quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Vergílio Ferreira- Manhã Submersa


Lentamente, o casarão foi rodando com a curva da estrada, espiando-nos do alto da sua quietude lôbrega pelos cem olhos das janelas. Até que, chegados à larga boca do portão, nos tragou a todos imediatamente, cerrando as mandíbulas logo atrás. Enrolado na multidão silenciosa, fui subindo a larga escadaria em cujo topo um padre quieto, de mãos escondidas nas mangas do viatório, ia separando as divisões para as respectivas camaratas. Mudos e quedos, ao pé dos muros, aparecerem-me ainda, ao longo do corredor, vários padres de sentinela. E na pura ameaça do seu olhar de sombra eu sentia, mais escura, a grandeza ilimitada de um pavor abstracto


Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto- me que destino atravessou a minha vida além desse pavor, que outra voz mensageira lhe chamou ao futuro além da voz de uma noite sem fim.


Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isto a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta e que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia a voz por sobre mim e me esquecia.


Dói-me o que sofri e recordo, não o que sofri e evoco.


Porque o peso da dor nada tem a ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente.


… que a descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada.







2 comentários:

  1. "… que a descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada."
    Todos nós somos a força descoberta em movimento.

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  2. Boa!Pensamento lapidar na teoria.
    Eu diria, que todos almejariam ser força e descoberta em movimento.

    Beijo.

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