
e pueris, destinados, segundo ele, a promover a felicidade da humanidade, caso
lhe voltassem a conceder os poderes de que desfrutara, Alexandre, que cumprira
a sua missão e se sente nas mãos de Deus, reconhece, de súbito, a inanidade de
todo esse falso poder, retira-se, confia o Poder a homens a quem despreza e
contenta-se em murmurar:
- Não é por
nós, não é por nós, mas por Ti, Eterno! Sou um homem como qualquer outro;
deixem-me viver como um simples mortal e pensar na minha alma e em Deus!
Assim como o Sol e cada átomo do éter
constituem esferas perfeitas em si, nada mais que átomos do todo imenso, cuja
imensidade é inacessível ao homem, cada indivíduo transporta consigo os seus
próprios fins ao mesmo tempo que serve fins comuns incompreensíveis à
humanidade.
A abelha
pousada numa flor picou uma criança. Esta tem medo das abelhas e diz que esses
insectos só servem para picar os homens. O poeta, por sua vez, admira a abelha
que esvoaça na corola das flores e afirma que o seu papel consiste em extrair o
néctar das plantas. O apicultor, notando que as abelhas recolhem o pólen e o
transportam para as colmeias, conclui que o papel delas é recolher o mel. E aqueloutro que estudou de
perto a vida do enxame mantém que a abelha recolhe o pólen para sustento das
abelhas jovens e a criação da rainha e que o seu papel, por conseguinte, é o da
conservação da espécie. O botânico observa que a abelha, transportando o pólen
da planta dióica para o órgão feminino, o fecunda, e nesta fecundação vê ele o
papel do insecto. Outro, ao estudar as variações das plantas, descobre que a
abelha contribui para essa variação e julga-se no direito de concluir que foi
criada para desempenhar tal papel.
Na
realidade, nenhuma das observações que o espírito humano está em condições de
fazer atende ao objectivo derradeiro da abelha. Quanto mais a inteligência
procura erguer-se à compreensão das razões últimas, tanto mais evidente se lhe
torna que essas razões lhe são inacessíveis. O homem apenas pode atingir a
correlação existente entre a vida da abelha e os demais fenómenos vitais. E o
mesmo acontece com a penetração das razões últimas dos factos históricos
relativos aos indivíduos e aos povos.
Não é belo o
que é belo, mas sim o que agrada.
(…)não
seguia a regra ideal que certos homens superiores aconselham, principalmente
franceses, segundo a qual uma mulher depois de casada não deve desleixar-se,
pondo de lado todos os recursos da valorização dos seus encantos: pelo
contrario, deve cuidar ainda mais de si que antes do casamento e procurar
seduzir o marido como o tentara fazer antes de casada(…)
É sabido que
o homem tem a faculdade de se deixar absorver completamente por um único objecto,
por mais insignificante que seja. E também é sabido que não há objectos
insignificantes em si mesmos que se não tornem de uma importância
extraordinária desde que a atenção se concentre neles.
As
discussões e os argumentos acerca dos direitos da mulher, das relações entre
cônjuges, das liberdades e direitos que a cada um deles competem, embora não
constituíssem, como hoje, «problemas», já então existiam, mas tais questões
eram-lhe completamente alheias e nem sequer as entendia.
Esses problemas, então, como aliás hoje em
dia, só existiam para as pessoas que encaravam o casamento apenas pela
satisfação que os esposos eram capazes de proporcionar um ao outro; Isto é, por
um dos seus aspectos, e não pelo seu verdadeiro fim, que é a família.
Se aqueles que
entendem que a finalidade das refeições é a alimentação dos indivíduos não se
pode perguntar se este ou aquele manjar lhes proporciona prazer, o mesmo
acontece com os que só vêem no casamento uma maneira de constituir família.
Se a
finalidade de uma refeição é alimentar o corpo, aquele, que ingira
sucessivamente duas refeições obterá, talvez, grande satisfação, mas não o fim
proposto, pois a verdade é que o estômago não poderá digerir essas duas
refeições.
Se a
finalidade do casamento é a família, aquele ou aquela que queira ter várias
mulheres ou vários homens, talvez venha a tirar daí grande prazer, mas o que
não terá, em caso algum, é uma família.
