terça-feira, 9 de abril de 2013

Marguerite Duras- O Amante


Um dia, já eu era velha, um homem dirigiu-se-me à entrada de um lugar público. Deu-se a conhecer e disse-me: "Conheço-a desde sempre. Toda a gente diz que você era bonita quando era nova, vim dizer-lhe que, para mim, acho-a mais bonita agora do que quando era jovem, gostava menos do seu rosto de mulher jovem do que daquele que tem agora, devastado. "
(…)Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde de mais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal.
As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.

Vi sempre a minha mãe fazer todos os dias o futuro dos filhos e o seu. Um dia, já não estava em condições de fazer futuros grandiosos para os filhos, fez então outros, futuros colados com cuspo mas que mesmo assim desempenhavam a sua função, faziam uma barreira ao tempo à sua frente.

Já sei muito. Sei uma coisa. Sei que não são os vestidos que fazem as mulheres mais ou menos bonitas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o preço dos enfeites. Sei que o problema está algures. Não sei onde. Sei só que não está onde as mulheres julgam.


Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não existia. Estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso soube-o eu antes da experiência.

Resta aquela pequena que cresce e que saberá talvez um dia como fazer entrar dinheiro naquela casa. É por esta razão, embora não o saiba, que a mãe deixa a sua filha sair naquela figura de criança prostituída. E é por isso também que a criança sabe já muito bem como fazer para desviar a atenção que lhe dão a ela para a que ela dá ao dinheiro. Isso faz sorrir a mãe.

Morreu entre Dô e aquele a quem chama o seu filho no grande quarto do primeiro andar, o mesmo onde punha carneiros a dormir, quatro a seis carneiros à volta da cama nos períodos de geada, durante vários invernos, os últimos.

Vejo que a minha mãe é indubitavelmente louca. Vejo que Dó e o meu irmão tiveram sempre acesso a essa loucura. Que eu, não, nunca a tinha visto. Que nunca tinha visto a minha mãe como uma louca. Ela era-o. De nascença. No sangue. Não era doente da sua loucura, vivia-a como a saúde.

(…)tinha uma civilidade sublime até no saber, um modo ao mesmo tempo essencial e transparente de se servir do conhecimento, sem nunca fazer sentir a sua obrigação, o peso. Era uma pessoa sincera (…)

É a mesma coisa, a mesma piedade, o mesmo pedido de socorro, a mesma debilidade do juízo, a mesma superstição, digamos, que consiste em acreditar na solução política do problema pessoal.

Desonrada, dizem as pessoas? E eu digo: como é que a inocência se poderia desonrar?

Era preciso prevenir as pessoas destas coisas. Ensinar-lhes que a imortalidade é mortal, que ela pode morrer, que já aconteceu, que ainda acontece. Que não se anuncia enquanto tal, nunca, que é a duplicidade absoluta. Que não existe no pormenor, mas apenas no princípio. Que certas pessoas podem dela transportar a presença na condição de ignorarem que o fazem. Tal como certas outras pessoas podem detectar-lhe a presença nessas pessoas, na mesma condição, ignorarem que o podem fazer. Que é enquanto ela se vive que a vida é imortal, enquanto está em vida. Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, que não é uma questão de imortalidade, que é questão de outra coisa que permanece ignorada. Que é tão falso dizer que ela não tem começo nem fim, como dizer que começa e acaba com a vida do espírito uma vez que é do espírito que ela participa e da perseguição do vento. Olhai as areias mortas dos desertos, o corpo morto das crianças: a imortalidade não passa por aí, pára e contorna.




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