sábado, 3 de novembro de 2012

Fernando Pessoa- Livro Do Desassossego ( V )


Nunca aprendi a existir. Tudo o que quero consigo, logo que seja dentro de mim.

Sem mim, o sol nasce e se apaga; sem mim a chuva cia e o vento geme.

Estátua interior sem contornos, sonho exterior sem ser sonhado.

…esse episódio de imaginação a que chamamos realidade.

Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer.

Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso, que vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.

Ler é sonhar pela mão de outrem. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.

Há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.

Não quero ter alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte da passagem entre o que não tenho e o que não quero.
Podemos morrer se apenas amámos.

Amarem-no cansava-o.

Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os factos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.

Nenhum prémio certo tem virtude, nenhum castigo certo o pecado.

A vida é a busca do impossível através do inútil.

A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma lama pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjectividade.

Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive.

A sede de ser completo deixou-me neste estado de mágoa inútil.

Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento.

E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.

Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo.


Não posso ler, porque a minha crítica híper-acesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real, e assim o seu valor desaparece.

A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceite.

Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia.
A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver.

O pensamento pode ter levação sem ter inteligência, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a acção sobre os outros.

A força sem a destreza é uma simples massa.

A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa lama atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; e a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dár-nos a verdade por meio linhas variadamente regradas, que mentem à inércia da fala; outra pretende dár-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.

Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu.

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