Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira
alguma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo
com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é
mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que
se apresente para consagrar a recordação.
Esta distinção
torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a
memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No
entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um
profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a
consolação que o sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao
invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas
falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade,
conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na
velhice».
Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o
moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe, porque lhe falta o poder
da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar.
A feliz recordação do velho é, como a feliz facilidade do
moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege com seus cuidados
maternais as duas idades da vida que mais precisam de socorro, se bem que, em
certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é por isso também que a
recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de portadora dos dados
mais acidentais.
Apesar de se distinguirem por grande diferença, a recordação
e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A recordação é efectivamente
idealidade, mas, como tal, implica uma responsabilidade muito maior do que a
memória, que é indiferente ao ideal. A recordação tem por fim evitar as
soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua
passagem pela terra se efectua uno tenore, num só traço, num sopro, e
pode exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a
língua se encontra de repassar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para
reproduzir aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da
imortalidade do homem é, que a vida dele decorra uno tenore.
Não faltam, certamente, pessoas que tenham escrito as suas
memórias, nas quais o leitor não encontrará vestígio de recordação, e, no
entanto, esses homens apresentam as lembranças para com elas garantirem a
imortalidade. A recordação é, por assim dizer, uma letra comercial que o homem
saca sobre a eternidade, a qual tem a caridade de conceder o máximo crédito e
de considerar solventes todos os homens.
A bem dizer, ninguém se pode recordar senão do essencial; a
recordação do velho está submetida às circunstâncias; O essencial não é somente
condicionado por ele próprio, mas também pela sua relação com aquilo a que diz
respeito. Depois de se ter rompido com uma ideia, não se pode agir essencialmente,
e nada se pode empreender de essencial (…)
Mas coisa de que uma pessoa se recorde é coisa de que ela
não se pode esquecer; nada há que seja indiferente para a recordação, enquanto
a lembrança pode ser indiferente à memória.
A memória pertence ao imediato e é socorrida pelo imediato,
enquanto a recordação só o é pela reflexão. Por isso é que recordar é também
uma arte.
A arte da recordação
não é fácil, visto que a recordação pode diferenciar-se no próprio momento em
que se elabora, ao passo que a memória conhece somente uma flutuação entre a
exactidão e o erro de cada lembrança. Que é, por exemplo, a nostalgia? Uma
lembrança recordada. Simplesmente, a dor-da-terra resulta da distância. A arte
consistiria em sentir a mesma dor, permanecendo na terra, o que exige a
virtualidade da ilusão. (…)
Considerar-se-á talvez paradoxal o conselho, e recear-se-á
suportar a dor primeira, que é sempre preferível, como se fosse a primeira
desgraça. Mas a lembrança refresca, e assim a memória enriquece a alma com uma
soma de pormenores que dissipam a recordação.
Examinemos, por exemplo, o remorso: é a recordação de uma
culpa. Do ponto de vista psicológico, creio realmente que a polícia endurece a
criminoso porque lhe torna mais difícil o arrependimento. À força de ouvir e de
repetir o seu curriculum vitae, ele adquire uma tal, virtuosidade em dizer de
cor o seu passado que a idealidade da recordação desaparece completamente; ora,
para se arrepender realmente, é indispensável uma grande idealidade, grande e
imediata; porque a natureza também pode vir auxiliar o homem, e o
arrependimento tardio, de tão pouca importância para a memória, é muitas vezes
o mais opressivo e o mais profundo. - A faculdade de se recordar é também a
condição de toda a actividade criadora. Quando quiser deixar de produzir,
bastará que a pessoa se lembre perfeitamente da coisa que queria dar à luz sob
a influência da recordação; a actividade criatriz será então impossível, ou
causará tanto sofrimento e tanto desgosto que mais valerá a pena renunciar sem
demora a qualquer veleidade de criação.
Não existe, a bem
dizer, recordação comum. Há apenas uma espécie de pseudo comunidade à qual, se
recorre quando se pretende captar uma recordação. O melhor processo de o
suscitar consiste por vezes no seguinte: imaginar que nos confiamos a outra
pessoa, apenas para esconder atrás deste abandono fictício um novo acto de
reflexão pelo qual a recordação se manifeste. A memória, pelo contrário, admite
muito bem o concurso de uma assistência recíproca. Os festins, os aniversários,
as promessas de amor, as «leinbranças» preciosas, são então de grande oportunidade
e exercem função semelhante à das dobras nas páginas de um livro, as quais
servem para nos lembrar onde interrompemos a leitura, e por consequência nos
vão dando a certeza de lermos bem a obra inteira. Elaborar a recordação é
trabalho que cumpre a, cada qual fazer por si só. Tal necessidade está longe de
ser uma maldição. Cada recordação vale tanto como um segredo, já que a
consciência que dela se tem é intransmissível. Ainda que muitas pessoas estejam
interessadas no mesmo acontecimento que motiva a recordação no homem que dele
toma consciência, este é todavia o único a ter conhecimento da sua recordação
cujo carácter público é apenas aparente, puramente ilusório.
A contradição tem sempre por consequência a solidão.
O mundo, e tudo quanto ele encerra, nunca nos aparece
tão belo como quando avistado de um mirante que propositadamente escolhemos
para a observação. Certo é ainda também que tudo quanto o mundo diz, e tudo
quanto nos convém ouvir, ganha a melodia dos sons mais belos e mais
encantadores quando é por nós escutado dentro de um recanto secreto.
Haverá
embriaguez que valha a de quem sabe gozar o silêncio? Em vão levará o bebedor a
taça aos lábios, num gesto rápido: não conseguirá exaltar-se com a prontidão da
embriaguez do silêncio, porque esta aumenta a cada instante!
O licor capitoso que a taça oferece não é mais
do que uma gota no oceano do silêncio infinito em que afogo a minha sede!
Nada
há, porém, que tão facilmente se desfaça como a embriaguez do silêncio; uma
palavra basta para acabar com o encanto! Nenhum desgosto se compara a este, nem
o do ébrio que por súbito despertador seja arrancado ao seu sono profundo.
Quantas
vezes não meditei eu já neste pensamento! Na tumultuosa vida de sociedade, é
possível pecar por ignorância, mas esse pecado tem desculpa; não assim para
aqueles que pecam contra a solidão pacifica, porque esta é sagrada. Tudo quanto
perturbar a solidão ficará marcado com o sinal da culpa, e o casto comércio do
silêncio, uma vez ofendido, nunca mais perdoará. O solitário não aceita
quaisquer desculpas, tem mesmo o pudor de não as ouvir.
O
trabalho da recordação traz sempre consigo a sua bênção, e ainda a
possibilidade de vir a renascer em nova recordação, que, por sua vez, cativará
ainda mais. Quem alguma vez compreendeu oque é a recordação, nunca mais deixará
de ser cativo cativado; a posse de uma recordação enriquece muito mais do que a
posse do mundo inteiro; e tal como a mulher que está no seu estado
interessante, aquele que se recorda encontra-se também em circunstâncias
merecedoras de bênção.
A
reunião para o banquete efectuou-se num dos últimos dias do mês de Julho, por
volta das dez horas da noite. Esqueci já o dia e o ano; é que estes pormenores
interessam apenas à memória e não à recordação, cujo objecto é unicamente o
sentimento e o seu reino. Os vinhos generosos melhoram muito com passarem pela
linha, pela evaporação das partículas aquosas; assim também a recordação se
purifica ao perder as partículas de memória, sem que por isso se desvaneça em
fumo, como também não acontece aos vinhos generosos.
Não
há coisa mais desagradável do que uns destroços a lembrar o que a gente já
amou.
Não há nada que tanto nos repugne como saber
que algures existe um ambiente onde possa imediatamente surgir uma importuna
realidade.
Tudo
quanto é bom acontece sem demora; porque a instantaneidade é a mais divina de
todas as categorias. O instantâneo tem as honras da locução latina ex templo, porque é o ponto de que parte
o divino na vida; o que não acontece no instante é morosamente engenhado pelo
espirito maligno.
Um
banquete é já de si um empreendimento muito ingrato; por mais que a gente
empenhe o melhor do talento e do gosto na sua preparação, há ainda outra coisa
com que convém contar: o êxito. Claro está que não entendo por êxito aquele
resultado que tem em vista a dona da casa ou a hospedeira ao preparar os
manjares; não, senhores; trata-se de outra coisa de que ninguém pode
antecipadamente dar a certeza: o concerto feliz dos sentimentos, vibrando de
uníssono com as mínimas circunstâncias de festim, essas harpas eólias, essa
música interior que ninguém pode encomendar a qualquer orquestra da cidade. Por
isso é que é perigoso tomar a iniciativa de tal empreendimento; se faltar essa
harmonia, repito, se faltar essa harmonia, logo no primeiro instante, o
banquete pode ser indefinidamente prolongado que não chegará a ter êxito.
O
que de ordinário se observa nos banquetes é o encontro de convivas ou de
confrades que ali se reúnem por um hábito vazio de qualquer idealidade; a miséria
intelectual de tais reuniões não salta à vista, porque delas desaparece o
espírito crítico. Ora é esse espectáculo que devemos evitar.
A
ideia presta-se à realização sempre que as mãos dos homens são forçados a isso.
O
vinho é uma garantia da verdade, e a verdade é um elogio do vinho
Se
não há faculdade como a imaginação para atribuir beleza a todas as coisas,
também não há pior do que ela para estragar tudo, quando soa a hora da
realidade que a afronta para nossa desilusão.
Quando
se é criança, e há quem o seja por muito tempo, é-se dotado de imaginação
suficiente para estar, durante uma hora ou mais fechado num quarto escuro, à
espera de um grande acontecimento, e sempre, com a alma alerta; quando se está
adulto, a imaginação não hesita em tornar insipida, antes de a ver, a própria
árvore de Natal.
Quem,
de entre os homens que alguma vez conheceram um instante feliz, fruiu e gozou
sem sentir que subitamente poderia acontecer qualquer coisa, ou um nada, muito
capaz de perturbar a sua felicidade?
(…)
todavia desejar é por vezes mais cruel do que morrer na miséria!
A
língua parece rica na ocasião em que se encontra ao ser viço do desejo; mas é
tão indigente quando pretende descrever a realidade!...
Se
é verdade o que diz o poeta, se o amor infeliz é a morte fatal, - ah! quão
feliz me devo eu considerar neste momento, eu que nunca amei, eu que espero
morrer de morte natural, e não, graças a Deus, de amor infeliz! Quem sabe,
porém, se não será esta, precisamente a maior infelicidade? Quem me assegura
então de que não sou infeliz? Talvez,-e digo talvez porque falo do amor como o
cego fala das cores, - que o amor deva a sua importância à sua felicidade, o
que também se exprime com o dizer que o fim do amor equivale à morte do amante.
Concebo
o amor como uma experiência inteiramente intelectual, em que a vida e a morte
entram em íntima relação. Mas se o amor é redutível a uma experiência de
pensamento, então os amantes, que realmente se apaixonarem, parecer-nos-ão,
ridículos. Por outro lado, se o amor é uma experiência da realidade, tudo
quanto os amantes disserem terá que ser necessariamente confirmado no real.
Ora, chegados a este caminho, dizei-me: parece-vos que tal é o caso, parece-vos
que assim seja, apesar de tudo quanto se tem dito? Eu, por mim, vejo nisso uma
das contradições em que o amor encerra o homem; ignoro o que acontece aos
iniciados, mas para mim, repito, o amor envolve o homem na teia das
contradições mais singulares.
Nenhumas
relações entre pessoas, nenhuma relação inter-individual exige a idealidade, o
que só acontece no amor; e no entanto, observando bem., dir-se-ia que tal
idealidade nunca se encontra. Isto é já razão suficiente para que uma pessoa se
ponha de sobreaviso contra ele; receio, efectivamente, que ele me obrigue, a mim
também, a falar em vão de uma felicidade ou de uma infelicidade que realmente
nunca experimentei... Tenho, porém, de me explicar porque me convidaram a
desenvolver o tema do amor, se bem que para isso me julgue incompetente; falo
num circulo de amigos que me agrada tanto como um banquete grego; em outras
ocasiões, o amor não me dá cuidados, por que não desejo perturbar a felicidade
de qualquer outra pessoa, mas apenas viver contente com os meus próprios
pensamentos. Sim, talvez que as minhas ideias pareçam, aos olhos dos iniciados,
rugas tão inconsistentes como as teias das aranhas; talvez que aminha
ignorância resulte de eu nunca ter aprendido, nem desejado aprender, como é que
se chega a amar. É verdade que eu nunca tive a imprudência de provocar com os meus
olhares a atenção de uma mulher; preferi sempre baixar os olhos, recusar-me à
impressão de ter visto a significação daquele poder, - daquele poder à mercê do
qual não me queria abandonar.
Não será também uma história de amor a
história de quem nunca amou? Aliás, se a experiência é condição indispensável
para quem fale do seu caso singular, a inexperiência autoriza-o justamente a
falar do Eros; os pensamentos que tem estado a exprimir valem para todo o sexo,
valem para toda a humanidade, quando apresentados em termos gerais.
(…)
Que engraçado! Entre os nossos camponeses não é homem quem não, gosta de fumar cachimbo;
entre a gente masculina não é homem quem nunca experimentou o amor.
Para
mim o essencial é e continua a ser a ideia. Terá o amor, entre todas as coisas
do mundo, o privilégio de não se poder falar nele antes de o conhecer? Nesse
caso, que me aconteceria, se eu, amante, só muito tarde tivesse conhecimento
dessa particularidade? Eis porque julgo bom reflectir previamente no amor. Certamente que os amantes
dizem também que já nisso tinham pensado, mas vá lá saber-se! É que eles partem
do pressuposto de que amar faz parte da essência do homem, mas isso não é
reflectir sobre o amor, isso é admiti-lo por hipótese, enquanto se não encontra
a confirmação.
Sempre
que me aplico a pensar no amor, não alcanço mais do que contradição. Parece-me
às vezes que algo me escapa; o quê, isso é que não sei dizer; mas a reflexão é
capaz de me mostrar imediatamente as contradições. É por isso que o meu
conceito do Eros implica a maior contradição cómica, além do mais. Uma coisa
não vai sem a outra: o cómico depende sempre da categoria da contradição. Não
me cumpre agora desenvolver esse tema; o meu propósito é apenas o de mostrar
que o amor é cómico. Entendo, pois, por amor a relação que há entre o homem e a
mulher dentro das respectivas condições.
O que eu digo, a propósito da
relação do homem com a mulher, é que o amor é cómico,
cómico aos olhos de terceira pessoa, e mais não digo. Se é essa a razão pela
qual os amantes sempre detestam a terceira pessoa, ignoro; ora, não posso amar
porque a minha reflexão intervém sempre como terceira pessoa, dentro de mim
próprio.
Antes
de mais, devo dizer-vos o que me parece cómico: isto é, que todos os homens
amem, e queiram amar, quando até agora não foi possível elucidar em que
consiste o amável, o verdadeiro objecto do amor. Deixo de parte a palavra
«amar» que por si nada explica; para bem tratar este assunto, a primeira
questão é a de saber o que é a coisa amada. Não há outra resposta possível,
senão esta: quem ama, ama o amável. Com efeito, se professarmos com Platão a
doutrina de que devemos amar o bem, então teremos percorrido, com um só passo
gigantesco, todo o domínio da erótica.
Condescenderemos
então em dizer que quem ama eleve amar o belo? Nesse caso, perguntarei, se amar
uma bela paisagem ou uma pintura magnífica é que é verdadeiramente amar; mas
obterei logo a resposta de que a erótica não cabe como espécie num género cuja
expressão seria a do amor, porque a erótica constitui já de per si uma completa
especialidade.
Vou
dar um exemplo. Se um amante, para exprimir bem todo o amor que o domina, fosse
dizer: «amo, as belas paisagens, amo um belo dançarino e um belo cavalo, amo a
minha Lalage, enfim, amo tudo quanto é belo», Lalage mesmo que fosse bela,
mesmo que não tivesse outras razões de se queixar, não gostaria com certeza do
elogio do amante; mas imaginai também que ela era feia -era feia e era amada!