Dado que a
finalidade do comer é alimentar-se o homem e a do casamento constituir família,
o problema resume-se a não se comer mais do que o estômago pode digerir e a não
se ter mais mulheres ou mais maridos do que os necessários para a família, isto
é, a não se ter mais do que uma mulher ou mais do que um marido.
(…) A
conversa girava em torno das intrigas das altas esferas administrativas, onde
em geral se concentra todo o interesse da política interna de um pais.
(…) tudo vai
por terra. Nos tribunais prevarica-se; (…) O povo vive tiranizado; toda a
cultura está asfixiada. Tudo que é novo, tudo que é honesto, é perseguido.
Todos compreendem que isto não pode durar muito. Está muito esticada a corda e
terá de acabar por partir-se. - Pedro falava como se fala sempre que se julgam
os actos de qualquer governo desde que no mundo há governos.
(…)- Visto
estarem todos para aí, sem bulir um dedo, à espera que a corda se parta, e
visto que todos são de opinião de que vai dar-se uma inevitável catástrofe, é
preciso que o maior número possível de homens se encontre reunido e de mãos
dadas para resistir à convulsão geral. Toda a juventude, toda a força é sempre
para ali atraída, e ali se corrompe. A este são as mulheres que o perdem:
àquele o favoritismo àqueloutro a vaidade e o dinheiro, e assim passam para o
outro campo. Pessoas independentes e livres como vocês e eu já não existem.
Disse-lhes ainda: ampliai a vossa esfera de acção, que a vossa palavra de ordem
não seja apenas a virtude, mas a independência e a actividade(…) nos uniremos,
com o objectivo único: o bem e a segurança de todos.
(…) a miséria e o sofrimento são gerais hoje
em dia, que a imoralidade triunfa por toda a parte, e que é nosso dever ajudar
o próximo.
- Para ele
as ideias não passam de divertimento... Para mim, pelo contrário, só o que não
são ideias é divertimento. Quando uma ideia me preocupa, tudo o mais, para mim,
é apenas um espectáculo divertido.
(…) as
ideias com grande projecção são sempre muito simples. No fundo a minha ideia é
que se os criminosos estão unidos entre si, e são uma força, o mesmo devem
fazer as pessoas de bem.
O objecto da
história é a vida dos povos e da humanidade. Mas abarcar com palavras, sem
outros intermediários, descrever, em suma, não a vida da humanidade, mas a de
um único povo, pode parecer tarefa impossível.
Todos os
historiadores antigos, para descreverem e abarcarem a vida de um povo e
conseguirem isso, que parece impossível, adoptam um único e mesmo processo, descrevem
os actos dos indivíduos que governam esse povo, e esses actos para eles é como
se fossem os actos desse povo inteiro.
Quando se
lhes perguntava como podiam esses indivíduos separados fazer agir os povos a
seu talante e quem dirigia a vontade desses indivíduos, respondiam que a
vontade divina submetia os povos à vontade de um homem eleito e depois que esta
mesma divindade dirigia a vontade desse homem para um objectivo previamente
estabelecido.
Para os
antigos, portanto, a, questão ficava resolvida pela fé numa intervenção
imediata da divindade nas acções humanas.
A história
moderna rejeitou estas duas afirmações. Pareceria que ao rejeitar a crença dos
antigos na subordinação dos homens à vontade divina e a um objectivo
determinado para o qual são conduzidos, a história moderna, em vez de estudar
as manifestações da autoridade, devia investigar as causas do seu
estabelecimento.
No entanto,
eis o que a história moderna não faz. Rejeitando, em teoria, os pontos de vista
dos historiadores antigos, na prática segue-lhes os passos. No lugar dos
indivíduos dotados de poder divino e guiados pela vontade divina coloca ou
heróis providos de qualidades extraordinárias e sobre-humanas ou simplesmente
indivíduos de méritos muito diversos, quer sejam monarcas, quer simples
jornalistas, dirigindo as massas.
No lugar dos
fins instituídos outrora pela divindade a certos povos, Judeus, Gregos ou
Romanos, arrastando a humanidade, coloca o bem do povo francês, alemão ou
inglês, ou ainda, mercê de uma generalização mais abstracta, o bem da
civilização em geral, representado, vulgarmente, pelos povos que habitam o
pequeno recanto noroeste do grande continente.
