(…Inspiradas no princípio em que há
similaridade entre a direção da coisa pública e do lar, as mulheres governarão
a cidade com a mesma eficiência com que cuidam de suas casas, para satisfação
de todos. Não haverá mais ricos de um lado e pobres do outro. Atenas será como
uma única habitação na qual cada um poderá obter, num fundo comum, o necessário
à sua subsistência, graças a reformas de base como a comunidade de bens e de
mulheres.
É digna de nota a solução de Valentina (Aristófanes) para o problema das
mulheres feias diante da desvantagem em que ficariam, relativamente às bonitas,
nesse regime autoritário...)
2.ª
Mulher - E qual é a mulher que precisa treinar para falar?
2.ª
Mulher – Ora essa! Os homens não bebem na assembleia?
Valentina
– Você pensa que eles bebem o que você está a querer beber?
2.ª
Mulher – Exatamente. A bebida forte! Todas as leis, quando bem examinadas,
parecem ter sido feitas por bêbedos, bem perto da demência! E se não bebessem,
como se explicariam as xingações, os palavrões que eles trocam?
Valentina
– Alguém quer usar a palavra?
1.ª
Mulher – (levantando-se) Eu!
Valentina
– Pois suba à tribuna! Estamos em sessão. Mas veja se fala como um homem!
1.ª
Mulher – (em tom oratório) Agradar-me-ia mais que alguém, mais eloquente e com
ideias mais claras, viesse falar-lhes, permitindo-me continuar tranquilamente
sentado no meu lugar. Num momento como este, todavia, seria inadmissível o
silêncio, agora que há coisas tão sérias a fazer como...
Valentina
– Eu mesma falarei em defesa de vocês,
depois de subir à tribuna. (sobe no banco e assume ares de orador) “Elevo meus
pensamentos aos céus: que nossos projetos se realizem! Sou igual a toda a gente
mas não posso deixar de afligir-me ao ver o estado de decomposição em que se
encontra a administração do país. Vejo-o sempre entregue a maus dirigentes. Se
um é bom um dia, torna-se mau durante dez. Recorre-se a outro, é ainda pior.
Sei que não é fácil dirigir homens difíceis de contentar. O povo tem medo de
quem lhe deseja e adula quem lhe faz mal. Houve um tempo em que não tínhamos assembleias
mas sabíamos que um mau elemento era mau elemento mesmo. Agora, que as temos,
ouvimos aqueles que conseguem vantagens através de seus candidatos fazer-lhes
os elogios mais rasgados; quem nada conseguiu diz que os políticos querem
apenas ganhar milhões do povo sem fazer coisa alguma!
E
essas medidas salvadoras? Quando deliberam sobre elas parece que o mundo
acabaria se não fossem aprovadas; depois, tem-se vontade de matar o autor de
tais projetos, tão grande é a decepção! É preciso aumentar os impostos? Os
pobres se conformam, os ricos esbravejam!
E
o povo é a causa de tudo isso, pois todo mundo cuida apenas dos próprios
interesses, com a preocupação única de levar vantagens. E o pobre país vai aos
trambolhões, como um bêbedo! Mas se acreditarem em mim ainda haverá salvação. É
às mulheres, às mulheres – repito – que devemos entregar o Governo, da mesma
forma que confiamos a elas a direção dos nossos lares! ”
“Vou
demonstrar agora que os costumes delas são melhores que os dos homens.
Primeiro, elas são conservadoras: fazem tudo hoje como sempre fizeram ( os
nossos governantes acham que só nos salvam com reformas e inconstância). Elas
cozinham hoje como antigamente; fazem bolos como antigamente; chateiam os
maridos como antigamente; têm amantes como antigamente; comem pouquinho como
antigamente; bebem pouquinho como antigamente; como antigamente trocam
beijinhos! Homens aqui presentes! Confiemos o Governo às mulheres sem maiores
discussões. Nem perguntemos o que elas irão fazer, mas deixemo-las governar
logo e bem! Pensemos um pouco: como mães, elas pouparão de cuidar da vida de
seus filhos, de nossos soldados, evitando as guerras; para arranjar dinheiro,
as mulheres são muito mais hábeis; nos cargos que ocuparão, ninguém as
enganará, pois elas que vivem enganando os homens conhecem todos os truques e
saberão defender-se . Quanto ao resto, nem vou falar. Se vocês acreditarem em
mim serão felizes para o resto da vida!”
1.ª
Mulher – … e se mandassem retirar você
da tribuna à força?
Valentina –
E quem teria a ousadia de por a mão em mim?
1.ª
Mulher – É isso mesmo; e mesmo que pusessem nós obrigaríamos o atrevido a tirar
a mão ainda que tivéssemos de puxar os cabelos dele e unhá-lo todinho!