Se
eu aplicar à erótica a distinção de Aristófanes, que dizia terem os deuses
dividido o ente humano em duas partes, como as patruças, para explicar a razão
por que os dois fragmentos procuram reunir-se, volto a cair numa dificuldade
que não posso esclarecer; no entanto, posso invocar o meu autor, que vai mais
além, já que não há razão que detenha o pensamento, posso admitir que os
deuses, para melhor divertimento, poderiam ter dividido em três partes o ente
humano. Sim, para maior gáudio dos deuses. Não é verdadeira a minha tese de que
o amor torna o homem ridículo, senão aos olhos dos semelhantes, pelo menos aos
olhos dos deuses? Admitamos, porém, que a erótica tenha por objecto do seu
poderio a mútua relação dos elementos masculino e feminino. Que acontecerá
então? Se o amante disser à sua Lalage: «amo--te porque és mulher; poderia amar
muito bem outra mulher qualquer, por exemplo a feia Zoé», logo a bela Lalage se
sentirá ofendida. Que é então o amável?
É o que eu pergunto, mas a fatalidade quis que
nunca pessoa alguma tivesse respondido satisfatoriamente a esta questão. Cada
amante está convencido de que o sabe, pelo menos no que lhe diz respeito, sem
que possa explicar-se muito bem; e quando a gente escuta as conversas de alguns
dos seus pares, percebe que nem sequer há dois que estejam plenamente de
acordo, se bem que estejam todos a falar do mesmo. Não vou agora deter-me
nessas explicações de rematada tolice que vos deixam, afinal de contas, a saber
o mesmo que dantes. Não ligo importância alguma aos dislates dos que acabam por
indicar os delicados pezinhos da bem-amada ou os soberbos bigodes de um janota
por verdadeiro objecto do amor; desprezo o descritivo, ainda que o amante se
exprima em estilo elevado, enumere primeiro diversas particularidades,
acrescente a seguir toda a «amabilidade» do ente amado, e, para remate, faça
alusão a «um não sei quê de inexprimível». Será essa uma maneira de falar que
deve ser do especial agrado de Lalage; não me agrada, porém, a mim, porque não
compreendo nem uma palavra; pelo contrário, em tudo isso descubro uma dupla
contradição: a primeira é a de concluir pelo inexplicável a segunda é a de chegar a uma conclusão;
melhor
seria ter começado por postular o inexplicável, e conservá-lo firmemente; ao
menos evitam-se as suspeitas. Tomar o inexplicável por ponto de partida, não é
acto que prove impotência de razão, porque dá pelo menos uma explicação
negativa; mas começar de outro modo, para ter de acabar no inexplicável, isso é
que é dar de si próprio uma grande prova de incapacidade.
Temos,
pois, que ao amor corresponde o amável,
e que este é inexplicável. Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar
razão; assim também é que de maneira incompreensível o amor se apodera da sua
presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e morressem
subitamente, ou entrassem em convulsões violentas mas inexplicáveis, quem é que
não sofreria a angústia? No entanto, é
assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por
isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a
suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal porque o
trágico e o cómico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um
homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis,
falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito
singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão
equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra»,
compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que
a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que
tal acto de diferenciação deve provir de motivos profundos. Sim, deve
necessariamente implicar uma dialéctica de razões, e quem não as quisesse ouvir
ou não as quisesse expor, ganharia mais em desculpar-se com a inoportuna
extensão do discurso do que em alegar a falência total de explicações. Ora a
verdade é que o amante não pode explicar nada, não sabe explicar nada. Viu
centenas de mulheres; deixou talvez passar muitos anos sem experimentar o amor;
e um dia, de repente, vê a mulher, a
única, a Catarina. Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão grande força que
há-de transformar e embelezar uma vida inteira - o amor -nem sequer seja como o
grão de mostarda donde deverá surgir uma grande árvore, que seja menos do que
isso, que, em última análise, se reduza a um quase nada. Sim, é cómico que do
amor não se possa apresentar um só critério prévio, por exemplo a idade em que
se produz este fenómeno, que da escolha
da única mulher no mundo não se possa dar a mínima razão, que se haja
escrito que «Adão não elegeu Eva, porque não teve possibilidade de a distinguir
entre as mulheres». Não será igualmente
cómica a explicação apresentada pelos amantes? Ou melhor, essa explicação não
servirá para acentuar ainda mais o aspecto cómico? Os amantes dizem que o amor
os cega, e depois de dizerem isso é que tentam iluminar o fenómeno.
Se
um homem entrasse numa câmara escura para ir lá buscar um objecto qualquer, e
se respondesse «não vale a pena, a coisa não tem importância», a quem lhe
dissesse que procuraria melhor se levasse consigo uma luz, eu compreenderia
muito bem a atitude desse homem. Mas se esse mesmo homem me chamasse à parte
para em grande mistério me confiar que ia buscar uma coisa importantíssima, e
que por isso mesmo tinha de a procurar às cegas-como poderia a minha pobre
cabeça de mortal seguir a subtileza de tão desconcertante linguagem!
Evidentemente que não lhe riria na cara, para não o ofender; mas, assim que ele
voltasse as costas, não poderia mais conter a vontade de rir.
Já
espero que ninguém se ria comigo do amor, se bem que ele seja muito cómico.
Receio cair no mesmo embaraço que o judeu da anedota: «mas então não consegui
fazer rir as pessoas ?» - perguntou ele, depois de ter escrito o livro. No
entanto não, me esqueci, como ele, dos condimentos picantes. Se me entrego à
hilaridade, estou muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém esses
loucos, persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificado que
podem de bom grado mofar dos outros amantes; pois, uma vez que o amor se furta a toda e qualquer explicação, todos os
amantes se tornam igualmente ridículos. Vejo a mesma estultícia e a mesma
soberba no homem que passeia o seu olhar arrogante num circulo de donzelas para
ver se encontra a pérola digna da sua eleição, como vejo também a mesma estultícia
e mesma soberba na mulher ainda nova que meneia a cabeça com
desdém; ambos estão completamente entregues a pensamentos finitos que dependem
de uma hipótese inexplicável. Não; o que me preocupa é o amor como tal; é o
amor que eu acho ridículo; e é essa a razão porque sou tímido, receio tornar-me
ridículo, pelo menos perante os olhares dos deuses que assim fizeram o homem.
Se o amor é ridículo, tanto faz que eu me apaixone por uma princesa como por
uma camareira; se o amor não é ridículo, nenhum mal haverá em amar mulher de
baixa condição, porque o amável é o inexplicável. Eis a razão porque evito o
amor; mas nisto mesmo vejo uma prova de comicidade; o meu receio assume,
efectivamente, carácter trágico, carácter tanto mais acentuado quanto mais se
ilumina o aspecto cómico. Quando um muro está para demolição, há sempre um
cartaz que me avisa, e eu passo de largo; quando uma porta é pintada de novo há
um sinal que disso nos adverte, e eu evito de lhe pôr as mãos; quando um
cocheiro vai para atropelar alguém, grita imediatamente «atenção!»; quando
grassa uma epidemia de cólera, há sempre uma sentinela diante dos lugares
contagiosos, ete.; quero dizer que há sempre maneira de dar a advertência
contra a ameaça de um perigo; quem proceder em conformidade com os avisos
poderá certamente evitá-lo.
Eu, se receio que o amor me
torna ridículo, assim penso porque o considero como um perigo;
que hei-de eu fazer para o evitar?, ou para me subtrair à influência de uma
mulher que se interesse por mim? Estou longe de me julgar um Adónis, predilecto
das adolescentes; e que os deuses me preservem de tal! Mas já que ignoro em que
consiste o amável, também não posso saber o comportamento a seguir para evitar
esse perigo. Mas, além disso, como o contrário de um Adónis também pode ser
amável, e como o inexplicável é o amável, encontro-me na mesma situação que aquele
homem de que nos fala João-Paulo: com um pé no ar lê um cartaz: «atenção às
ratoeiras», e não sabe se há-de levantar o outro pé, ou se há-de continuar a
andar.
Estou
decidido a não me deixar apaixonar por mulher alguma enquanto não estudar a
fundo a noção do amor; se nunca o conseguir, terei pelo menos ganho este
resultado, o de ter visto que ele é cómico; por isso me recuso a amar.
Infelizmente, porém, o perigo não está afastado, visto que ignoro em que é que
posso ser excitado por ele, ou qual é a minha amabilidade que pode interessar a
uma mulher; é isto, não posso saber com certeza se evitei ou não o perigo. Eis
o lado trágico do amor, e em certo sentido profundamente trágico, se bem que
ninguém faça caso dele ou não se preocupe com a amarga contradição que um
pensador descobre ao verificar que há algo cujo poderio se exerce por toda a
parte, se bem que seja inconcebível, ameaçando talvez até surpreender de
improviso quem se esforça em vão por analisá-lo.
Mas o trágico desta situação tem a sua razão
profunda no cómico que já revelei. É possível que se voltem contra mim todos os
meus argumentos, e, sem ver o cómico onde eu o descubro, o vão apontar ali onde
descubro o trágico; mas isso mesmo prova, até certo ponto, que estou no caminho
da verdade; e a razão pela qual posso vir a ser uma vítima trágica ou cómica,
se alguma vez o chegar a ser, fica pelo menos manifesta: essa razão está na vontade
de submeter à reflexão todas as minhas acções, e está também na recusa a
deixar-me lograr pela ilusão de que reflicto, sobre a vida, quando, a respeito
de uma decisão de tão magna importância, apenas digo de mim para mim:
«resigna-te».
O
homem é um composto de corpo e alma; todas as pessoas de ciência e todas as
pessoas de bem estão de acordo neste ponto. Se fizermos, pois, residir a
potência virtual do amor na relação mútua dos elementos masculinos e femininos,
volta o cómico a revelar-se numa estranha subversão em que se vê o que a alma
tem de mais sublime exprimir-se no sensível mais grosseiro. Estou a pensar em
todas essas mímicas, extremamente curiosas, do amor, nesses sinais misteriosos,
enfim, nessa linguagem de sociedade secreta que provém do inexplicável
primordial. A contradição em que o amor encerra o homem é tal que o símbolo não
significa nada, ou, o que vem a dar exactamente na mesma, tal que ninguém pode
dele ministrar qualquer explicação.
Duas almas interessadas uma
pela outra dão-se mútua garantia de que se hão-de amar para sempre; depois
abraçam-se e selam solenemente com um beijo esse pacto eterno. Pergunto a
qualquer homem capaz de reflexão se isso pode ser. Tais são as perpétuas alternativas
do amor.
A mais alta espiritualidade exprime-se pelo
seu extremo oposto, e é o sensível que pretende caracterizar a nobreza da alma.
Suponhamos agora que eu estava interessado, interessado no amor, é claro: seria
para mim muito interessante que a minha bem-amada quisesse pertencer-me por
toda a eternidade. Será muito compreensível, se falarmos aqui da erótica no
sentido grego, quer dizer, do amor das almas belas. Assim que a minha bem-amada
me desse a certeza, eu acreditaria, ou, se me ficasse qualquer dúvida, faria o
possível por me convencer. Mas que acontece de facto? Se eu estivesse
interessado, faria como os outros, procuraria outra certeza além da fé na minha
bem-amada, quando, evidentemente, nenhuma outra prova me parece adequada.
Quando
um papagaio no seu poleiro se meneia todo envaidecido para dizer a frase «Ai,
Mariana!», como no teatro, toda a gente ri, e eu também. Talvez que os espectadores
julguem que neste caso o cómico reside na relação de Mariana com o papagaio,
que não pode ter amor algum por ela; mas supondo que havia amor: não seria
ridículo? Parece-me que tanto num caso como no outro.O cómico provém então de
que o amor se tornou comensurável, e por isso tem de ser comensurável com esta
expressão. Pouco importa que se ascenda à origem do mundo para justificar os
usos e os costumes; o cómico terá força
de eternidade sempre que assente numa contradição, e nós estamos sem dúvida
na presença de uma contradição. Um fantoche nada tem de especificamente cómico;
não há contradição nos movimentos descontínuos que executa, porque bem sabemos
que são produzidos pelos arranques de um cordel. Mas estar um fantoche ao
serviço de algo inexplicável, eis o que é o cómico, e a contradição provém de
que não se vê razão suficiente para que ele sofra puxões ora para a direita,
ora para a esquerda.
Sempre
que não posso compreender o que faço, recuso-me a continuar; quando não posso
compreender o poder à discrição do qual me sinto entregue, recuso-me a
continuar à sua mercê. E se o amor é uma lei misteriosa que concilia os contrários,
quem me garante que dentro dele não possa subitamente surgir a confusão? No
entanto, pouco me importo com isso. Ouvi muitas vezes dizer que certos amantes
acham ridículas as maneiras de outros amantes. Não vejo que tenha sentido algum
esse modo de troçar, porque, se a lei do amor for uma lei natural, terá que ser
igual para todos os amantes, e se for uma lei do domínio da liberdade, será
então indispensável que os trocistas conheçam as razões do seu procedimento,
que estejam em condições de tudo explicar, o que efectivamente lhes é vedado.
Compreendo muito melhor do que
a maior parte da gente a razão por que um amante se pode rir de outro: o outro
é sempre divertido, o mesmo é que não é. Se é ridículo beijar
uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa
maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não
vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém
ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na
impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um
alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao
outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também
convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento.
Que
um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte
a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão,
e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: não sei;
apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito
bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes
pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em
tais actos consistia a sua maior felicidade, como é que eu poderia impedir-me
de ver o ridículo de tal explicação-tal como o exemplo que há pouco dei; e bem
que diferente, é certo-, enquanto tal homem não se resolvesse a pôr termo à
minha hilaridade, confessando que esses gestos não tinham significaçã o alguma.
Num repente, com efeito, a contradição, que é a base do cómico, desaparece;
porque não há nada ridículo em que uma coisa destituída de sentido seja
reconhecida como tal, mas é grotesco atribuir-lhe um alcance universal.
Em
relação ao involuntário, a contradição reaparece: não é possível admitir o
involuntário num ente racional e livre. Suponhamos agora que ao Papa, no momento
de coroar Napoleão, lhe dava vontade de tossir ou que uns noivos no momento
solene da bênção nupcial, começavam a espirrar: o cómico surgiria instantaneamente.
Quanto mais a circunstância sublinhar o carácter livre do ente racional, tanto
mais o involuntário se presta ao riso.
O
mesmo acontece no domínio da erótica, com respeito a essas gesticulações
certamente cómicas, quando se pretende resolver a contradição que elas
denunciam atribuindo-lhes uma significação absoluta.
É
sabido que as crianças possuem em alto grau o sentido agudo do cómico;
podemo-nos reportar ao que elas dizem a tal respeito. Em geral, costumam rir
dos amantes; e se conseguirmos que elas nos narrem o que viram, não poderemos,
com certeza, impedir-nos de rir. Talvez o nosso riso resulte de elas omitirem a
malícia da situação. É curioso. Quando o judeu assim escrevia, ninguém tinha
vontade de rir; aqui, dá-se o contrário; porque falta o espírito de malícia,
toda a gente se entrega à hilaridade; mas já que ninguém pode dizer onde está o
picante, é certo e necessário que esteja ausente. Os amantes não se explicam, e
os panegiristas do amor também não; não pensam senão em dizer, como está
prescrito na lei real, coisas amáveis e cheias de agrado.
Mas
o pensador, esse, procede ao exame das categorias, e aquele que medita sobre o amor
deverá igualmente analisar as categorias que ele suporte. Todavia, em relação
ao amor julgam-se dispensados desta investigação, e por isso continuamos com
falta de uma do género pastoral; pois, se numa pastoral um poeta se esforça por
descrever o amor tal-qual é, a sua tentativa fica inteiramente adulterada pela
intervenção de uma personagem de contrabando, graças à qual os amantes aprendem
a arte de amar.
No
domínio da erótica, encontrei pois o cómico que se descobre nas inversões pelas
quais o mais nobre elemento de uma esfera não encontra a sua expressão na mesma
esfera, mas no contrário absoluto de outra esfera. É cómico ver o sublime impulso do amor (esta vontade de duas pessoas mutuamente
se pertencerem para a eternidade) acabar sempre como o xarope na despensa; mas
ainda mais cómico é que esta conclusão queira dizer a suprema expressão do
amor. «Onde houver contradição, sempre o cómico poderá aparecer; tal é o
princípio que me serve de fio condutor.