A história
moderna desprezou as teorias dos antigos sem as substituir na realidade por
outras novas, e a lógica obrigou os historiadores, que por assim dizer renegaram
o poder divino dos reis, a admitirem por uma outra via uma conclusão
semelhante. Primeiro, que os povos são conduzidos por indivíduos particulares,
e, segundo, que existe um objectivo para o qual se encaminham as nações e a
humanidade.
Todos os
historiadores modernos, de Gibbon a Buckle, apesar do seu desacordo aparente,
não obstante a dessemelhança dos seus pontos de vista, reconhecem, no fundo,
estes dois princípios inevitáveis: Em primeiro lugar, o historiador não tem que
descrever senão os actos dos indivíduos separados que, na sua opinião, dirigem
a humanidade. Para uns, esses indivíduos são os monarcas, os grandes capitães,
os ministros; para outros, além dos monarcas, os oradores, os sábios, os
reformadores, os filósofos, os poetas. Em segundo lugar, o historiador conhece
o objectivo para o qual a humanidade se encaminha: para uns, é a grandeza de
Roma, da Espanha, da França: para outros, a liberdade, a igualdade, a
civilização, de um certo género, desse pequeno recanto do mundo que se chama
Europa.
Em 1789
estalou uma revolução em Paris; essa revolução cresceu, alastrou e tornou-se por
fim num movimento dos povos do Ocidente para Oriente. Por várias vezes esse
movimento se produz e vem a chocar com um movimento contrário de Oriente para
Ocidente.
Em 1812 o
referido movimento chegou ao seu ponto extremo, Moscovo: depois, um movimento perfeitamente
simétrico com o primeiro se realiza em sentido contrário, arrastando consigo,
tal qual como da primeira vez, os povos centro-europeus. Este segundo movimento
atinge o seu ponto de origem, Paris, e apazigua-se.
Durante este período, que abrange quase vinte
anos, uma grande superfície de terra fica em pousio, casas são queimadas, o
comércio muda de direcção: milhões de indivíduos se arruinam, enriquecem,
emigram, e milhões de cristãos que professam a lei do amor do próximo matam-se
mutuamente. Que significam estes factos? Donde veio tudo isto? Quem levou esta
gente a queimar as casas e a matar os seus semelhantes? Quais as causas destes
acontecimentos? Que força obrigou os homens a agir deste modo? Eis as simples,
ingénuas e mais que legítimas perguntas que a humanidade formula quando
encontra diante de si os monumentos e as tradições deste movimento pretérito.
Para
resolver essas questões, o bom senso dirige-se à ciência histórica, cujo
objectivo é o estudo dos povos e da humanidade. Se a história ainda admitisse
as teorias dos historiadores antigos, responderia que a divindade, para
recompensar ou castigar o seu povo, deu a Napoleão o poder e dirigiu-lhe a
vontade no sentido de atingir os seus fins divinos. E a resposta seria completa
e clara. Pode crer-se ou não na missão divina de Napoleão; para aquele que
acredita, porém, tudo se torna inteligível na história desse tempo e nada há
nela que surpreenda. Mas os historiadores modernos não podem responder desta
forma. A ciência já não admite, como os antigos, a intervenção da divindade;
por isso as suas respostas têm de ser outras.
Dizem eles
então: se quereis saber o que significa este movimento, donde saiu e qual a
força que produziu esses acontecimentos, escutai: «Luís XIV era muito orgulhoso
e autoritário; tinha estas e aquelas amantes e estes e aqueles ministros e
governou mal a França. Os seus sucessores eram criaturas fracas, que por sua
vez também governaram mal. Tiveram estes favoritos e aquelas amantes. Além
disso, por esse tempo homens houve que escreveram livros. No fim do século
XVIII reuniram-se em Paris algumas dúzias de indivíduos que principiaram a
dizer que todos os homens eram iguais e livres. E isto fez que em toda a França
os homens principiassem a matar-se uns aos outros. Foram eles quem mandou matar
o rei e muito mais gente. Nessa mesma altura havia em França um homem de génio,
Napoleão. Por toda a parte saía vitorioso, quer dizer, fazia que se matasse
muita gente e isso lhe conferia o génio. Não se sabe porque carga de água foi,
inclusivamente, matar africanos e tão bem lhes tratou da pele, tão manhoso e
inteligente era, que no regresso a França submetia todo o mundo à sua vontade.
E todo o mundo lhe obedecia. Depois de se ter proclamado imperador, foi de novo
matar gente na Itália, na Áustria e na Prússia, E aqui matou mesmo muita gente.