(dirigindo-se à sua vizinha) Tudo isso está combinado direitinho, mas há uma
coisa em que não pensamos: como é que na hora de votar vamos lembrar de
levantar os braços, nós, que só estamos acostumadas a levantar as pernas?
Todas
as mulheres – (falando ao mesmo tempo) Vamos para a Assembleia! Vamos depressa
para tomar conta dos lugares! Vamos votar, de braços erguidos! Sei que não
iremos ganhar dinheiro com o golpe, mas ajamos desinteressadamente, como
outrora, quando se tratava de política sem pensar em abiscoitar milhões.
Cremes
– Como sempre, os políticos tratavam da salvação da pátria: apresentavam projetos
de efetivação de interinos com duas horas de exercício da função, de concessão
de taxas de insalubridade ao pessoal que vai à praia aos domingos e fica lá
depois do meio-dia, de criação de mil cargos de assistentes sexuais para os
deputados, de aumento de subsídios, de férias de 300 dias por ano, etc.
Cremes
– Afinal a boa vida vale um sacrifício. Dá-se um jeito!
Blêpiro
– Mas tudo que se faz forçado perde o gosto.
Blêpiro
– ….E qual o meio de evitar que todos os homens queiram a mais bonita?
Valentina
– As feias e mal acabadas ficarão ao lado das mais bonitas e quem quiser as
bonitonas terá que satisfazer primeiro as feiosas.
Blêpiro
– (com ar desconsolado) E nós, os velhotes, como nos arranjaremos? Se tivermos
de “traçar” primeiro as feias o nosso... entusiasmo murchará e como é que vamos
dar conta das bonitonas?
Valentina
– Elas não vão chorar por isso; pelo menos quanto a você, fique tranquilo. Elas
não vão brigar por você...
Blêpiro
– Quem sabe?
Valentina
– O.... entusiamo que já está murcho não tem o que murchar, meu velho. Esse
problema você não terá.
Blêpiro
– Para vocês, mulheres, o plano está muito engenhoso; você já arranjou as
coisas de tal maneira que nenhuma mulher ficará sem o dela. Mas quanto aos
homens, como é que vai ser? As gostosonas fugirão dos feios para entregar-se
aos bonitões.
Valentina
– Não senhor! Isso aconteceria no regime antigo, quando só se pensava num lado
dos problemas. Agora o mecanismo vai ser o mesmo! Os feios tomarão conta dos
bonitões e as mulheres não poderão ir com os altos, morenos e simpáticos antes
de ter resolvido o problema dos baixinhos e mal acabados.
Blêpiro
– (entusiasmado) Muito obrigado em nome dos desfavorecidos!
Valentina
– É um dispositivo muito democrático. Nossa reformulação é certinha em tudo.
Vocês vão rir dos convencidos, dos galãs, e dirão: “Calma, mocinho bonito!
Primeiro aqui o papá vai provar o material!”
Blêpiro
– É... Mas com esse género de vida como é que cada um vai reconhecer os
próprios filhos?
Valentina
– Isso não terá importância. As crianças julgarão seus pais todos os homens que
tiverem idade para isso.
Blêpiro
– Agora é que a rapaziada vai espancar os velhos à vontade, pois até hoje,
sabendo quem era o pai, eles espancavam, quanto mais quando não souberem!
Valentina
– Mas os outros rapazes não permitirão. Antes eles não se incomodavam quando um
rapaz batia no pai, mas no futuro não deixarão ninguém bater em ninguém, pois
um poderia estar batendo no pai do outro.
Blêpiro
– Isso que você está a dizer não é nada mau. Mas se um desses rapazinhos
rebolantes que andam por aí chegar perto de mim e me chamar de “papá”, vai ser
duro de aguentar!
Valentina
– Mas esses rapazinhos rebolantes que você está falando nasceram antes da nova
lei; não há perigo de eles poderem chamar você de “papá”.
Blêpiro
– Só uma pergunta mais: quando alguém perder uma questão na justiça, como vai
arranjar dinheiro para pagar ao advogado e aos escreventes? No fundo comum? Não
haveria dinheiro que chegasse!...
Blêpiro
– (dirigindo-se a Cremes) Acontece que ela vai ter explicar o seguinte: e se
dois camaradas brigarem e forem presos, com que pagarão a fiança? E quando,
depois de um jantar legal, puxado a vinho, alguém agredir alguém? (dirigindo-se
a Valentina) Dessa quem não sai é você!
Valentina
– Pagarão a fiança com a parte do que tiverem para comer. Tendo de ficar com o
estômago vazio eles pensarão melhor antes de cometer outra violência; o
estômago castigado será bom conselheiro.