Estou
a falar como se tivesse um véu diante dos olhos, porque, quando me encontro na
presença de enigmas, e só de enigmas, já nada posso distinguir, ou antes, perco
todo o discernimento. Que é, verdadeiramente, uma consequência? Se ela não
estiver relacionada, de uma ou outra maneira, com a antecedência, será ridícula
ao pretender passar pelo que não é.
Imaginai
um homem que quer tomar banho; cai na banheira e mergulha na água; já atordoado
levanta-se, julga que está agarrado à corda na praia, engana-se, dá um puxão e
logo o duche incide sobre ele de maneira necessária e rigorosa; a consequência
está perfeitamente justificada pela antecedência. O cómico
reside no engano; em cair o duche depois de puxar pelo cordão, não há nada
ridículo; pelo contrário, ridículo seria que tal não acontecesse, como (para
verificar a exatidão da minha tese sobre a contradição) se este amador de
banhos, reunindo os seus espíritos e preparando-se a suportar valentemente o
arrepio do duche, puxasse energicamente, puxasse- e sobre ele não caísse pinga
de água.
Passemos
agora para o nosso tema, para o amor. Os amantes querem pertencer um ao outro,
e para toda a eternidade. Exprimem-se de maneira assaz curiosa quando se
abraçam num instante de profunda intimidade para gozarem assim do máximo prazer
e da mais alta felicidade que o amor lhes pode dar. Mas o prazer é egoísta. Não
há dúvida que do prazer dos amantes não se pode dizer que seja egoísta, porque
é recíproco; mas o prazer que ambos sentem na união é absolutamente egoísta, se
for verdade que nesse abraço já se confundem num só e mesmo ser. Mas estão
enganados; porque, no mesmo instante, a espécie triunfa sobre os indivíduos;
domina-os, rebaixa-os ao seu serviço. Julgo isto muito mais ridículo do que a
situação considerada cómica por Aristófanes. Porque o cómico desta bipartição
reside em ser contraditória, o que Aristófanes não salientou suficientemente.
Quem vê
um homem, crê ver um ser inteiro e independente, um indivíduo, o que
toda a gente admite até que observe que, apoderado pelo amor, ele não passa de
uma metade que corre à procura da outra metade.
Nada
há que seja cómico na metade de uma maçã; cómico seria tomar por maçã inteira a
metade de uma maçã; não há contradição no primeiro casa, há apenas no segundo.
Se tomarmos a sério o dito de que a mulher é a
metade do ser humano, a mulher não nos parecerá cómica na estranha situação do
amor. O homem., pelo contrário, que goza de consideração social
porque é um ser completo, torna-se cómico quando de repente se deita a correr
em busca da mulher e prova assim que não deixara de ser apenas metade do ser
humano.
Quanto
mais reflectirmas tanto mais nos parecerá divertida a situação; porque se o
homem é realmente um todo, na situação de amante deixa de o ser, ou então forma
com a mulher muito mais do que uma unidade. Não estranhemos pois que os deuses
se divirtam, e que principalmente se divirtam à custa do homem.
Quando
os amantes, como dois pombinhos, voam pelos céus em núpcias deliciosas, podemos
acreditar que eles querem unir-se, ser uma só unidade, já que dizem querer viver
um para o outro pelos tempos sem fim. Mas -é curioso-, em lugar de viverem um
para o outro, vivem, sem que disso suspeitem, apenas para a espécie. - Que é
uma consequência? Se, quando surge, não a podemos relacionar com a
antecedência, parece-nos então uma facécia, e as pessoas a quem tal acontece
tornam-se muito ridículas.
Quando duas metades, que estavam separadas,
finalmente se juntam, parece que nisso encontram satisfação e motivo de
repouso; assim não é, porém, no amor, do qual resulta a agitação para uma vida
nova. Compreender-se-ia, que do encontro resultasse para os amantes uma vida
nova; não se compreende tão bem que resulte urna vida nova para outro ser. E,
no entanto, esta resultante é uma consequência muito mais lata do que a
antecedência; mas a explicação que se costuma apresentar exige necessariamente
que o encontro final dos amantes marque a impossibilidade de qualquer
consequência ulterior. Haverá outro prazer que ofereça analogia com este caso?
Não há. A satisfação do prazer significa
sempre um relaxe, e ainda que lhe sobrevenha uma tristitia mostrando o cómico implícito em todo o prazer, tal
tristeza será uma simples consequência, mas nenhuma tristeza prova tão
fortemente um cómico precedente como a tristeza que aparece no fim do amor. Em compensação,
muito diferente é a consequência inaudita de que falo, aquela que ninguém sabe
de onde procede, nem se é real, mas que, quando se produz, é apresentada a
título de consequência.
Quem
será capaz de conceber e conciliar tudo isto? No entanto o que aos olhos dos
iniciados constitui o supremo prazer do amor é ao mesmo tempo coisa mais
importante; tão importante que os amantes passam a ter nomes diferentes, nomes
que resultam dessa consequência que recebe assim - coisa curiosa!-, a virtude
de retroacção! O amante agora chama-se pai, a amante chama-se mãe, e não há
agora para eles nomes mais belos! Mas há também outro ser para o qual esses
nomes são ainda mais belos. Na verdade, que há de mais belo do que a piedade
filial? A mim parece-me o mais belo de todos os sentimentos, com a vantagem,
que é para mim uma felicidade, de neste caso compreender a respectiva noção.
Os
homens ensinam que convém que os filhos amem os pais. Isso compreendo eu muito
bem: nisso não vejo contradição alguma; também eu próprio me sinto ligado pelos
laços ternos de piedade filial. Creio
que o maior benefício de que estamos gozando é devido à vida que outro homem
nos deu; creio que não há cálculo algum que possa avaliar o montante da dívida
e, muito menos, que possa pagá-la; concordo com Cícero em que nunca o filho
tem razão contra o pai; é a piedade que me ensina a abster-me de penetrar no
íntimo segredo de meu pai, e que me obriga a espreitá-lo para o deixar intacto.
Com
certeza, sinto-me feliz por ser o maior devedor de um homem; mas inversamente,
antes de me resolver a fazer de outro homem o meu maior devedor, quero ser
perfeitamente claro para comigo mesmo; porque, para mim, não há comparação
possível entre o facto de ser assim devedor e o de se tornar por sua vez credor
de um ser que nunca poderá, por toda a eternidade, pagar essa divida. A piedade
não permite que o filho pense naquilo em que o amor obriga o pai a pensar. Eis
que reaparece a contradição. Se o filho é um ente eterno, como o pai, que
significa então ser pai? Tenho que sorrir de mim próprio ao pensar-me na
categoria de pai, tenho que me comover profundamente ao pensar-me na categoria
de filho, na relação com meu pai. Compreendo muito bem a bela frase de Platão,
segundo a qual o animal dá origem a outro animal da mesma espécie, uma planta a
uma planta semelhante, e assim também o homem; mas, dessa feita, nada fica
explicado, o pensamento não fica satisfeito, mas pelo contrário, um sentimento
obscuro começa a despertar. É que a procriação não pode afectar um ente eterno.
Quando, pois, o pai considera o filho no seu ente eternal, e isto é o que está
em questão, ele tem que sorrir de si próprio, pois reconhece que de maneira
nenhuma pode conter essa plenitude de beleza e de riqueza espiritual que
provoca a piedade e justifica o contentamento do filho que procriou. Além
disso, se considerar o filho segundo a sua natureza sensível, deverá sorrir
também, porque o termo de paternidade ultrapassa em muito o significado do
valor desta relação.
Enfim,
se pudéssemos admitir que o pai exerce uma influência sobre o filho, no sentido
de que o seu ser seja um dado de que o ser do filho não se pode libertar, a
contradição reaparece por outro lado; porque este pensamento é terrível, porque
então não haverá na terra nada que seja mais para temer do que a paternidade.
Não há comparação sequer entre o acto de abater um homem com um golpe mortal e
o acto de chamar à vida um novo ser; é que o primeiro tem apenas o efeito de
apressar o tempo, o segundo decide de um destino para toda a eternidade. A
contradição presta-se ao riso e às lágrimas, como no teatro. Será, pois, a
paternidade uma ficção embora em sentido diferente do que diz a personagem
Madelon, à personagem Jerónimo na peça Erasmus
Montanus ou será uma realidade, e nesse caso, uma terrível verdade? Será o
maior benefício altruísta ou o supremo gozo egoísta? Será um efeito acidental e
contingente, ou será a missão suprema e necessária?
Estais agora a ver, meus caros
amigos, as razões por que renunciei ao amor. As minhas razões são tudo para
mim; o meu pensamento é tudo para mim. Se o amor é o mais delicioso de todos os
prazeres, recuso-o; recuso-o sem pretender com isso ofender ou desdenhar
alguém. Se o amor é a condição do maior benefício, perco a oportunidade de
bem-fazer, mas salvaguardo o meu pensamento. Não é que eu esteja cego para a
beleza, não é que eu esteja surdo para as harmonias e as melodias. Não. O meu
coração não é insensível ao cantar dos poetas que gosto de ler, a minha alma
não é destituída de melancolia e não deixa de sonhar com as belas imagens do
amor. A verdade é que não quero ser infiel ao meu pensamento, pois, se o fosse,
que lucraria com isso? Quanto a mim, não sinto felicidade quando não sinto o
meu pensamento livre; nem quando tivesse de interromper os meus pensamentos
para me ligar a uma mulher, para gozar as maiores delícias; porque a ideia é
para mim o meu ser eterno, e, por isso, mais preciosa ainda do que um pai ou de
que uma mãe, mais preciosa ainda do que uma esposa.
Bem vejo que se algo deve ser
sagrado, é o amor; que se a infidelidade é algures infame é no amor; que se
alguma traição é ignóbil, é no amor; mas a minha alma é
pura, nunca olhei mulher alguma que a cobiçasse; nunca andei como borboleta em
inconstantes voos até que, cego ou empurrado pela vertigem, fosse cair na mais
decisiva das situações. Se eu soubesse em que é que consiste o amável, saberia
também com exactidão se estarei ou não isento de culpa por ter induzido alguém
em tentação; mas como ignoro o que é o amável, posso apenas ter a convicção de
que conscientemente, nunca tal fiz nem quis fazer.
Suponde
agora que eu tivesse capitulado, que me tivesse resolvido a rir ou que
sucumbisse de medo, o que talvez fosse possível. Sim, eu não sou capaz de
encontrar a via estreita pela qual os amantes tão facilmente seguem como se
fosse larga, imperturbáveis em todas as vicissitudes(…). Mas, que dizia eu?
Suponde que eu tivesse sucumbido. Não teria eu então, irremediavelmente, ofendido
a minha bem amada com o meu riso, ou não teria eu, pela minha retirada, causado
para sempre o desespero dela?
Quanto à mulher, vejo bem que ela
não pode chegar a tão alto grau de reflexão; aquela que julgasse
cómico o amor (usurpando assim o privilégio dos deuses e dos homens; porque é
ela, mulher, por natureza a tentação que os incita a tornarem-se ridículos)
trairia por isso inquietadores conhecimentos prévios, e seria portanto a pessoa
menos apta para me compreender; aquela que concebesse o meu receio teria por
isso perdido a amabilidade que era o seu encanto, sem que por isso ficasse apta
para compreender; de um ou de outro modo, a mulher seria aniquilada, o que eu
não sou nem serei enquanto tiver o meu pensamento para a minha salvação.
Não
há agora ninguém que ria do meu discurso? Quando comecei por dizer que ia falar
do cómico no amor, esperáveis talvez rir, propensos que sois para a galhofa,
como eu também, que aprecio o bom humor; no entanto, nenhum de vós se deixou
cair na hilaridade. O efeito das minhas palavras não foi aquele por que
esperáveis; mas isso mesmo é que é a prova de que estive a falar do cómico. Se
não há entre vós quem seja capaz de rir do meu discurso, haja ao menos quem ria
de mim. Ride, meus caros amigos, que com isso não me dareis surpresa; também eu
não compreendi nunca as afirmações que muitas vezes vos tinha ouvido fazer a
respeito do amor: é que vós sois, ao que parece, o que eu não sou; vós sois uns
iniciados! ...
É da mulher que vos quero falar. Também eu
examinei, perscrutei e penetrei a sua categoria; também eu procurei e encontrei,
porque fiz um descobrimento sem igual, que vos passo a dizer. Ninguém chegará a compreender a mulher se
não a julgar na categoria de facécia. Compete ao homem ser e actuar
absolutamente, exprimir o absoluto; a mulher está na zona do relativo. Entre
dois seres tão diferentes, não há que esperar verdadeira inter-acção. Tal
desproporção é que constitui exactamente a facécia, que entrou no mundo com a
mulher. É evidente, porém, que o homem terá de saber permanecer no absoluto,
senão, tudo se altera, quero dizer, tudo cai no que há de mais banal e de mais
comum: um par muito bem equilibrado, onde o homem e a mulher não estão por
inteiro, onde são duas metades de um casal.
«A facécia não pertence à ordem da estética; é
uma categoria moral abortada. Actua sobre o pensamento como sobre o ouvinte
actuaria o discurso de um homem que começasse em tom solene, dissesse duas ou
três frases entre virgulas, pigarreasse mais ou menos reticente, e por fim se
calasse. Assim é a mulher. Aplica-se-lhe a categoria moral, fecha-se os olhos,
pensa-se nas exigências morais do absoluto, pensa-se no ser humano, abrem-se os
olhos, fixa-se o olhar sobre a donzela pudica, observa-se se ela corresponde às
exigências; tem-se um instante de ansiedade, e díz-se por fim: «Que facécia!
Isto que eu pensava não era mais do que uma facécia!» A facécia consiste,
efectivamente, em aplicar uma categoria que não convém, e a julgar a mulher por
essa categoria. Com a mulher, o sério
nunca pode ser a sério, o que é propriamente a facécia; isto porque se
pretendêssemos que a mulher tomasse o sério a sério, teríamos uma sensaboria.
Se
colocardes a mulher debaixo da máquina pneumática para evaporá-la, procedereis
mal e a operação nunca será divertida; mas se lhe insuflardes ar suficiente
para que ela adquira proporções sobrenaturais, até atingir a idealidade toda de
que uma donzela de dezasseis anos se imagine capaz, então haveis de ter o
prólogo de uma representação altamente recreativa. (…)
porque a idealidade da mulher é totalmente ilusão.
A mulher causar-nos-á um mal irreparável se não a
encararmos por este prisma; mas graças à minha teoria, ela será para nós
inofensiva e agradável. Não há nada mais terrível para o homem do que cair no
fantasiar destruidor da verdadeira idealidade. Cada qual pode arrepender-se de
ter sido um impostor, de ter falado muito sem pensar a sério numa só palavra do
que disse; mas fazer castelos no ar, acreditar no que se está a fingir, e
depois reconhecer a estupidez, isso seria caso para um homem se enjoar até do
seu próprio remorso. A mulher não seria capaz de fazer isso. A Natureza deu-lhe o privilégio de passar
por metamorfoses em menos de vinte e quatro horas, graças à lengalenga mais
inocente e mais desculpável; porque, na sinceridade da sua alma, está muito
longe de querer enganar quem quer que seja; é que ela pensa tudo quanto diz,
mas com a mesma adorável boa-fé diz o contrário, porque está sempre pronta a
morrer até por novas opiniões.
0 homem que se entregue ao amor, porque o
considere assunto sério, poderá gabar-se de ter realizado um bom seguro, se por
acaso lhe for dado um bom contrato para assinar; pois, com matéria tão
inflamável como é a mulher, há sempre sério risco para a empresa seguradora.
Mas que faz o nosso homem? Identifica-se com ela; e se, em dia de festa, como
aquele em que se queimam foguetes, ela se inflamar um pouco mais, arrisca-se
ele a ser envolvido também por ela numa grande explosão. Ou pelo menos
experimentará a iminência do perigo, se tiver a sorte de evitar a conflagração.
A tudo esse homem se arrisca, tudo pode com a sua temeridade perder; porque o
absoluto só tem um contrário absoluto: o fantástico absoluto. Não vá ele então
procurar refúgio no convívio com pessoas corrompidas, porque não está perdido
moralmente, longe disso; foi apenas reconduzido in absurdum, foi repelido para a felicidade do aranzel;
transformou-se num bufão.