Na Rússia vivia então o imperador Alexandre, que decidira restabelecer a ordem
na Europa, e por esse motivo travava luta com Napoleão. De súbito, porém, no
ano de, 1807, tornou-se seu amigo, embora em 1812 de novo se zangue com ele e
ambos recomecem a matar muita gente. E Napoleão levou consigo seiscentos mil
homens até à Rússia e conquistou Moscovo, fugindo, em seguida, repentinamente,
desta cidade, e foi então que o imperador Alexandre, graças aos conselhos de
Stein e de outros, soube unir a Europa e armá-la contra o perturbador da sua
tranquilidade. Todos os aliados de Napoleão se tornaram, subitamente, inimigos
seus e toda essa gente marchou contra as novas forças reunidas por ele. Os
aliados venceram Napoleão, entraram em Paris, obrigaram-no a renunciar ao trono
e mandaram-no para a ilha de Elba, sem o privarem do titulo de imperador e
dando-lhe as maiores provas de consideração, quando cinco anos antes e um ano
mais tarde o considerariam um bandoleiro fora da lei. E Luís XVIII principiou a
reinar, esse mesmo rei de quem os Franceses e os aliados até então sempre
haviam troçado. Quanto a Napoleão, depois de chorar diante da sua velha guarda,
abdicava e partia para o exílio.
Em seguida
hábeis estadistas e diplomatas, principalmente Talleyrand, que, conseguindo
sentar-se primeiro que ninguém em certa poltrona, pudera por esse meio fazer
recuar as fronteiras da França, conferenciaram em Viena, e esta conferência
tornou os povos felizes ou infelizes.
E eis que de
um momento para o outro diplomatas e monarcas principiam a guerrear-se e estão
de novo prestes a dar ordens aos seus soldados para voltarem a matar-se uns aos
outros.
É então que
Napoleão desembarca, com um batalhão de soldados, e os Franceses, mesmo os que
o odiavam, se lhe submetem todos. Os monarcas aliados zangam-se e mais uma vez
marcham para a guerra a combater os Franceses. E venceram esse génio que era
Napoleão e levaram-no para a ilha de Santa Helena, proclamando, de súbito, que
ele era um bandoleiro.
Ali, o
exilado, longe dos seus dilectos e da sua bem-amada França, morre aos poucos,
legando os seus grandes feitos à posteridade. E na Europa produziu-se uma
reacção e todos os soberanos recomeçaram a oprimir os seus povos.»
Seria erróneo pensar que estamos brincando e
que acabamos de fazer uma caricatura da história. Pelo contrário, apenas demos
uma pálida imagem das explicações absurdas e incoerentes que nos proporcionam
todos os historiadores sem excepção, desde os autores de memórias e de
histórias dos diversos povos até aqueles que escreveram histórias universais ou
tratados de um novo género acerca da evolução das civilizações.
O que há de
estranho e de cómico em semelhantes deduções resulta do facto de a história
moderna ser semelhante a um homem surdo que responde a perguntas que ninguém
lhe faz.
Se o
objectivo da história está nas descrições dos movimentos da humanidade e dos
povos, a primeira pergunta que se lhe deve fazer, e à qual deve responder, para
que tudo o mais se torne inteligível, é a seguinte: qual a força que move os
povos?
A esta
pergunta a história moderna dá-se pressa em responder dizendo-nos ou que
Napoleão era um homem de génio ou então que Luís XIV era muito orgulhoso, ou
ainda que vários escritores escreveram certos livros.
Tudo isto é muito possível e a humanidade está
pronta a aceitar que assim seja, mas não é isso que ela quer saber. Tudo isso
poderia ser interessante se admitíssemos que um poder divino, que só de si
dependesse e que fosse sempre igual a si mesmo, governasse os povos por
intermédio dos Napoleões, dos Luíses XIV ou destes ou daqueles escritores. Nós,
porém, não admitimos um poder desse género. Por isso, antes de se falar hoje de
todos estes grandes homens, é preciso mostrar as relações que existem entre
eles e o movimento dos povos. Se em lugar deste poder divino aparece uma força
nova, é preciso explicar em que consiste essa nova força, pois é ela que
confere todo o seu valor à obra da história.