Blêpiro
– (com ar de desânimo mas sem se dar por vencido) E não haverá mais ladrões?
Valentina
– Para roubar o que já é deles?
Blêpiro
– (depois de pensar alguns segundos) Então não se será mais assaltado de noite?
Cremes
– Não, se você ficar em casa.
Valentina
– Nem se você dormir fora de casa, como costuma fazer, pois toda a gente terá o
suficiente para viver. Se quiserem o seu casaco você o dará, pois bastará ir ao
fundo comum para obter outro.
Blêpiro
– Nem haverá mais um joguinho?
Valentina
– Para ganhar o que?
Blêpiro
– Então que espécie de vida você quer que levemos?
Valentina
– Todos viverão em comum. Pretendo fazer das cidades uma só casa, demolindo
todos os muros, de maneira a que todos possam ir a toda parte.
Blêpiro
– (ainda sem querer dar-se por vencido) Não haverá perigo de faltar comida para
alguém?
Valentina – Em nossa terra não haverá mais
necessitados. Nós, mulheres, daremos tudo a todos abundantemente. Os homens,
depois de terem comido e comido e bebido à vontade nos jantares coletivos, irão
embora com a testa coroada de flores e de tocha acesa na mão (para não errarem
o caminho). E as mulheres, nas esquinas, dirão aos que vierem voltando dos
jantares: “Vem cá! Lá em casa há uma pequena muito boa para você!” Outras
dirão: “E lá em casa há uma ainda melhor, clarinha e gostosinha! (Blêpiro e
Cremes ouvem embevecidos)!” E os homens mal acabados seguirão os bonitões e
lhes dirão: “Para quê tanta pressa? Você nada conseguirá se chegar antes de
mim, pois de acordo com o decreto os primeiros a provar os brotinhos serão os
velhotes e feiosos;”. (dirigindo-se a Blêpiro e Cremes) Então, a reforma de
base está boa para vocês?
Blêpiro
e Cremes – (a uma voz) Legalíssima!
Valentina – (séria) Chega de conversa. Agora
tenho de ir à praça pública receber os bens que todos levarão para organizar o
fundo comum pelo bem do país, pois fui escolhida para chefa do governo das
mulheres. Arranjarei umas ministras de alto gabarito e mandarei providenciar os
jantares coletivos para que toda a gente ainda hoje veja o governo em pleno funcionamento.
No meu governo todo o mundo vai comer à vontade.
Cremes
– Eu vou andando; vou dar um balanço nas minhas coisas para levá-las à praça
pública, ao fundo comum.
Cremes
– Essa é boa! Não devo obedecer à lei?
Um
Homem – A que lei, desgraçado?
Cremes
– Às leis que aceitamos.
Um
Homem – Aceitamos!... Você é mesmo um grande bobo!
Cremes
– Bobo?!
Um
Homem – E não é? O maior bobo do mundo!
Cremes
– Por fazer o que a lei manda?
Um
Homem – Então um sujeito sensato tem de fazer tudo o que a lei manda?
Cremes
– Mais que os insensatos.
Um
Homem – Isso é para os trouxas!
Cremes
– Quer dizer que você não vai entregar as suas coisas ao governo?
Um
Homem – Não! Pelo menos até ver o que a maioria fará.
Cremes
– Que pode resolver a maioria senão entregar depressa os seus bens?
Um
Homem – Quero ver para crer.
Cremes
– Toda a gente está a dizer nas ruas que vai entregar tudo.
Um
Homem – Dizer, eles dizem...
Cremes
– E garantem que vão carregar as coisas nos próprios ombros.
Um
Homem – Garantir, eles garantem...
Cremes
– Você acaba me matando de raiva, você que não acredita em nada!
Um
Homem – Acreditar, se eles não acreditam!
(…)
Um
Homem – Você podia ao menos esperar para
ver o que os outros vão fazer. Depois então...
Cremes
– Então!
Um
Homem – Depois então vai-se ganhando tempo; depois adia-se novamente...
Cremes
– Para quê?
Um
Homem – Pode haver um terremoto ou alguma outra calamidade, ou vir uma nova
lei, e então fica tudo como estava, idiota!
Então
você acredita mesmo que alguém de bom senso vai dar o que tem? Nós nunca fomos
de dar. Receber, sim! Até os deuses recebem. Você pode ver nos templos: quando
vamos pedir alguma graça, lá estão eles de mãos estendidas, não para dar mas
para receber.
O
meu receio é que as mulheres não se entendem quando se trata dos homens...
Cara
não resolve, franguinha! O que resolve é... competência!
Afinal
de contas eu não ia fazer esta revolução para aprontar a cama para outras
deitarem!
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