Na relação de homem para homem tal caso nunca
pode acontecer. Se eu vir um homem dissolver o seu carácter entre fumaças de
estultícia talvez o despreze; se o vir recorrer a matreira sagacidade para me
enganar, aplico-lhe simplesmente a categoria moral, julgo-o, e o perigo
torna-se insignificante; se ele me perseguir a ponto de me fazer perder a
paciência, não há que ver, disparo-lhe um tiro nos miolos... Quem será capaz de desafiar uma mulher para
duelo? Toda a gente vê que isso seria uma facécia, um disparate como o de
Xerxes que mandou fustigar o mar.
Quando Otelo mata a Desdémona, supondo mesmo que
ela estava realmente culpada, não obtém do seu acto qualquer vantagem
apreciável; procede como um bufão, torna-se ainda mais ridículo, porque,
esganando-a, não faz mais do que mostrar-se condescendente com uma consequência
do que, desde o princípio, o prepara para o ridículo; em compensação, Elvira
poderá parecer-nos inteiramente patética quando se apodera do punhal para se
vingar. Se Shakespeare concebeu Otelo como um herói trágico (sem contar com a
catástrofe lamentável, que a inocência de Desdémona representa) tal
inconsequência explica-se unicamente, e também se justifica plenamente, pela
razão de que Otelo não pertencia à raça branca.
É assim mesmo, meus caros amigos. Só um homem de cor, um homem que não nos
parece totalmente um ser racional, um homem que é capaz de ficar verde quando
acossado pela cólera, como todos sabem que é de facto verificado em fisiologia,
só um homem desses, repito, seria capaz de levar as coisas para o trágico
quando verificasse que a mulher o enganava. Reparai em que a regra é sempre
a mulher dispor do pathos da tragédia
no caso de ser enganada pelo homem. Um
homem capaz de ficar vermelho como um peru poderá ser talvez personagem de
tragédia, não aquele a quem é exigida a serenidade que resulta da cultura
espiritual. Esse ou saberá escapar aos perigos do ciúme, ou então, se for
vítima deste inferior sentimento, dará em personagem de comédia logo que
pretenda vingar-se com um punhal. É pena
que Shakespeare não nos tivesse dado um drama em que se visse a ironia castigar
as justas pretensões do marido contra a mulher infiel; porque não é dado a quem
descobre o cómico desta situação o poder expô-la de forma dramática, admitindo
já que ela seja representável. Imaginai, senhores, Sócrates a surpreender-
e digo surpreender, porque seria contrário ao pensamento socrático preocupar-se
com a fidelidade da mulher, e mais ainda andar a vigiá-la - imaginai Sócrates,
a surpreender Xantipia in flagranti:
estamos já a ver tão delicado sorriso, aquele sorriso, que transformava o mais
feio cidadão de Atenas no mais simpático dos homens, dilatar-se pela primeira
vez num riso verdadeiramente homérico. Por outro lado, não compreendo que
Aristófanes, o qual tantas vezes nos quis mostrar um Sócrates grotesco, não se
tivesse lembrado de o pôr em cena a correr e a gritar: «onde está ela, que a
mato», -ela, a infiel Xantipa. Que Sócrates tenha ou não sido marido enganado,
eis o que pouco importa para o caso; fazer investigações a respeito da possível
infidelidade de Xantipa seria tempo perdido; tanto como pentear macacos, ou
atirar pedras à lua. Enganado ou não pela mulher, Sócrates continua a ser do
mesmo modo herói intelectual; mas se ele sofresse do vício de ciúme, e se
quisesse matar a mulher, então Xantipa exerceria sobre ele um ascendente e uma
tirania tais que deixariam a esquecer na história o tribunal de Atenas e a pena
de morte: a mulher abusaria do poder de tornar ridículo o filósofo.
0 marido enganado é, portanto, cómico na situação
em que se encontra perante a mulher; mas pode parecer trágico nas suas relações
com os outros homens. (…)Todavia, na situação de marido enganado, o trágico
consiste essencialmente na impossibilidade de uma reparação, e no peso do seu
sofrimento, o que, na verdade, forma um conjunto terrível.
Matar
a mulher, torturá-la ou desprezá-la por vingança, tudo isso não faz mais do que
tornar ridículo o pobre do marido, porque a mulher representa simplesmente o
sexo fraco. Eis o tema que
incessantemente regressa para estabelecer em tudo a confusão. Se a mulher realizar grandes feitos, será
muito mais admirada do que o homem, porque ninguém os espera do seu natural
procedimento. Se a mulher for enganada, terá a seu favor todo o pathos; mas com o homem, o mais que pode
é haver um pouco de compaixão; na frente dele, diz-se uma ou outra palavra de
simpatia, mas nas costas todos riem ou sorriem.
Eis porque
muito sagazmente procede quem oportunamente considera a mulher na categoria de
facécia. O divertimento é sem par. Começamos por lhe atribuir um valor
superlativo para nos situarmos na relação mais cautelosa do comparativo. Evitaremos levar a conversa para a
contradição, onde a mulher domina por se sentir à vontade; e diremos sempre que
sim a tudo quanto ela quiser. Vamos dando-lhe cada vez mais lastro; como ela
não tem medida e não se sabe limitar, depressa chega aos máximos efeitos. Nunca
se deve duvidar das palavras dela; pelo contrário, convém sempre fazer fé
pelo que ela diz. Uma admiração inexprimível deve estar sempre nos nossos olhos
inebriados de felicidade, e todo o nosso procedimento deve ser o de um adorador
que sempre anda à roda do seu ídolo: ajoelhamos, damos às nossas feições um
aspecto languescente, erguemos os nossos olhos para ela, ficamos pasmados,
voltamos a respirar. Obedecemos-lhe como se fôssemos escravos,
Mas eis agora o melhor. Que a mulher seja capaz
de falar, quero dizer verba facere,
todos nós sabemos, e não precisamos de prova. Infelizmente, ela não goza de reflexão suficiente que a
ponha ao abrigo da contradição que surge a curto prazo, digamos quando
muito, ao fim de oito dias, pelo que o homem tem de intervir para lhe prestar
auxílio lógico, para a restabelecer na ordem do pensamento, pelo que o homem
tem de a contradizer. Acontece, pouco depois, que a confusão bate em cheio. Se
não houver a preocupação da conformidade nos dizeres, a confusão talvez passe
despercebida, porque a mulher é um ser
tão pronto para falar como para esquecer o que falou. Mas quando o adorador
persevera por todos os modos e até ao fim na obediência, a confusão
manifesta-se. A mulher, quanto mais bem dotada for, mais aptidões tiver, tanto
maior imaginação haverá de ter; quanto maior for a sua imaginação maior será a
sua extravagância em cada instante, e tanto maior será a contradição no
instante seguinte. Não se observa muitas vezes este divertimento na vida
quotidiana, porque tal obediência cega aos impulsos variáveis da mulher é
situação pouco frequente. Tal obediência pode ser a de um pastor lânguido, mas
esse não tem a faculdade de descobrir o aspecto mais divertido da situação. A
idealidade de uma ingénua que viva no instante e na imaginação não se encontra
na realidade, nem entre os homens, nem entre os deuses; mas nem por isso deixa
de ser mais divertido acreditar, ou simular acreditar, na idealidade de uma
rapariga, e proceder de modo a que ela cada vez mais se excite nessa direcção.
Disse que
tal divertimento é sem par. Disse porque o sei, eu que, por vezes, não pude
dormir durante noites inteiras, enquanto pensava em assistir a novas confusões
provocadas pela minha bem-amada, graças ao meu zelo de servi-la humildemente;
porque nunca o jogador do loto chegará a ver tantas combinações singulares e
imprevistas como o amante apaixonado por este jogo. Uma coisa é certa: a mulher é dotada de extraordinária faculdade de se
perder e de se encontrar na insensatez com aquela amabilidade, com aquele
à-vontade, com aquela segurança que convém ao sexo fraco. Quem é amante
leal, procura descobrir todas as graças da amada. Ora, quem descobrir esta
aptidão genial da mulher não deixará que ela permaneça no estado de
possibilidade, pelo contrário, exercitá-la-á até à virtuosidade.
Não
necessito de me alargar sobre este assunto; não sairei das generalidades; creio
que todos me compreendem bem. Tal como há homens que se divertem a equilibrar
um lápis na ponta do nariz, ou a correr com um copo na palma da mão, sem entornar
o conteúdo, ou a dançar sobre um estrado onde estão ovos, enfim, a fazer
exercícios tão recreativos como lucrativos, assim também, e não de outro modo,
o amante encontra na companhia da amada o divertimento mais valioso e o estudo
mais interessante.
Do ponto de vista da erótica, o amante procede
com inteira fé; ele não se contenta com acreditar em que ela lhe é fiel, porque
dessa fase do jogo em breve se cansa, mas acredita também, sem a mínima dúvida,
em todas essas explosões de um romantismo sagrado em que ela poderia sucumbir,
se não tivesse havido o cuidado de instalar uma válvula de escape pela qual os
suspiros, fumos, árias, se vão libertando para envolver o amante numa atmosfera
de felicidade. Ninguém o iguala na sua admiração por Julieta, com a diferença
porém de que ninguém ousa tocar num só cabelo do Romeu.
Do ponto
de vista intelectual, tem toda a confiança nela; e se lhe calha encontrar uma
escritora, então, é só o tempo de contar um, dois, três, e logo encontra na sua
frente uma mulher que sofre por dar à luz da publicidade um romance, é
arrebatado pelo entusiasmo, põe a mão sobre a testa, e fica extasiado com as
produções da sua mulherzinha. Tal é o divertimento sem par.
Não
compreendo que Sócrates não tenha escolhido este caminho em vez de andar à
bulha com a sua Xantipa; mas talvez compreenda, estou já a ver; é que ele
queria exercitar-se como o cavaleiro que por mais bem adestrado que esteja o
cavalo, irrita-o de vez em quando, para ter nova ocasião de o dominar.
Vou precisar um pouco mais o meu pensamento para
esclarecer um caso particular, muito interessante. Fala-se muito da fidelidade
feminina, mas raras vezes se diz o que convém. Do ponto de vista estritamente
estético, ela paira como um fantasma por sobre o espirito do poeta, que vemos
atravessar a cena em demanda da sua amada, que é também um fantasma preso à
espera do amante, porque quando ele aparece e ela o reconhece, pronto, a
estética já não tem mais que fazer.
A
infidelidade da mulher, que podemos relacionar imediatamente com a fidelidade
precedente, parece relevar essencialmente da ordem moral, visto já que o ciúme
toca sempre os aspectos de paixão trágica.
Há três
casos em que o exame é favorável à mulher: dois mostram a fidelidade, e um a
infidelidade. A fidelidade feminina será
enorme, excederá tudo quanto a gente possa pensar, enquanto a mulher não tiver
a certeza de ser verdadeiramente amada: será muito grande, ainda que nos pareça
incompreensível, quando o amante lhe perdoar; no terceiro caso temos a
infidelidade.
Desde que sejamos dotados de suficiente espirito,
e de suficiente liberdade de espírito para pensar, será fácil, depois do que eu
disse, justificar a categoria da facécia. (…)Decidamo-nos a relacionar o amor infeliz
com a morte, tenhamos seriedade suficiente para manter no espírito este
pensamento de relação, e se assim estivermos bem preparados, poderemos ver
nitidamente a facécia. A declaração de
amor é naturalmente um discurso feminino ou de homem efeminado. Isto salta aos
olhos, é evidente, porque esse discurso é uma dessas explosões de sentimento
absoluto que, declamadas com grande firmeza no instante, sempre arrancam
aplausos vibrantes; se bem que tal discurso seja questão de vida ou de morte, é
todavia, como o alimento, destinado a fruição imediata; se bem que toda a
vida esteja em jogo, de maneira nenhuma interessa ao moribundo; a declaração de
amor poderá conseguir, quando muito, que o ouvinte corra a salvar quem está a
desfalecer. O homem que se propõe fazer
tal discurso, não está a divertir-se consigo próprio porque sente-se já tão
miserável, e desprezível que nada lhe dá vontade de rir. A mulher, pelo
contrário, é genial, e amável pela sua genialidade; é graciosa e agradável em
tudo quanto diz, desde a primeira à última palavra. É por isso que a mulher
morre com o amor, ou morre de amor; ela própria o diz, e ninguém duvida. Nisto
reside a sua paixão; porque a mulher é um ser humano, e portanto homem, neste
aspecto: pelo menos para dizer o que nenhum homem é capaz de fazer. Coloquei-a
a par do homem, e ao dizer isto apliquei-lhe a categoria moral. Fazei vós o
mesmo, meus caros amigos, e compreendei então Aristóteles. É que ele observa, e
muito justamente, que a mulher não tem aptidão para a tragédia. É evidente que
ela não pode faltar ao teatro, que tem lugar no divertimento sério e patético,
se não na peça em cinco actos, pelo menos na meia hora dramática das
futilidades. Sim, a mulher morre de
amor. Mas impedi-la-á isso que volte a amar? Por que não, se houver quem a
ressuscite? Depois, será já outra criatura, um ser inteiramente diferente, um
ser com novidade e mocidade, que ama pela primeira vez. Isso nada tem de
extraordinário! Ó morte, quão grande é, afinal, o teu poder. Nem o vomitório
mais violento, nem o laxante mais eficaz, purgariam tão radicalmente como a
morte de amor. - A confusão é magnífica, desde que se lhe preste bastante
atenção para não a esquecer.
Uma das figuras mais divertidas que poderemos
encontrar durante a vida é um morto. Depara-se-nos por vezes no caminho; mas é
curioso que raramente aparece em cena. Um homem em recente letargia oferece já
um fundo de particularidade cómica; mas um morto autêntico, um verdadeiro
morto, ultrapassa tudo quanto possamos razoavelmente exigir de suplemento
cómico. Preste-se-lhe boa atenção; eu próprio tive o cuidado de o fazer quando
um dia passeava em companhia de um amigo. Passou por nós um casal. Percebi no semblante
do meu amigo que ele conhecia aquelas pessoas, e fiz-lhe a pergunta, a que
respondeu: «Sim, conheço-os muito bem. Principalmente a ela, que é a minha
falecida mulher». «Que diz? A sua falecida mulher?» «Sim, a mulher que morreu
nos meus primeiros amores. É uma história muito engraçada. Estou a morrer, dizia-me ela; e no mesmo
instante, como era justo, falecia; se assim não fosse teria chegado a ficar
viúvo. Mas já era tarde para a hora do casamento; ela estava morta, e morta
ficou. Eu é que vou errando, como diz o poeta, ando a procurar em vão o túmulo
da minha amada, não o encontro no cemitério, não sei onde verter uma lágrima».
O homem que isto me dizia, era ele próprio um morto, porque se encontrava
desamparado no mundo, era um morto, por muito que se consolasse de ver que a
sua amada chegara a um estádio avançado da vida, se não por merecimento de outro, pelo menos em companhia de
outro.
Pensava eu: bom é que as donzelas não sejam
enterradas todas as vezes que morrem, pois, se até agora os pais se queixam de
que os rapazes lhes gastam muito mais dinheiro do que as raparigas, estas, com
tantos funerais, poderiam ser-lhes muito mais dispendiosas.
Uma simples infidelidade não oferece, ao
que penso, tão divertido espectáculo como o de ver a mulher interessar-se por
outro e ao mesmo tempo dizer ao marido: «não posso; é superior às minhas
forças; tenho medo de mim própria; salva-me tu». Mas que ela morra de
desgosto por não poder suportar que o amado se afaste porque tem de fazer
viagem às Antilhas; que se conforme com a partida e que, quando ele regressar,
esteja não só com muito boa saúde, mas além disso ligada para sempre a outro: eis
o que me parece ser realmente um destino singular para um amante.
Não vejo, pois, razão para nos admirarmos de que
um homem deprimido pela morte da amada se console a trautear, a cantar e até a
gritar aquele velho estribilho nosso: «A morte vem; e ainda bem. Bom para mim,
bom para ti. Quem ama nunca mais esquece a data feliz da separação!»