Os
historiadores parecem supor que esta força se explica por si mesma e é
conhecida de todos. No entanto, apesar do desejo que se possa ter de a supormos
conhecida, o leitor de grande número de obras históricas será levado a duvidar
de que esta força, compreendida de maneira tão diferente pelos próprios
historiadores, seja, de facto, de todos conhecida.
Qual é então
a força que move os povos?
Os autores de biografias individuais e os
historiadores dos povos tornados separadamente admitem que essa força seja como
que um poder inerente aos heróis e às grandes personalidades. Segundo eles, os
acontecimentos produzem-se exclusivamente graças à vontade dos Napoleões, dos
Alexandres ou de cada uma das personagens de que a história escreve a vida. As
respostas que eles dão às perguntas formuladas são satisfatórias, mas apenas
quando consultamos um historiador para cada acontecimento.
Assim que os
historiadores das diversas nacionalidades ou de diferentes opiniões se põem a
descrever um mesmo acontecimento, as suas afirmações perdem imediatamente todo
o valor, pois a verdade é que a força em causa cada um deles a interpreta não
só de maneira diferente, mas, por vezes, de maneira absolutamente oposta. Este
sustenta que determinado acontecimento foi provocado pela força de Napoleão,
aquele pela de Alexandre e um terceiro pela de uma terceira personalidade, seja
ela qual for. Além disso, os historiadores desta categoria opõem-se uns aos
outros inclusivamente para explicarem a força sobre a qual repousa o poder de
uma só e mesma personalidade.
Thiers, que
é bonapartista, afirma que o poder de Napoleão se fundava nas suas virtudes e
no seu génio. Lanfrey, que é republicano, afirma que era baseada no
bandoleirismo e na mentira, e, assim, ao mesmo tempo que invalidam, mutuamente,
as suas asserções, destroem pela mesma razão esta noção de uma força causa de
acontecimentos, não proporcionando resposta alguma ao problema essencial da
história.
Os
historiadores da história universal, que têm de se ocupar de todos os povos,
parecem combater os pontos de vista dos historiadores da história particular no
que respeita à força que conduz os acontecimentos. Para eles esta força não é o
poder inerente aos heróis e aos potentados, mas a resultante de muitas outras
forças dirigidas em sentidos diversos. Quando descrevem uma guerra ou uma
conquista, procuram as causas dos acontecimentos não no poder de um único
indivíduo, mas nas mútuas reacções de grande número de pessoas ligadas a esses
acontecimentos.
De acordo
com esta teoria, sendo o poder das personagens históricas a resultante de
muitas forças, não poderia ser considerado, ao que parece, como uma força que
por si mesma e só por si, conduzisse os acontecimentos tendo com eles uma
relação de causa e efeito.
Ora pensam
que a personagem histórica é o produto do seu tempo e que o seu poder não é
mais que o resultado de forças diferentes, ora que o seu poder é essa mesma
força que conduz os acontecimentos.
Gervinus,
Schlosser, por exemplo, e outros, ora demonstram que Napoleão é produto da
Revolução Francesa, das ideias de 1789, etc., ora afirmam terminantemente que a
campanha de 1812 e outros acontecimentos com que não simpatizam apenas são o
resultado da vontade de Napoleão falsamente dirigida e que as ideias de 1789
foram detidas no seu desenvolvimento pela arbitrariedade do imperador.
As ideias da
Revolução Francesa e a predisposição geral dos espíritos produziram o poder de
Napoleão. E este mesmo poder abafou as ideias e essa corrente geral.
Esta estranha contradição não é acidental. Não
só se encontra a cada passo, como de uma longa série de semelhantes
contradições é feita a história escrita pelos autores de que falámos. Essa
contradição provém de que, ao entrarem na análise, os historiadores universais
se detêm a meio caminho.
Para se
encontrarem resultados iguais às forças componentes ou que fazem as suas vezes
é necessário que a soma das resultantes seja igual à das componentes. Eis uma
das condições que nunca é realizada pelos historiadores universais, pois, para
explicar a força que lhes serve de componente, devem necessariamente admitir,
além das resultantes insuficientes, uma força ainda inexplicada agindo como
componente.