Perdoai-me, amigos. Falei de mais. Vamos beber. Bebamos pelo amor e pela
mulher. É que ela é bela, graciosa, encantadora; isto é inevitável para quem a
considere e julgue pelas categorias estéticas. Mas temos de ir para além disso;
é o que vos aconselho, como outros o aconselharam já. Temos de observá-la
dentro do campo moral; retomai o vosso juízo nessa categoria e tereis a facécia
nada mais. Até Platão e Aristóteles admitiram que a
mulher é uma forma imperfeita, e, portanto, uma grandeza irracional, que talvez
em vida futura e melhor possa elevar-se à condição do homem; mas aqui na
terra, meus caros amigos, é preciso ver que as coisas são como são. Que estou a
dizer? Estou a caluniar? Não, de modo nenhum. Não tardará que tudo isto seja
evidente, porque a própria mulher já não se contenta em viver na ordem da
estética; quer passar para a ordem moral, quer ser emancipada, como ela diz, ou
quer ser capaz de ser homem, como nós dizemos. Ah! Bebei, meus caros amigos,
que a facécia já passa das medidas.
(…)
agradecer o que não me foi concedido. Assim,
limitar-me-ei a concentrar a minha alma para agradecer o único favor que me foi
concedido: o de ter nascido homem, e não mulher.
A
condição natural da mulher é muito singular. É um ser feito de elementos tão
complexos, que um só predicado não o pode exprimir; e quando os predicados se
acumulam, vemos que eles se contradizem de tal forma que com tal contradição só
a mulher se pode harmonizar e, o que mais é, se pode sentir feliz. De a mulher
na realidade exercer uma função inferior à do homem, não vejo que para ela
resulte infelicidade; muito menos ainda de que possa adquirir consciência dessa
situação, porque tal ciência é-lhe muito suportável. Não; a infelicidade da mulher resulta do absurdo a que o romantismo reduziu
a vida. Com efeito, para os românticos, num instante a mulher é tudo, e no
instante seguinte a mulher é nada; assim, nunca se sabe ao certo qual é a
verdadeira significação da mulher na vida humana. A infelicidade da mulher está em não poder conhecer a sua situação e o
seu valor, exactamente porque é mulher.
Quanto
a mim, se fosse mulher, desejaria viver no Oriente, na condição de escrava;
porque a condição pura e simples de escravatura é pelo menos alguma coisa, não
é o tudo, não é o caos, não é o nada.
Ainda
que a vida não apresentasse à mulher estes contrários, as honras que lhe são
atribuídas, e que segundo a opinião pública, lhe são devidas, justamente por
ser mulher, seriam já, suficientes para a advertirem e para a convencerem de
quão absurda é a situação feminina.
O privilégio que os homens
concedem às mulheres é a galantaria. Convém ao homem dar provas de galantaria
para com a mulher, e esta arte consiste muito simplesmente em enquadrar nas
categorias da imaginação a pessoa em relação à qual se formulam os galanteios.
Prestar
as mesmas atenções a um homem seria ofendê-lo pela lisonja, porque o homem não
está dependente, ou se estiver não deveria estar, de tais categorias. Pelo
contrário, as mínimas deferências são devidas como tributo ao belo sexo,
são-lhe devidas como a homenagem que por excelência lhe compete. As mínimas
deferências... Ah! Ah! Ah! Se a galantaria fosse mera praxe de cavalaria, se só
os cavaleiros se mostrassem galantes, a coisa não se prestava a demoradas
reflexões. Mas tal não é o caso. No
fundo, todo o homem é galante, ainda que inconscientemente, ainda que contra
vontade. Ou, por outras palavras: foi a própria natureza que prendeu o belo
sexo com mais esta graça. Aliás a mulher aceita espontaneamente, e sem
contrariedade, tais homenagens. Isto é mais uma infelicidade; porque se só uma
procedesse assim, ou se só algumas procedessem assim, poderíamos encontrar
para o problema outra solução. Assim, temos de nos encontrar outra vez perante
a ironia própria da vida. Se a galantaria correspondesse à verdade, deveria então
ser reciproca; nesse caso, dar-se-ia como que a permuta de valoração entre a
força e a beleza, entre o poder e a astúcia. Não é, porém, assim. A galantaria é essencialmente o privilégio
da mulher, e a irreflexão com que a mulher a aceita explica-se pela atenção da
natureza para com o mais fraco, mitigando-lhe o infortúnio com dar-lhe uma
compensação, ou mais do que uma compensação, o infinito da ilusão. Mas esta
ilusão é que é a fatalidade própria da vida da mulher.
São
frequentes os casos em que a natureza toma cuidado do enfermo, consola-o e
embala-o na ilusão de que é belo. Tudo quanto a natureza faz é bem feito, e o
infortunado possui assim muito mais do que em pretensão razoável pudesse
desejar. Todavia, que irrisão mais cruel poderia haver do que esta vantagem
totalmente ilusória, que irrisão, mais cruel do que escapar à miserável
condição da escravatura para ser enganado por uma quimera! A mulher está bem
longe de não participar das vantagens concedidas ao enfermo, mas, por outro
lado, não pode nunca sair da ilusão com que a vida a agraciou para sua
consolação.
Se considerarmos, na sua totalidade, a
existência da mulher, para discernirmos os momentos decisivos, veremos que esta
existência nos dá em cada caso particular uma impressão absolutamente
fantástica. No decurso da sua vida, a mulher tem momentos decisivos muito
diferentes dos do homem, porque são para ela ocasiões de completo transtorno. (…)Tal
é o fantástico de toda a existência feminina.
Se
a mulher se chamar Juliana, a sua vida poderá resumir-se assim: «Outrora
imperatriz dos vastos domínios do amor, e rainha titular da patetice em todo o
esplendor; hoje, esposa do grave senhor Fulano de Tal, com loja aberta a uma
esquina desta cidade» .
Na
infância, a menina é menos considerada do que o menino. Quando rapariga, poucos
anos depois, ninguém sabe bem o que virá a ser; enfim, no período decisivo da
adolescência para a mocidade, sobe ao trono da sua ilusória soberania. O homem
aproxima-se e adora-a; é um pretendente. Digo que adora, porque é na verdade o
que ele faz, entre suspiros imprecativos; o pretendente nunca é um intrujão
dominado por manhas e artimanhas. Até mesmo o carrasco, quando põe de lado os
sanguinários utensílios do seu mister, para ir pedir a noiva em casamento,
flecte o joelho, ainda que pense logo depois em execuções domésticas, tão
naturais aos seus olhos, que não procura sequer desculpá-las invocando a
raridade dos suplícios públicos. O homem
culto procede do mesmo modo; cai de joelhos, adora, enfim, vê a amada debaixo
das mais belas categorias da imaginação; depois esquece bem depressa esta
atitude; ao tomá-la ele já sabia, aliás, que sacrificava a uma ilusão.
Se eu fosse mulher, antes queria ser vendida
pelo meu pai a quem mais desse, como se faz no Oriente, porque o comércio tem
pelo menos um sentido real. Ser mulher é já uma infelicidade; mas infelicidade
maior é não ver essa infelicidade. Observai que a mulher se de alguma coisa se queixa, não é de ser
adorada: é, pelo contrário, de deixar de
o ser.
Se
eu fosse mulher, acima de tudo exigiria que ninguém me fizesse a corte,
dispensaria muito bem os galanteios; contentar-me-ia com pertencer ao sexo
fraco, aceitaria a verdade da minha situação, e teria o brio de repelir as
mentiras dos homens. A mulher não pensa assim, pouco se importa com a verdade.
Juliana sente-se feliz no sétimo céu, e a esposa do senhor Fulano de Tal, com
loja aberta na esquina da cidade, vive resignada, se não contente, com a sua
sorte.
Agradeço,
pois, aos deuses o ter nascido homem, e não mulher. Com isto, porém, não deixo
de pensar nas vantagens que perdi. Desde as canções do botequim até aos versos
de tragédia, a poesia é uma apoteose da mulher, para maior infelicidade dela e
do seu adorador, porque, se este não tiver cuidado, quando estiver no melhor do
seu culto, sentirá que o rosto lhe emagrece.
O homem deve à mulher tudo
quanto fez de belo, de insigne, de espantoso, porque da mulher recebeu o
entusiasmo; ela é o ser que exalta. Quantos moços
imberbes, tocadores de flauta, não celebraram já o tema? E quantas pastoras
ingénuas não o ouviram também?
Confesso a verdade quando
digo que a minha alma está isenta de inveja e cheia de gratidão para com Deus;
antes quero ser homem pobre de qualidades, mas homem, do que mulher-grandeza
imensurável, que encontra a sua felicidade na ilusão.
Vale
mais ser uma realidade, que ao menos possui uma significação precisa, do que
ser uma abstracção precisa, do que ser uma abstracção susceptível de todas as
interpretações.
É,
pois, bem verdade: graças à mulher é que a idealidade aparece na vida; que
seria do homem, sem ela? Muitos chegaram a ser génios, heróis, e outros santos,
graças às mulheres que amaram; mas nenhum homem chegou a ser génio por graça da
mulher com quem casou; por essa, quando muito, consegue o marido ser
conselheiro de Estado; nenhum homem chegou a ser herói pela mulher que
conquistou, porque essa apenas conseguiu que ele chegasse a general; nenhum
homem chegou a ser poeta inspirado pela companheira de seus dias, porque essa
apenas conseguiu que ele fosse pai; nenhum homem chegou a ser santo pela mulher
que lhe foi destinada, porque esse viveu e morreu celibatário.
Os
homens que chegaram a ser génios, heróis, poetas e santos cumpriram a sua
missão inspirados pelas mulheres que nunca chegaram a ser deles. Se a
idealidade da mulher fosse positivamente, e não negativamente, um factor de
entusiasmo, inspiratriz seria a mulher à qual o homem, casando, se unisse para
toda a vida. A realidade fala-nos, porém, outra linguagem. Quero dizer que a
mulher desperta, sim, o homem para a idealidade, mas só o torna criador na
relação negativa que mantém com ele. Compreendidas assim as coisas, poderá
efectivamente dizer-se que a mulher é inspiradora, mas a afirmação directa não
passa de um paralogismo em que só a mulher casada pode acreditar.
Quem ouviu alguma vez dizer
que uma mulher casada tivesse conseguido fazer do marido um poeta?
A mulher inspira o homem,
sim, mas durante o tempo que for vivendo até a possuir. Tal é a verdade que
está escondida na ilusão da poesia e da mulher.
Que
o homem não possua a mulher, isso é o que pode ser entendido de várias maneiras.
Ou está ainda na luta para a conquistar, e assim se disse que a donzela
entusiasmou o amante a ponto de fazer dele um cavaleiro, mas nunca se ouviu
dizer que um homem se tornasse valente por influência da mulher com quem casou.
Ou está convencido de que nunca lhe será possível casar com ela, e assim se diz
que a donzela entusiasmou e despertou a idealidade do amante que se manifestou
capaz de cultivar os dons espirituais de que porventura era portador.
Mas uma esposa, uma dona de
casa, tem tantas coisas prosaicas com que se preocupar, que nunca desperta no
marido a idealidade.
Há ainda outro caso, em que o homem não possui
a mulher porque persegue um ideal. Assim vai ele passando de amor para amor, o
que é uma espécie de ser infeliz no amor; a idealidade da alma do amante está então
no ardor da procura e da perseguição, e não nos amores fragmentários que não
valem a soma das aventuras particulares.
A mais nobre idealidade que uma mulher pode
suscitar no homem consiste propriamente em lhe despertar a consciência da
imortalidade. O nervo desta prova é o que poderíamos chamar a necessidade da
réplica. Diz-se de uma peça que não pode acabar sem que tal ou tal personagem
receba uma réplica; assim a idealidade pretende que a vida não pode acabar na
morte, e exige uma réplica.
Esta prova é muitas vezes administrada de
maneira positiva nos jornais. Eu acho isso completamente normal, porque, a ter
de ser dada nos jornais, tem de o ser positivamente. A senhora Dona Fulana de
Tal viveu um certo número de anos; na noite de 24 para 25, quis a Providência
que, etc. O senhor Fulano de Tal, nessa ocasião, sofre um violento ataque de
reminiscências do tempo em que fez a corte à sua falecida mulher, ou, para me
exprimir com maior exactidão: nada mais o consolará do que o regresso a esse
tempo. Entretanto, vai-se preparando para voltar a esse tempo feliz procurando
outra mulher, pois, na verdade, um
segundo casamento, se bem que esteja longe de ter a poesia do primeiro, é contudo
uma boa imitação. Eis a prova positiva. O senhor Fulano não se contenta com
exigir uma réplica; não, exige também uma, repetição.
É, sabido que o chumbo toma por vezes o brilho
da prata, mas por pouco tempo. Isto é trágico para o vil metal, que tem sempre
de se contentar com o que na realidade é.
Com
o senhor Fulano de Tal, o caso é diferente. A idealidade é, com justa razão, o
próprio do homem; se me rio, pois, do senhor Fulano de Tal, não é porque,
comparando-o com o metal, vil, pense que só em raras ocasiões ele terá o brilho
da prata; pelo contrário, é porque o falso brilho, ou prestígio, é a denúncia
visível de que se transformou em metal vil. É assim que o espírito burguês se
cobre de ridículo quando, endomingado de idealidade, nos dá um bom pretexto de
dizer com Holberg: «por que não vestiram com um roupão novo esta vaca
parturiente?» Retomemos, agora, o fio do discurso. Se a mulher desperta no
homem a idealidade, e consequentemente, a consciência da imortalidade, sempre
procede assim, mas sempre negativamente. O homem que, graças à mulher que não
possui, deu em génio, herói, poeta ou santo, esse homem conseguiu com isso a
imortalidade.
Se a faculdade de suscitar a idealidade
estivesse positivamente na mulher, seria a esposa, e só a esposa, quem
despertaria no homem a consciência da imortalidade. A vida mostra-nos exactamente
o contrário. Para que a mulher desempenhe realmente aquele papel, é
indispensável que morra antes de a peça acabar. No caso, porém, do senhor
Fulano de Tal, ela deixou adormecida a idealidade. Se, pela sua morte,
conseguir despertar a idealidade no marido, cumprirá então todas as grandes
coisas que lhe atribui a poesia, mas, reparem bem, o que ela de positivo fez a
tal respeito é letra morta.
Todavia, o papel da mulher torna-se cada vez
mais duvidoso quanto mais ela persiste no desígnio de atribuir à sua acção um
sentido positivo. Quanto mais a prova for neste sentido, tanto menos positiva
será, porque se dá então a saudade, cuja substância deve ser considerada como
essencialmente esgotada,visto que o vivido já foi vivido. A prova chega ao mais
alto grau positivo quando a saudade se encontra ligada a determinado evento da
vida conjugal, já passado, morto e enterrado, como daquela vez em que os dois
andavam a passear entre as sombras do parque... A gente também pode ter saudade
de um velho par de pantufas, confortáveis como nenhumas outras; mas esta
saudade não vale de prova da imortalidade da alma.
Quanto
mais negativamente for dada a prova tanto melhor será, porque o negativo é muito mais forte do que o
positivo; o negativo é infinito e, por conseguinte, dissolve o positivo.
A
significação que a mulher para nós assume é inteiramente negativa; o seu papel
positivo nem de longe se lhe compara; pode dizer-se que é até mesmo funesto.
Tal é a verdade que a natureza lhe escondeu. A Natureza compensou, porém, a mulher dotando-a de um poder de
imaginação que ultrapassa de muito tudo quanto possa sair de um cérebro
masculino, e com uma solicitude tal que a língua e tudo o mais contribuem para
reforçar esta poderosa faculdade.
Até
mesmo, quando a gente vê na mulher o contrário de uma inspiratriz, quando a
gente vê na mulher uma causa de perdição, seja porque com ela tivesse entrado o
pecado no mundo, seja porque na infidelidade dela esteja a causa de toda a
desolação, não deixamos de lhe dar testemunho de galantaria com a nossa maneira
de pensar. É que assim julgamos a mulher capaz de se tornar infinitamente mais
culpada ou culpável do que o homem, e se tal dissermos fazemos-lhe uma estranha
declaração. Ah! ah! ah! A verdade é muito diferente. Há uma interpretação
secreta que a mulher não compreende; porque, no instante imediato, toda a gente
concorda com a doutrina jurídica pela
qual o homem é que é responsável pelos actos da sua mulher. A mulher é assim
condenada como nunca homem algum o foi, porque este é apenas julgado de facto;
não que o juízo que sobre ele recai seja mais suave, porque a sua vida não
seria então ilusão total, mas a causa é que fica anulada, e deixa-se ao
público, quer dizer, à vida, o cuidado de regular as custas. Num instante, tem
ela que se servir de toda a astúcia imaginável; no instante seguinte, a gente
ri-se de quem ela enganou, o que é uma contradição; até mesmo sobre a mulher de
Putifar pairam ainda algumas dúvidas, já que ela quis parecer ser seduzida. Assim é que a mulher dispõe de uma
possibilidade inacreditável de enganar, possibilidade tão grande que nenhum homem
a poderia ter; mas a sua realidade está em proporção com a sua
possibilidade, e o que de
mais terrível existe na condição da mulher é a magia da ilusão em que ela vive feliz.