O
historiador particular, ao descrever, quer a campanha de 1813, quer a
restauração dos Bourbons, afirma claramente que esses acontecimentos foram
provocados apenas pela vontade de Alexandre. Mas o historiador universal
Gervinus, para contrabalançar semelhante opinião, esforça-se por mostrar que
estes dois acontecimentos são devidos, não só a Alexandre, mas à acção de
Stein, de Metternich, de Madame de Staël, de Talleyrand, de Fichte, de
Chateaubriand e de outros. Sem dúvida, o historiador subdividiu o poder de
Alexandre nos seus componentes: Talleyrand. Chateaubriand, etc.: a soma destes
componentes, a saber, a acção mútua de Chateaubriand, de Talleyrand, de Madame
de Stael e de outros não é, evidentemente, igual à resultante ou ao que faz as
suas vezes, isto é, ao facto de, milhões de franceses se terem submetido aos
Bourbons. Do facto de Chateaubriand, Madame de Staël e outros terem trocado
entre si tais ideias resulta apenas que entre eles havia essas relações, mas
não que milhões de homens tenham obedecido a este ou àquele. E a fim de
explicar como esta submissão de tanta gente é uma consequência das relações
entre si destas personagens, ou seja, que os componentes iguais a A dão um
resultado igual a mil A, o historiador vê-se obrigado a, admitir a força do
poder que ele nega, visto que a considera apenas como o resultado de outras
forças, quer dizer, deve admitir uma força inexplicável que actua segundo a
resultante. E é o que fazem, efectivamente, os historiadores universais. E por
esse motivo não só contradizem os historiadores particulares como se
contradizem também a si mesmos.
A gente do
campo, consoante quer que chova ou faça bom tempo, como não faz ideia clara do
que se passa na atmosfera, diz que o vento dissipa as nuvens ou que o vento as
concentra. Agem da mesma maneira os historiadores universais às vezes quando
estão para aí virados, quando isso está de acordo com as suas teorias, afirmam
que o Poder é uma consequência dos acontecimentos: outras, quando têm
necessidade de provar qualquer outra coisa, sustentam que, pelo contrário, é o
Poder que os produz.
Uma terceira
categoria de historiadores, os que se consideram historiadores das
civilizações, acertando o passo pelos historiadores da história universal, que
consideram, por vezes, os escritores, senhoras mesmo, como forças conduzindo os
acontecimentos, compreendem, no entanto, essa força de maneira completamente
diferente. Encontram-na naquilo a que chamam civilização, numa actividade moral
dos povos.
Estes
historiadores são partidários decididos dos seus predecessores, os
historiadores da história universal. Com efeito, se se podem explicar os
acontecimentos históricos pelas relações que existem entre estes ou aqueles
indivíduos, porque não explicá-los pelo facto de Sicrano ou Beltrano ter
escrito este ou aquele livro?
Esses
historiadores elegem, entre os numerosos indícios que acompanham cada fenómeno
humano, aqueles que têm valor moral e sustentam que esses indícios são a causa
deles. Mas, apesar de todos os esforços neste sentido é preciso muito boa
vontade para se admitir que exista alguma coisa de comum entre a acção moral
das ideias e o movimento dos povos. Pode dizer-se mesmo que em caso nenhum é de
admitir que essa acção dirija os actos dos homens. Fenómenos tais como as
chacinas da Revolução Francesa, consequência da propagação das ideias de
igualdade, as guerras cruéis e as execuções, resultado da predicação da lei do
amor, contradizem uma tal suposição.
Admitamos mesmo que todas as dissertações
confusas e subtis que as histórias nos proporcionam são exactas. Admitamos que
os povos são conduzidos por essa força indefinível a que se chama ideia, o
problema essencial da história fica, não obstante, sem solução, ou, então, ao antigo
poder dos monarcas, à influência já admitida dos conselheiros e outras
personalidades virá justificar-se a nova força da ideia, cuja relação com as
massas se torna necessário explicar. Pode admitir-se que, tendo Napoleão o
Poder, determinado acontecimento se haja dado: pode admitir-se, com, um pouco
de boa vontade, que Napoleão tenha sido, simultaneamente com outras forças
actuantes, a causa dos acontecimentos; mas que um livro como o Contrato Social
tenha compelido os Franceses a matarem-se uns aos outros, eis o que se não pode
compreender sem se explicar a causa da relação desta força nova com o próprio
acontecimento.
Não há dúvida
de que existe uma relação entre todos os que vivem numa mesma época, e que,
portanto, pode estabelecer-se uma certa relação entre a acção intelectual dos
indivíduos e os movimentos históricos, da mesma maneira que se pode estabelecer
relação entre os movimentos da humanidade e o comércio, os misteres, a arte da
jardinagem e tudo quanto se quiser.