Que
Platão agradeça aos deuses por ter sido contemporâneo de Sócrates, invejo-o;
que o faça por ter nascido grego, invejo-o também; mas quando dá graças a Deus
de ter nascido homem e não mulher, estou de alma e coração, com ele. Se eu
tivesse nascido mulher, e pudesse então compreender o que compreendo agora, que
terrível seria isso para mim; se eu
tivesse nascido mulher e se me visse por conseguinte incapaz de compreender a
minha sorte, isso então é que seria muito mais terrível para mim!
Sendo
as coisas como são, segue-se que o homem está sempre fora de qualquer relação
positiva com a mulher. Há entre a mulher
e o homem esse hiato que faz a felicidade dela, porque o ignora, e que faz o
tormento mortal dele, quando o descobre.
A acção negativa da mulher
pode levar o homem ao infinito; eis o que é preciso sempre repetir e repetir em
honra da mulher, sem restrições; porque esta acção não provém essencialmente da
natureza particular de cada mulher, isto é, do seu encanto, ou da duração do
seu encanto. Esta influência vem de que a mulher aparece no momento oportuno,
ou no momento em que a idealidade latente se descobre no ser do homem. Não é um
momento, é um instante; por isso faz bem a mulher em desaparecer imediatamente.
Porque, se o homem mantiver com ela uma relação positiva, entregar-se-á ao
finito, não ao infinito, muito mais do que antes do encontro.
O
maior serviço que a mulher pode prestar ao homem é aparecer aos olhos dele no
instante oportuno; mas isso não depende dela, é complacência que pertence só ao
destino; à falta disso, o melhor que ela lhe pode fazer é ser-lhe infiel, e
quanto mais depressa melhor. A primeira idealidade ajudará o homem a chegar a
uma idealidade de potência na qual encontrará sempre um socorro absoluto;
quanto à segunda, é idealidade que se paga com o preço dos maiores sofrimentos,
sem dúvida, mas que compensa o homem com a máxima felicidade; Infeliz homem, -coitado-, será aquele a
quem a mulher permaneça sempre fiel!
Dou,
pois, graças aos deuses de ter nascido homem e não mulher; em segundo lugar
dou-lhes graças por me terem livrado da mulher que me jurasse fidelidade
perpétua, de me terem livrado de estar constantemente a pensar nisso.
Que singular invenção foi essa do casamento!
Isto é tanto mais curioso porquanto o casamento tem de ser um acto imediato. No
entanto, nenhuma deliberação é tão decisiva; porque na vida o homem não conhecerá tirania mais ciumenta do que a do
casamento.
Um
acto tão decisivo deve ser executado imediatamente. E todavia o casamento não é
coisa simples; na sua complexidade oferece o maior equivoco possível. A carne
da tartaruga tem o gosto de todas as carnes; do mesmo modo, o casamento tem o
gosto de tudo quanto há, e, como a tartaruga, anda muito devagar. Uma ligação
amorosa é simples; mas o casamento! Será algo de pagão, de cristão, de divino,
de mundano, de burguês, ou um pouco de tudo? Exprimirá a inexplicável erótica,
as afinidades electivas de almas que
se admiram? Será dever, associação, convenção, hábito, costume moral, praxe
etnográfica, ou um pouco de tudo isso? Exigirá que se encomende a música à
banda municipal ou ao coro da paróquia, ou a ambos? Quem fará os discursos, e
quem lavrará os registos com o nome dos noivos e das testemunhas? Será o
sacerdote ou o funcionário? As cerimónias celebram-se com o expediente das
pessoas apressadas ou com a demorada liturgia das solenidades? Como tudo isto é
complexo! No entanto, cada marido imagina que ao contrair matrimónio escolhe um
elemento simples desta complexidade, ou um trecho desta composição; e que o
leva para embelezar e dignificar a sua vida conjugal! Meus caros amigos: Não é verdade que a melhor prenda de casamento que poderíamos
dar aos noivos, seria o aviso, a advertência contra tantas faltas de atenção?
Para
exprimir uma ideia simples é por vezes indispensável gastar muitos esforços; mas
submeter o pensamento a esta complexidade para o reduzir à unidade; exprimir
este conjunto de maneira tal que cada elemento tenha a sua representação exacta
sem que nenhum seja omitido; isso é, na verdade, tão grande façanha que quem a
realizar poderá ser tido por um homem superior. Ora é precisamente este o caso
do marido; e ele realiza a façanha, não há dúvida; não diz ele que a executa
imediatamente? Se o casamento se realiza assim tão depressa, isso só pode ser
em obediência a uma imediatidade superior, que penetra através de toda a
reflexão. Mas a respeito disto é que ninguém diz palavra. Nem vale a pena falar
com um marido a tal respeito. Quando pela primeira vez se comete uma inépcia,
tem de se sofrer para sempre as consequências. A tolice foi ter-se deixado
levar no embrulho, e o castigo é ver que já é tarde para remediar o mal. Às
vezes os maridos têm sorte, tomam um ar patético, julgam ter cumprido algo de extraordinário
com esse acto do, casamento; outras vezes ficam tristes e pensativos; e: outras
vezes ainda, fazendo da necessidade virtude, celebram o elogio do Himeneu; mas
uma síntese que reúna os membra disjécta da
concepção mais heterogénea que se possa ter da vida, isso é o que eu espero há
muitos anos em vão.
Apresentar-se como marido
digno desse nome, é fazer troça; apresentar-se como sedutor, também é fazer
troça; ver na mulher um estímulo de experiências para divertimento próprio é
ainda e sempre fazer troça. Os três métodos implicam deferência do homem para
com o sexo fraco, e os dois últimos tantas concessões, senão mais, do que o
casamento.
O sedutor pretende
representar muito bem o seu papel enganando a mulher, mas o facto de enganar,
de querer enganar, de se dar ao trabalho de enganar, é prova da dependência em
que o homem se encontra em relação à mulher; e o mesmo direi quanto ao
psicólogo, amador de aventuras sentimentais.
Atitude
positiva para com a mulher! Se tomarmos isso a sério, se pensarmos bem nisso,
teremos de reflectir tanto que a própria reflexão nos inibirá de estabelecermos
relação positiva ou negativa com a mulher.
Ser um marido exemplar, mas às escondidas ir
seduzindo as mocinhas inexperientes, apresentar-se como um sedutor que encobre
a fogosidade sentimental do romantismo, são situações reais e significativas;
mas também aqui a contradição existe, porque a concessão do primeiro grau vem a
ser afastada no segundo. O homem só encontrará a sua verdadeira idealidade numa
reduplicação. Toda a existência imediata tem de ser aniquilada, e esta
aniquilação tem de ser constantemente assegurada por uma falsa expressão. A
mulher não é capaz de conceber esta reduplicação que faz do homem um ser que
lhe escapa. Se ela pudesse encontrar o seu ser nesta reduplicação, já não seria
possível pensar qualquer relação erótica com ela, e, como a sua natureza é
manifesta, a relação erótica é perturbada de facto pela natureza do homem, que
tira constantemente a sua vida do aniquilamento do elemento em que a mulher
mantém a sua.
Estarei
a aconselhar o celibato, já que por alguma razão me chamo Eremita? De maneira
nenhuma. Deixemo-nos de celas e de claustros. Este viver solitário ou solteiro
não é mais do que uma expressão do imediato aos olhos do espírito que se recusa
a este género de expressão. Pouco importa que o dinheiro seja de ouro, de prata
ou de papel; compreenderá o meu pensamento somente quem nunca se servir de
dinheiro falso. Aquele para quem a expressão imediata não passa de uma
falsidade, esse, e só esse, estará mais seguro do que se for viver para a cela;
será sempre um eremita, ainda que ande de noite e de dia com as outras pessoas
nos transportes públicos.
Falais muito bem, meus caros amigos; falais muito
bem. Quanto mais vos ouço falar, mais vos compreendo, quanto mais vos
compreendo mais me persuado de que sois uns conjurados. Saúdo-vos, pois.
Saúdo-vos como conjurados que sois, o que de longe se compreende.
Falais, muito bem. Mas que sabeis vós do que
falais? De que vale a vossa magra teoria que dizeis fundada na vossa experiência?
De que vale a vossa experiência de pacotilha que ostentais como grande teoria?
Vós sois afinal uns fiéis a partir do instante em que vos enleais nas malhas do
amor.
Ao, contrário de vós, eu conheço a mulher; conheço
a mulher pelo seu lado fraco; quer dizer que a conheço. No meu estudo, não encontro
temor nem terror, porque não recuo perante meio algum de me assegurar do que compreendi;
porque sou um frenético; é preciso ser
frenético para compreender a mulher; quem não é frenético acaba por o ser
se quiser compreender a mulher.
O salteador tem o seu retiro perto das grandes
estradas do tráfego, o corsário tem a sua caverna junto das ondas que bramem; eu tenho os meus armazéns no meio da
multidão buliçosa e sei que ele exerce sobre a mulher uma sedução irresistível
como o monte de Vénus a exerce sobre o homem. No salão de modas é que a gente
aprende a conhecer a mulher, de maneira completa e prática, sem precisar de
recorrer às vossas teorias de oradores fluentes. Se a moda tivesse apenas por fim preparar a mulher para, na ardência do
desejo, despir os véus que lhe envolvem o pudor, a moda teria já utilidade:
mas a moda tem uma função muito diferente. A moda não serve de cortina que
cobre e descobre a nua voluptuosidade, que devassa a lubricidade e a luxúria; a moda é uma hipócrita exposição da indecência,
autorizada porque respeita as conveniências. Na Prússia pagã, a rapariga
núbil usava um guizo cujo tilintar servia de sinal para os homens; assim também
a moda que dá nos olhos equivale à campainha que fala sempre aos ouvidos, não
digo dos vulgares devassos, mas dos apreciadores de requintes que vão
perseguindo as mulheres. Há quem julgue que a felicidade é feminina; sim, a felicidade é como a moda, é mutante e
inconsciente; mas a felicidade é de sinal positivo, porque ao menos é
generosa e dadivosa; por isso, a felicidade não é mulher. A moda é que é mulher, porque a moda é a inconstância na
insignificância, sequência e consequência que vai da extravagância até à folia.
Vale mais uma hora de observação, na minha loja de modas, do que dias, meses e
anos de estudo em outros lugares, para quem deseje conhecer a mulher.
Digo na
minha loja de modas, porque é a única que vale a pena frequentar nesta capital;
porque me dediquei totalmente e que totalmente me sacrifico para ser o sumo
sacerdote no culto desse ídolo. Não há alta roda, não há ambiente mundano, onde
o meu nome não passe de lábios para lábios; não há reunião de sociedade
burguesa onde o meu nome, uma vez proferido, como o do soberano, não excite
respeito e admiração; não há vestido desenhado e executado na minha casa, que,
por mais extravagante que pareça, não faça ondas de admiração quando entra numa
sala; não há mulher elegante e distinta que se atreva a passar diante da minha
loja sem que imediatamente ceda à tentação de entrar; não há rapariga da média
burguesia que não olhe para as montras da minha loja sem pensar e suspirar:
«Ah, se eu tivesse dinheiro!»
Também, se ela entrasse não sofreria grande
decepção; é que eu não engano ninguém; forneço a baixos preços os vestidos mais
finos e mais sumptuosos, e faço até muitos abatimentos, porque não me move
apenas a ambição financeira; aliás, ao fim de cada ano, obtenho lucros
avultados. Sim, eu quero ganhar, quero; seria capaz de perder todo o meu
dinheiro neste jogo, de o gastar todo na compra dos órgãos da moda, para ganhar
a partida. Sinto uma volúpia sem igual a manipular os tecidos magníficos, a
desenhar o corte, a encaminhar as tesouras pelas linhas directoras da
elegância, enfim, a imaginar um vestido capaz de sugerir a folia da última
moda, para o vender pelo preço mais barato que puder. «Julgais talvez que a
mulher deseja estar na moda apenas de vez em quando, no começo das estações, ou
nos dias solenes? Enganais-vos. A mulher
quer sempre estar na moda, constantemente; não pensa em outra coisa. A mulher é
muito espirituosa, mas emprega tão mal o seu espírito como o filho pródigo
emprega o dinheiro. A mulher é muito reflexiva, é dotada de incrível dose de
reflexão; nada há, por mais sagrado que lhe pareça, que não reduza
imediatamente às dimensões do mero enfeite de que a moda é a expressão por
excelência; e não devemos estranhar que ela assim pense, porque a moda é para
ela sagrada. Também não há nada, por mais fútil que pareça, que a mulher
não saiba reduzir a simples atavio de que a moda é a expressão mais frívola; e
no vestuário dela não há nada, nem um pormenor sequer, laço ou botão que seja,
que ela não relacione com a moda. A mulher veste-se à moda para atrair a
atenção das outras mulheres, e sabe ver, num lance de olhos, se está ou não
a ser observada e admirada. Até mesmo para ir ao meu salão, onde vai tratar de
modas, não deixa de se vestir à moda.
O passeio, o desporto e a praia exigem trajos
especiais; há também um modo especial de trajar para ir à loja de modas, pelo
qual se distinguem as mulheres modernas. O vestido para esta oportunidade não tem
a indecência do roupão em que a mulher gosta de ser surpreendida de manhã; no
pijama ou no penteador a mulher concilia, de modo excitante, a garridice com o
pudor. Mas o trajo de rigor para ir ter com o alfaiate é propositadamente
devasso, fácil de despir, fino e leve; é assim exactamente porque não excita
nem confunde os que trabalham na minha profissão; diante da mulher que aparece
vestida desse modo, o alfaiate encontra-se numa situação muito diferente da do
cavaleiro galanteador. A mulher usa então da sua garridice a mostrar-se a um
homem ao qual, pelo mister que exerce, é vedado pretender qualquer favor ou
gratidão da delicada senhora. Contenta-se ele com gozar subtilmente do que ela
lhe vai confiando com profusão como que sem reparar ou sem imaginar sequer que
até mesmo diante do alfaiate representa o seu papel de querendeira.
O cómico reside agora no natural esquecimento da
dignidade feminina perante a mais alta preocupação da vida mundana, e a senhora
da alta roda logo o revelaria num sorriso de compaixão ou de desprezo para com
o alfaiate que se atrevesse a proferir a primeira frase do sedutor.
Quando um visitante a surpreende vestida com um
roupão, logo a mulher se recata por um reflexo de pudor; no gabinete de provas
da loja de modas, já ela se despe com extrema desenvoltura, porque a sua
feminilidade não cai perante os olhos de um homem, mas apenas na frente de um
costureiro. A combinação declina
gravemente e deixa ver um pouco de nudez; se eu interpretar mal o que isso
significa e o que a freguesa deseja, lá se vai a minha reputação pela água
abaixo. Tenho que respeitar a mulher, deixando-lhe fazer o que muito bem
quiser. Vejo-a que aperta a cinta, bamboleia as ancas, estremece as nádegas,
mira-se e remira-se no espelho, repara no meu olhar de admiração, murmura uma
frase, dá um pulinho, estende vagarosamente a perna, e deixa-se afundar na
poltrona. Eu apresento-lhe logo um frasco de sais, ou num gesto de adoração
refresco-a com perfume, ela afasta-me com mão negligente, perde o lenço e, sem
mais, deixa cair o braço, indolentemente; inclino-me com todo o respeito,
levanto o lenço caldo, entrego-lho, recebo de prémio um aceno simpático e um
olhar protector. É assim que se porta uma senhora da moda na minha loja de
alfaiataria.
Diógenes viu uma mulher rezar em posição um tanto
ou quanto inconveniente; ignoro se foi perturbá-la para lhe perguntar se não
sabia que os deuses podiam ver-lhe as costas; o que sei é que se dissesse de
joelhos a Sua Excelência: «as pregas do seu vestido já não estão na moda»,
mortificá-la-ia muito mais do que se lhe demonstrasse que ofendera os deuses.
Ai da simples mulher de limpeza, ai da serviçal
mais modesta, que não compreenda tudo isto.
Per
deos obscero que vale uma
mulher quando não está na moda?
Quereis saber se é verdade? Fazei a experiência.
Quando a amada, ébria de felicidade, se atira ao pescoço do amante, e num
abraço lhe diz com voz melíflua: «Sou tua para sempre!» responde-lhe ele:
«Querida amiguinha, o teu penteado está muito fora de moda! » Os homens estão
longe de pensar nestes assuntos, mas aquele que tiver esta ciência e se
resolver a aplicá-la será o sedutor mais perigoso que possa haver no país.
Ignoro o que sejam as horas de felicidade que o amante
frui em companhia da amada, antes do casamento; mas também ele ignora as horas
de voluptuosidade que ela conhece na minha loja de modas. Sem a minha autorização
e sem a minha sanção, um casamento é um acto nulo, se não for mero negócio de
grande vulgaridade. Imaginai os noivos no instante em que vão já a caminho do
altar; a noiva progride de consciência tranquila e feliz, porque o seu vestido
foi submetido a várias provas na minha casa, onde o comprou. Mas eu precipito-me
e digo: «Que pena, minha senhora! A sua coroa de flores de laranjeira não está
bem, Se pudesse ainda ajeitá-la ... » A, cerimónia é logo suspensa, se não
adiada. Os homens ignoram a arte da alta costura, e ignoram também os privilégios
do alfaiate.
Para limitar
a reflexão da mulher é indispensável uma grande dose de reflexão no homem; mas
de tal reflexão só será capaz o homem que se dedique inteiramente a isso e que
para isso possua aptidão. Feliz, pois, o
homem que for capaz de conservar a sua independência perante a mulher; saiba
ele que a mulher não lhe pertence, como não pertence a outro homem qualquer; a
mulher está dominada por esse fantasma que surgiu do monstruoso comércio da
reflexão feminina consigo própria: a moda.
A mulher deveria ser obrigada a jurar pela
moda, para que os seus juramentos pudessem ser tidos por verdadeiros; porque a moda é objecto constante dos seus
pensamentos, e tema que está sempre em relação com todos os outros assuntos de
que se ocupe.
Da minha loja de modas saiu e espalhou-se na alta
roda a boa notícia de que a moda impõe o uso de um certo modelo de chapéu para
ir à igreja, e que este modelo difere um pouco conforme a devoção for de manhã
ou de tarde. Quando os sinos tocam, a equipagem pára diante da minha porta. Sua
Excelência desce, porque é notório que ninguém confecciona chapéus como os que
vendo na minha loja; apresso-me a ir de encontro a Sua Excelência e faço várias
reverências; acompanho-a ao gabinete de provas, vou dando-lhe a escolher e
experimentar vários chapéus, vou-os ajustando de elegante maneira, o que ela
deixa fazer com a máxima tolerância. Foi, enfim, escolhido um; mais uma prova
na frente do espelho; a freguesa está contente; rápido, como mensageiro dos
deuses, adianto-me, abro a porta do gabinete, inclino-me, vou até à porta do
estabelecimento, ponho a mão sobre o peito como um escravo oriental e, animado
pela distinção do cumprimento que recebo, tenho a ousadia de lhe atirar de
longe um beijo pelo qual significo a minha fervorosa admiração. A senhora vai
já subir para a carruagem quando repara que deixa esquecido no gabinete o livro
de orações. Vou buscá-lo e depois entrego-lho pela janela do carro. Aproveito o
momento para lhe lembrar que não deixe de inclinar o chapéu um poucochinho à
direita, e de alterar o penteado se for conveniente. Ei-Ia que segue para a
igreja; mas já vai edificada.
Julgais
talvez que só as mulheres ricas e as que frequentam a alta sociedade prestam
assim as suas homenagens à moda? Enganai-vos! A moda tem o seu culto até mesmo
entre as minhas modestas costureiras; eu não fujo a despesas para que elas se
apresentem bem vestidas, porque os dogmas da moda devem ser pregados à custa do
exemplo dado por quem trabalha no meu salão. As minhas operárias formam um coro
de semi-loucas ao qual presido, como sumo sacerdote, dando um exemplo
brilhante; procedo com tal prodigalidade
na intenção de tornar todas as mulheres ridículas por via da moda.
Sempre que um sedutor me vem dizer que não há
virtude feminina que não se venda, - a questão é de preço, -não dou crédito às
palavras dele; mas em compensação creio que todas as mulheres acabam por ser
fanatizadas por esta auto-reflexão da moda, por esta contagiosa folia que
perverte muito mais o sexo feminino do que todos os astuciosos processos do
sedutor. Fiz muitas vezes a experiência.
Quando
pessoalmente não logro êxito, sirvo-me de outras escravas da moda que pertencem
ao mesmo meio social, para obter vitória; porque, se há quem excite os ratos a
exterminarem-se uns aos outros, eu
ensino as fanáticas da moda a morderem-se umas às outras, como a tarântula.
O jogo é, porém, mais sério, quando o homem aparece
de permeio.
Não sei se
sirvo a Deus se ao Diabo, mas tenho razão, quero ter razão, quero tê-la enquanto
possuir dinheiro, quero tê-la até que o sangue jorre dos meus dedos. Costumam
os fisiologistas desenhar o corpo da mulher com a deformação que resulta de uso
nefasto do espartilho, e, ao lado, para comparação, desenham a imagem normal da
formosura feminina. O fisiologista tem razão; mas de que lhe vale ter razão, se
contra ele está a realidade: todas as mulheres usam espartilho. Imaginai, na
sua miserável enfermidade, a excentricidade desta doença que é a moda(…)
Se alguma
vez eu descobrir uma rapariga cuja modéstia humilde não tenha sido ainda
corrompida pela indecente frequentação da sociedade feminina, farei o possível
por que ela caia. Atrai-la-ei às minhas redes, e, depois, de presa, levá-la-ei
ao lugar do sacrifício, quero dizer, à minha loja de modas. Na atitude mais
desdenhosa que possa tomar a minha soberba desenvoltura, dispo-a; ela fica
esmagada de terror; mas um riso que se ouve na sala ao lado, onde trabalham as
minhas costureiras embuçadas, aniquila-a de vez. Quando ela parecer mais louca
do que uma internada em hospital de alienados, ou ainda mais extravagante, a
ponto de nem sequer ser admitida no hospital, então poderá sair da minha casa;
está encantada; porque está encantada, nenhum homem, nenhum deus, conseguirá
agora atemorizá-la; é que ela agora... está na moda.
«Compreendeis-me, agora? Compreendeis porque é que
vos chamo conjurados, mas ainda não iniciados? Compreendeis agora a minha concepção
da mulher?
Nesta
vida, tudo é questão de moda: o temor de Deus, o amor, as crinolinas, os
brincos nas orelhas e no nariz.
Quero, pois, com todas as minhas forças, correr em auxílio do nobre génio cujo
intento é o de rir do mais ridículo de todos os animais. Se a mulher tudo reduziu e referiu à moda, quero eu prostituí-Ia graças
à moda, como ela merece; não tenho tréguas, eu, alfaiate; a minha alma ferve só
de pensar na minha tarefa; quero que a mulher acabe por se mostrar de brincos
na ponta do nariz. Não procureis, pois, objecto digno da vossa paixão;
renunciai ao amor como quem foge da vizinhança mais perigosa; a vossa amante
acabaria por querer passear convosco, para estrear os brincos novos no nariz.»
(…)Quando um
amante infeliz paga por preço exagerado um simples beijo, isso prova, a meus
olhos, somente que ele não sabe pegar nem largar. Eu nunca pago caro de mais um
beijo; deixo esse prejuízo às beldades femininas. Que significa um beijo?
Quem, aos vinte
anos, não sabe que há um imperativo categórico: Goza!, é uma pessoa ridícula.
Quem não cumpre esse dever, é um puritano ou um doente.
Eu, porém, pratico o galanteio. Porque não? A
galantaria não custa nada, com ela não se perde e muito se pode ganhar; a
galantaria é a condição indispensável do prazer erótico. É o código secreto,
entre o homem e a mulher, da volúpia sensual. É em suma, tal e
qual como o amor: uma linguagem, porque é feita de sons, -uma linguagem natural
de desejos encobertos que incessantemente se alternam nas reciprocas funções.
Compreendo
perfeitamente que um amante infeliz esteja tão falhado de galantaria que queira
converter o seu débito em papel de crédito para a eternidade. Compreendo e não
admito, porque, para mim, a mulher tem
um valor inexcedível. É o que eu digo a cada uma delas, e digo a verdade,
uma verdade da qual só eu é que não sou vítima. Não vejo que, na minha tabela
de preços, a mulher perdida tenha menos valor do que o homem. Não que eu me
dedique a colher flores murchas, porque deixo esse cuidado aos homens casados
que enganam as esposas nos dias de Carnaval.
O que eu pensava
da mulher era exactamente o que lhe dizia no momento oportuno; e foi ela, na
verdade, quem me convenceu, sim, que me convenceu, de que a minha galantaria
era sincera e adequada.
O sal da vida é a decisão, a decisão a servir o
desejo.
Quem tiver bastante fantasia para idealizar, bastante
gosto para alcançar o solene concerto do prazer, bastante razão para romper, e
romper absolutamente como na morte, bastante frenesi para querer gozar ainda;
esse será o favorito das mulheres e dos deuses.
Gosto do vinho e
da abundância dos festins; são coisas óptimas, sem dúvida; mas éao lado de uma
rapariga bonita que eu me sinto bem.
(…) e para que
esta nossa festa não acabe mal, vou falar em louvor da mulher.
Meus caros
amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado
pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar.
Análogo acontece
quando se fala da mulher. A mulher não é mera ideia que surgisse do cérebro do
homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão prot et contra. Não; o que se sabe a
respeito da mulher foi a mulher que o ensinou; por isso quem mais sabe da
mulher é quem teve mais amantes que o instruíssem. À primeira vez é-se um
aprendiz; à segunda, já se está mais seguro da sua pessoa, como quem, nas
discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para
as voltar contra o seguinte. Apesar destas concessões, nada fica perdido.
Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de
acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a
doutrina se resume numa proposição matemática, sempre idêntica, através das
variações literárias dos métodos de demonstração. É que tais métodos são bons
para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a mulher.
A verdade é que o sexo fraco, longe de ser
inferior, é pelo contrário, o mais perfeito.
No princípio
havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de
faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses;
os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o mesmo que por vezes
acontece aos poetas que gastaram todas as forças na criação de uma obra:
tiveram inveja do homem.
O pior é que
tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse disposto a aceitar de bom
grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem
chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia
estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no
concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao
criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para
legítima defesa. Os deuses pensavam que o seu poderio estava em perigo, e que
não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue a sua obra. O homem já não
podia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam
resolvido facilmente o problema; e era isso precisamente o que lhes causava
desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais
forte do que ele, capaz de o subjugar. Que poder espantoso e que poder contraditório
não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderem os
limites do engenho. Pensaram, meditaram, encontraram. A nova potência foi a
mulher, maravilha da criação, que aos próprios olhos dos deuses era superior ao
homem; e os deuses, ingénuos e contentes, mutuamente se felicitaram pela nova
invenção. Que mais poderei eu dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida por
capaz de fazer o que parecia impossível aos deuses; além disso, a verdade é que
desempenhou admiravelmente o seu papel; que maravilha não deve ser a mulher
para conseguir os seus fins! Tal foi a astúcia dos deuses. A encantadora foi
formada e dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se
transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso
mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de
mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem
salvaguardar um império, do que este processo para seduzir o homem?
Tal é a
realidade; a mulher é a sedução mais
poderosa do céu e da terra. Comparado
com ela, o homem é um ente muito imperfeito.
A astúcia dos
deuses veio a dar resultado. Nem sempre, porém, com êxito igual. Em todos os
tempos surgiram homens que estiveram atentos à fraude. Uns ficaram isolados;
outros observavam a graciosidade da mulher, e, mais do que os primeiros, viram
de perto a armadilha. A estes chamo eu eróticos,
e conto-me no número deles; os homens chamam-lhes sedutores, e as mulheres não
lhes dão classificação especial, porque, para elas, representam o inefável. Os
eróticos são os homens felizes. Vivem com maior magnificência do que os deuses,
porque se alimentam de um manjar muito mais delicioso do que a ambrosia, e
bebem um licor mais inebriante do que o néctar; nutrem-se do que é divino,
porque vão comendo o astucioso pensamento dos deuses que os queriam seduzir;
gozam o delicioso sabor da isca, e entre prazeres inigualáveis vão levando uma
vida de felicidade, sem que passem além da isca, sem que nunca mordam no anzol.
Os outros homens correm para o engodo, e devoram tudo, à maneira do aldeão que
come salada de pepinos, e ficam presos pela boca. Só o erótico é dotado de
delicadeza para fruir o gosto da isca e atribuir-lhe um valor infinito. A
mulher distingue-o e estima-o; entre ambos se firma um entendimento secreto.
Mas o erótico sabe que lhe cumpre guardar o segredo, se não quiser sofrer, mais
cedo ou mais tarde, a vingança terrível dos deuses.
Que nada se pode
imaginar de mais maravilhoso, de mais encantador, de mais sedutor do que a
mulher, os deuses o afirmaram e da afirmação nos deram garantia. O próprio
embaraço que os obrigou a dobrar de engenho é mais uma prova de que eles
jogaram tudo quando removeram o céu e a terra para formar a mulher.
Deixemos o mito. A ideia do homem responde à
sua realidade. Podemos imaginar um só homem, e por essa imagem,
representarmo-nos a humanidade. A ideia de mulher é, pelo contrário, uma noção
geral que na realidade não coincide com nenhuma espécie, com nenhum indivíduo.
A mulher nem sequer é um ente da mesma condição que o homem; será talvez uma
parte deste, mas é mais perfeita do que ele. Admitamos que os deuses hajam extraído
uma parte do homem, enquanto ele dormia um sono profundo; ou admitamos ainda
que o dividiram, e que a mulher seja a sua metade; num caso como noutro, foi
sempre o homem quem ficou dividido. A mulher não está, portanto, em relação de
igualdade com o homem perfeito; a relação de igualdade só aparece depois da
divisão. A mulher é um engano, mas só para o homem tal como se encontra nesta
segunda fase; a mulher é um engano só
para o homem que se deixa enganar. A mulher é o finito; mas no primeiro
momento da sua existência, é o finito elevado à potência de um infinito
enganador, -a infinita ilusão humana e divina. Nesta ilusão não há mentira; mas
se o homem der um passo em falso, fica imediatamente enleado. Ela é o finito,
portanto o multiplicável, portanto um ente colectivo: não há mulher, há mulheres. Mas isto é o que só o erótico parece
capaz de compreender; por isso é ele capaz de amar muitas mulheres sem se
deixar iludir; por isso ele não vai além da volúpia com que os deuses
astuciosos o queriam enganar. A ideia de
mulher não se encerra, pois, numa fórmula qualquer; é um infinito de coisas
finitas. Quem quiser pensar essa ideia, fazê-la passar por todas as
categorias lógicas, ver-se-á na situação de quem, mergulha os seus olhares
profundos num oceano de fantasmagorias em perpétua formação, ou na situação de
quem se perde a contemplar as ondas sobre a espuma das quais aparecem as
sereias para se rirem constantemente do ingénuo.
A ideia da mulher, para o pensador, não é mais do
que uma oficina com a categoria do possível, e para o erótico, a categoria do
possível é uma fonte inesgotável de fantasia.
Vou agora
dizer-vos como é que os deuses fizeram a mulher: um ser fluido, subtil, etéreo como as exalações de uma noite de Verão,
mas que se reveste de formas tão consistentes e palpáveis como a de um fruto
amadurecido; leve como a andorinha, consegue transportar o peso do imenso
desejo do mundo; na sua levitação vence a gravidade, porque todo o segredo das
forças, que a animam se encontra no centro invisível da relação negativa, que
ela tem consigo própria; altiva na sua estatura de desenho firme, consegue dar
nas vistas pela natural ondulação da beleza; perfeita, pela frescura, parece
todavia que acabou de sair da gênese do mundo; de uma pureza celestial como a
neve recentemente caída, e ao mesmo tempo calma e calmante, na coloração suave
da epiderme; alegre como a palavra graciosa que faz esquecer os cuidados,
consolativa como a plena realização do desejo que ela tão bem apazigua como
excita.