Mas como
pode esta actividade intelectual surgir aos olhos dos historiadores da
civilização como a causa ou a expressão de todo um movimento histórico, eis o
que é difícil compreender. Só é possível explicar essa conclusão da maneira
seguinte: em primeiro lugar, a história é obra dos sábios e por isso lhes é
natural e agradável pensar que graças a eles e aos da sua classe a humanidade
inteira se agita, como seria natural e agradável aos comerciantes, aos
agricultores, aos soldados, pensarem a mesma coisa, embora estes nada digam
porque não escrevem história; em segundo lugar, a acção moral, a actividade
espiritual, a civilização, a cultura, o poder das ideias, todas estas coisas
são noções obscuras e indeterminadas à sombra das quais é muito cómodo empregar
palavras que têm uma significação ainda menos definida e que por isso mesmo
estão aptas a servir a qualquer teoria.
Mas sem
falar já da qualidade intrínseca da história deste género, pois será útil sem
dúvida a alguém ou servirá para qualquer coisa, a história da civilização, com
que principiam a estar cada vez mais de acordo as histórias universais, é
notável pelo facto de, ao estudar detalhadamente as diferentes doutrinas
religiosas, filosóficas e políticas, tomando-as como causa dos acontecimentos,
de cada vez que tem de escrever um facto verdadeiramente histórico, como, por
exemplo, a campanha de 1812, o relata, a seu pesar, como o produto do Poder,
dizendo abertamente que a referida campanha é uma consequência da vontade de Napoleão.
E, ao falarem deste modo, os historiadores, inconscientemente, mostram-se em
contradição consigo mesmos ou admitem que esta força histórica nova que
imaginaram não dá a explicação dos fenómenos e que a única maneira de os
compreender e admitir o poder de um só que eles parecem não reconhecer.
Uma
locomotiva movimenta-se. Pergunta-se porquê.
O camponês
diz que é o Diabo que a empurra. Outro que ela se desloca porque as rodas
giram. Um terceiro afirma que a causa do movimento é o fumo que o vento leva.
Nada há a objectar ao camponês. Para isso seria preciso demonstrar-lhe que o
Diabo não existe ou que outro da sua classe lhe explicasse que não é o Diabo,
mas um alemão que a põe em marcha. Só assim, mercê da contradição, se daria
conta de que nem um nem outro tem razão. No que diz respeito ao que atribui o
movimento ao girar das rodas contradiz-se a si próprio, pois, uma vez no campo
da análise, será obrigado a avançar um pouco mais: ser-lhe-á necessário
explicar o movimento das rodas. E só terá o direito de se deter na busca dos
motivos quando tiver chegado à última causa do movimento da locomotiva, ao
vapor comprimido dentro do êmbolo. Para aquele que explica o movimento pelo
fumo que o vento leva, ao notar que a explicação pelas rodas nada explica,
lançará mão do primeiro indício que lhe apareceu para apresentá-lo como uma
causa. A única noção capaz de explicar o movimento da locomotiva é a de uma
força igual ao movimento visível. A única noção por meio da qual se pode
explicar o movimento dos povos é a de uma força igual a esse movimento geral
dos povos.
No entanto,
os diversos historiadores compreendem neste conceito forças muito diversas e em
nenhum caso iguais ao movimento verificado. Uns falam de uma força inerente aos
heróis, da mesma maneira que o camponês fala no Diabo no caso da locomotiva;
outros, de uma força que na realidade é produzida por diversas outras forças,
como aquele que invoca o movimento das rodas: outros, por fim, a influência
moral, como acontece com aquele que alude ao fumo que o vento leva.
Enquanto se não escreverem senão histórias
particulares, a dos Césares, dos Alexandres, dos Luteros ou dos Voltaires, e
não a de todos os indivíduos, sem excepção alguma, que tomaram parte num
acontecimento, não haverá possibilidade de descrever os movimentos da
humanidade sem a noção de uma força compelindo-os para um fim. E a única noção
no género que os historiadores conhecem é a do Poder. Esta noção é o único
mecanismo que permite manipular os materiais da história no seu estado actual e
aquele que o quis quebrar, como Buckle, sem nada ter para o substituir, mais(…)
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