O homem, ao vê-la pela primeira vez, deve ter
sido tomado de inexcedível espanto: - espanto de ver a sua própria imagem, ou
uma imagem semelhante, ou uma imagem que lhe era familiar; espanto por ver a
sua própria imagem reflectida no espelho da perfeição; espanto de ver o que
nunca havia esperado de ver, aquilo de que talvez tivesse tido já um vago
pressentimento; espanto de ver um elemento indispensável na sua vida, mas que
lhe era, porém, dado como um enigma para a sua vida. É precisamente esta
contradição no espanto que vai despertar no homem o impulso erótico. O espanto
incita o homem a aproximar-se cada vez mais, a querer ver cada vez melhor, a
olhar, a admirar, a contemplar; não lhe é dado, porém, familiarizar-se
completamente com esta visão, não lhe é dado deixar de desejá-la, nunca poderá
conseguir aproximar-se dela quanto quer.
Quando os deuses conseguiram imaginar a essência
desta forma, recearam não poder dar-lhe a existência. Depois de o conseguirem,
por fim, recearam muito mais a própria mulher. Ela estava de tal maneira formosa,
que não se atreveram a elogiá-la, com receio de que a inconfidência pusesse em
perigo o plano da astúcia. Resolveram então coroar a obra. Concluíram a
formosura, mas deixaram a mulher na ignorância da sua inocência, para que ela
não soubesse a que fim a destinavam; para maior precaução, envolveram a figura
atraente da mulher no mistério impenetrável do pudor. Ficava assim apta para o
combate, ficava assim assegurada a vitória. A mulher era por natureza atraente;
mais atraente se tornou com ser esquiva, evasiva, fugidia, porque todos os
obstáculos servem para excitar o frenesi do homem. Os deuses rejubilavam,
estavam radiantes de alegria. Não há no mundo isca tão atraente como a mulher,
nenhuma isca tem maior poder do que a inocência, nenhuma tentação é mais
fascinante do que o pudor, nenhum engodo iguala o da mulher. Virgem, a mulher
tudo ignora; no entanto, já no seu pudor oculta um pressentimento da sua
natureza; ela adivinha que está separada do homem, separada pelo pudor, que é uma
barreira mais poderosa do que a espada que foi posta entre Aladino e GuInar. O
erótico, porém, procede como Pyrane nas Metamorfoses
de Ovídio: admira e contempla o mistério do pudor e pouco a pouco vai vendo confusamente
que para além da vedação, se configura na distância toda a volúpia do prazer.
Tal é a tentação
que a mulher representa. Os homens, não sabendo o que de melhor poderiam
sacrificar aos deuses, oferendaram-lhes o mais delicioso de todos os manjares;
assim a mulher é fruto proibido para que
se olha com avidez; os deuses ainda não descobriram termo de comparação com
a delícia da mulher. Vemo-Ia perto de nós, muito próxima, na nossa presença; e
no entanto, como está distante, infinitamente distante, separada de nós pelo
pudor. É como se estivesse dentro de um esconderijo, que nós ignoramos, até que
ela nos diga por onde é a entrada. Como é que tal acontece? Nem ela sabe como
se denuncia; a vida encarrega-se de quebrar o segredo. Tal como a criança que
joga às escondidas e, sem dizer palavra, espreita com a cabeça fora do
esconderijo, a imprudência da mulher é inexplicável, porque inconsciente; a mulher é sempre enigmática, tanto quando
baixa pudicamente os olhos como quando dardeja um olhar especial que não pode
ser explicado por pensamentos e, muito menos, por palavras. E, no entanto,
se há «olhares que são como punhaladas», como poderemos explicá-los, se a
linguagem deles nos é incompreensível?
A mulher apresenta-se-nos quase sempre
tranquila como a paz das horas da tarde, quando já nenhuma folha treme,
tranquila como a consciência ingénua, ignorante e inocente; respira
tranquilamente sem que separe no ritmo da inspiração e da expiração; o sangue circula
com toda a regularidade, sem que pelas pulsações se conheça o alvoroço do
coração; e no entanto o homem erótico, se souber auscultar como lhe convém,
há-de perceber os ruídos ditirâmbicos do desejo, como acompanhamento
inconsciente do pensamento da mulher. Despreocupada
como o vento que passa, serena como a profundidade do mar, não deixa a mulher
de ser removida por um desejo languescente, de um desejo inexplicado.
Meus amigos:
Tenho a alma deliquescente, de maneira que não articulo a expressão. Sei,
porém, que também a minha vida corresponde a uma ideia, se bem que vós a não
compreendeis. Sim, também eu revelei o segredo da vida; também eu estou a
servir, algo que é divino, e certamente, o meu culto não é vão. Já que a mulher
é um engano dos deuses, pode com verdade
dizer-se que a existência dela consiste em querer ser seduzida; e como ela
não é uma ideia ou uma essência, há só uma conclusão a tirar, que é a seguinte:
o homem erótico quer amar o maior número possivel.
Só o erótico é
capaz de compreender a volúpia de gozar o engano sem ser enganado. Só a mulher conhece verdadeiramente a
felicidade que consiste em se deixar seduzir. O que digo e sei, aprendi-o
com a mulher, se bem que não tenha agora tempo para maiores explicações; digo e
sei porque me mantenho ao serviço da ideia por um rompimento tão decisivo como
a morte; porque noivo e renúncia estão na mesma relação que masculino e
feminino. Só a mulher é que o sabe, e
sabe-o na sua relação com o sedutor. Nenhum homem casado é sequer capaz de
conceber tudo isto. A mulher nunca chega a confessar esta verdade ao marido.
Casando aceita resignada o novo destino, adivinha que tal é a ordem natural das
coisas, admite que não pode ser seduzida mais do que uma vez. No íntimo, apesar
de quanto diga, nunca a mulher volta o seu ódio contra o sedutor. É preciso
ver que ele tenha efectivamente realizado acto de sedução, o que implica
exprimir a respectiva ideia.
A falsa promessa
de casamento, e outras mentiras tais, constituem esperteza e expedientes
indignos da vida humana, e nada têm que ver com o problema da sedução. Sendo
assim, não há grande infelicidade para a mulher no facto de ser seduzida; pelo
contrário, a felicidade dela está em ter essa sorte. Uma donzela, seduzida por
arte superior, pode vir a ser uma esposa modelar.
Se eu não tivesse as aptidões necessárias para
ser um sedutor, se bem que reconheça as minhas deficiências quando me considero
como tal, e se quisesse casar-me, escolheria sem dúvida uma rapariga já
seduzida, para não ter o trabalho de começar a seduzir minha mulher. É que o
casamento também exprime uma ideia, e essa ideia tem um significado completamente
diferente em relação ao absoluto que a minha ideia exprime. O casamento nunca
deveria ser considerado como um ponto de partida, nunca deveria ser confundido
com o princípio de uma história de sedução. Enfim, de uma coisa estou certo: é
de que para cada mulher há um sedutor possível, mas feliz só será aquela que o
encontrar.
O casamento
significa, pelo contrário, a vitória dos deuses sobre os homens. A mulher que
foi uma vez seduzida vai continuar a sua vida ao lado de um marido; por vezes
ela olha para trás, com o coração pleno de desejo; mas resigna-se com a sua
sorte, até chegar o termo dos seus dias. Morre, sem que a sua morte se compare
com a do homem; desvanece-se e dissolve-se no elemento inefável de que os
deuses a formaram; desaparece como um sonho, como imagem efémera, como imagem
de tempos passados. Que mais é a mulher
do que um sonho, sonho que não deixa de ser a mais alta realidade? É assim
que o homem erótico compreende a mulher, é assim que ele a conduz, é assim que
ele se deixa conduzir por ela ao momento da sedução, momento que está já fora
do tempo, que pertence já à pátria da ilusão, que é a pátria da mulher.
Junto do marido, a mulher vive no tempo,
pertence ao tempo, e o marido também.
Natureza,
maravilhosa!... Se não te admirasse de há muito, a mulher ensinar-me-ia a admirar-te,
porque a mulher é venustidade do mundo!
Tu, Natureza, fizeste da mulher um ser esplêndido, mas a tua maior glória está
em nunca teres dado ao mundo duas mulheres iguais! No homem, o essencial é essencial, e, portanto, sempre o mesmo; na
mulher o essencial é o acidental e, por conseguinte, a inesgotável diversidade.
O reinado da
mulher dura pouco, mas pouco dura também a dor que cai no esquecimento. Creio
que nunca cheguei a observar a dor quando outra vez o mesmo voltava a ser-me
oferecido. Há também a fealdade que pode surgir mais tarde; também a vi, também
sei que ela existe; mas não é pelo aspecto da fealdade que a mulher é vista
pelo seu sedutor.
Antes da despedida, quis Constantino saudar
os convivas com mais um brinde, bebeu, e atirou com a taça para detrás das
costas que foi quebrar-se contra a parede. Os convivas imitaram o exemplo;
executaram o gesto simbólico com a solenidade de uma iniciação. Ficou assim
satisfeito o desejo com o prazer de quebrar, prazer imperial que, nem por ser
mais breve, deixa de ser mais libertador.
Todo
o prazer deve começar por uma libação, mas a libação que é seguida da quebra da
taça que fica esquecida, como quem apaixonadamente se liberta de toda a
lembrança, como quem se liberta da memória e da morte, essa é a libação que
interessa os deuses subterrâneos. Tal acto significa um rompimento, e para tal
é indispensável muita força, mais força do que para cortar um nó, cuja
dificuldade excita e alimenta a paixão; mas paixão necessária para romper, cada
qual tem de a adquirir por si próprio. Exteriormente, o resultado é um só e
mesmo; mas do ponto de vista da arte, há uma diferença tão vasta como o céu.
Ver uma coisa acabar, terminar ou ver quebrá-la por acto livre, distinguir entre
um acidente fortuito e uma decisão apaixonada; verificar que uma coisa chegou
ao fim como a lição do mestre escola ou que cessou pela operação cesariana do
prazer; reconhecer se se trata de uma vulgaridade ao alcance de toda a gente ou
de um segredo completamente insuspeitado; - entre tudo isso há grande
diferença.
O gesto do Constantino foi simbólico e ao
mesmo tempo decisivo; porque, depois, as portas abriram-se de par em par. Tal
como o temerário que bate às portas da morte se vê subitamente na presença do
génio da aniquilação assim os convivas tiveram ocasião de ver a brigada dos
demolidores prontos a desmontar e esfacelar tudo(…)
Já a
brisa matinal começava a refrescar a pele aquecida pela circulação do sangue;
todos se entregavam ao prazer da nova sensação; as figuras deles e o grupo que
formavam causaram-me uma impressão completamente estranha. É que no espectáculo
da aurora a sorrir aos campos, aos prados, e a todas as criaturas que, no
repouso nocturno, recuperaram forças que lhes permitem ir ter com alegria de
encontro ao sol, vemos a benéfica harmonia de todas as coisas; mas ver aquele
grupo de noctívagos entre a saudável alegria da natureza que desperta para a
vida era espectáculo que produzia uma impressão assaz penosa. Eles faziam
lembrar espectros que a alba surpreende, demónios da terra que não podem
encontrar fenda onde desapareçam, porque ela só é visível nas trevas,
infelizmente para os quais a distinção entre noite e dia se desvaneceu pelo
efeito uniformizador do sofrimento.
«O Dr. Guilherme, o assessor de justiça, com
a mulher». Dois entes felizes, por demais entregues às doçuras da vida
doméstica, demasiado confiantes para se julgarem objecto de curiosidade que não
fosse a do sol, cujos raios ainda jovens iam ter voluptuosamente com eles
através da folhagem, enquanto a brisa suave passava por entre os ramos,
enquanto todos os seres da vida campestre pareciam vigilantes para assegurarem
a paz daquelas paragens. O casal feliz não foi surpreendido, nem se sentiu
observado. Eram marido e mulher; via-se logo ao primeiro lance, por mau
observador que se fosse. É que os amantes
nunca se sentem em segurança quando estão um ao lado do outro, ainda que nada,
nada de exterior neste vasto mundo, nada de manifesto, nada de secreto, tenda
leal ou traiçoeiramente a perturbar-lhes a felicidade; parece haver sempre uma
potência que quer separá-los, quebrar aquela felicidade, por mais fortemente
que estejam abraçados; dir-se-ia que hão-de estar perpetuamente em guarda
contra um inimigo, e que por isso nunca se podem sentir tranquilos e seguros.
Não acontece o mesmo com os casados, como não acontecia com o nosso casal.
(…) «Bebe
enquanto o chá está quente. Olha que a manhã está um pouco fria; o menos que
posso fazer é interessar-me pela tua saúde.»
«O menos?»
perguntou o assessor com intencional laconismo. «Sim,
ou o mais, ou tudo». O assessor fixou-a com um olhar perplexo e
inquisitivo, e a mulher respondeu quando ele começou -a saborear a bebida:
«Ontem interrompeste-me quando abordei o assunto, voltei a
pensar e a repensar nele, mas principalmente agora, e já sabes a propósito de
quê. Tenho a certeza de que se não fosses
casado, terias chegado a uma posição muito mais elevada na sociedade».
«Acreditas a sério
no que disseste, minha filha?»
« Que queres tu
dizer com isso?»
«Perdoo a tua tolice
de há pouco, já que depressa a esqueceste, porque nem sempre falas com juízo.
Que é que eu poderia fazer na alta sociedade, se tivesse ficado solteiro?»
O assessor começou a tamborinar com a mão direita na mesa, e a trautear uma
canção qualquer de que mal se percebiam as palavras; e tal como o desenho da
trama, que aparece e desaparece, no trautear reaparecia o estribilho da canção:
«Foi à mata cortar a lenha, o homem mais a mulher». Depois do discurso melodramático,
que o assessor sublinhara com as estrofes da canção, depois das múltiplas
explicações da esposa ao esposo, este proferiu a réplica.
«Não ignoras que as
nossas leis permitem que o marido bata na mulher; é pena que a lei seja omissa,
e não esclareça em que casos».
Ela
riu da brincadeira, e aproveitou logo a ocasião para dizer: «Mas porque é que tu nunca me queres ouvir a sério quando
te falo nestas coisas? Não me compreendes. Falo-te com franqueza, com
sinceridade. Esta ideia é-me querida. Se tu não tivesses casado comigo, não
pensaria nisso; mas como estamos casados, tenho de falar no que penso. Se
verdadeiramente me amas, ouve-me a sério e responde-me com a mesma franqueza».
«Isso é o que não te
posso prometer, porque nunca dizes coisa razoável. Se não queres que me ria,
nem que te bata, deixa-me esquecer o assunto. Ou deixas de falar nisso, ou
tenho de fazer-te calar de qualquer maneira. Bem vês que tudo isto é uma
facécia; por isso tem várias maneiras de lhe dar resposta».
Levantou--se, beijou a mulher na testa, deu-lhe o braço, e ambos seguiram por
entre as sombras de uma alameda, até que desapareceram.
Querem talvez
saber quem sou eu? Ninguém mo pergunte. Se até agora ninguém tratou de se
informar, já é tarde, porque o pior passo já foi dado. Aliás, não sou digno de
que se interessem por mim; porque sou um ente insignificante, a personificação
da insignificância, e uma pergunta como essa apenas serve para me envergonhar.
Eu sou a pura existência, um pouco menos do que nada. Eu sou a pura existência
que passa despercebida no meio de qualquer companhia, porque da mesma maneira
que o puro devir em cada instante vou ser e deixo de ser. Sou como o traço que
na adição separa as parcelas da soma; quem há que se preocupe comum traço? Não
tenho poder algum por mim próprio (…) Ao publicar agora o manuscrito, continuo
a ser um insignificante, porque o manuscrito não é meu (…). Como editor, na
minha nulidade não sou mais do que uma espécie de Nemésis (…) que se julgava,
ele, autorizado a publicar esta obra.
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