Ferreira de Castro- A
Selva
(…) a amazónia um ímã na terra brasileira e para ela
convergiam copiosas ambições dos quatro
pontos cardeais, porque a riqueza se apresentava de fácil posse, desde
que a audácia se antepusesse aos escrúpulos.
O caboclo não conhecia as ambições que agitavam os
outros homens (…) . A mata era sua. A terra enorme pertencia-lhe, senão de
direito, por moral, por ancestralidade, da foz dos grandes rios às cabeceiras
longínquas. Mas ele não a cultivava e quase desconhecia o sentimento da posse.
Generoso na sua pobreza, magnífico na humildade, entregava esse solo fecundo,
pletórico de riquezas, à voracidade dos estranhos - e deixava-se ficar
pachorrento e sempre paupérrimo, a ver decorrer, indiferentemente, o friso dos
séculos.
Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas,
que atravancavam o mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida colectiva a
beleza e a elevação que ela podia ter?
Só as selecções e as castas, com direitos
hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas,
poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com
autoridade inquebrantável - um rei e os seus ministros a mandarem e todos os
demais a obedecer. António Peneda, esgarrou!
(…) enervado, com lágrimas nos olhos a gritarem a
sua impotência.
Árvore que pretendera desgrenhar a cabeceira mais
acima da das irmãs, fora seguida por tão copiosa multidão de lianas e
parasitas, que dentro em pouco o seu desejo se tornara vaidade inútil.
(…) estendiam, em homenagem à fome, os míseros
pratos.
(…) a solidariedade egoísta e secreta dos viajantes
de comboio, ao verem irromper no seu compartimento novos passageiros.
(…) tanto como aquele que cerceava a liberdade,
indignava-o a alma submissa dos que acatavam, silenciosa e passivamente, a
ordem iníqua.
Dum lado e outro, a selva. Até esse instante Alberto
vira apenas as suas linhas marginais; surgia, agora, o coração.
Surgia com
um aglomerado exuberante, arbitrário e louco, de troncos e hastes, ramaria
pegada e multiforme, por onde serpeava, em curvas imprevistas, todo um mundo de
lianas e parasitas verdes, que faziam de alguns trechos uma rede
intransponível. Não havia caule que subisse limpo de tentáculos a expor a
crista ao sol; a luz descia muito dificilmente e vinha, esfarrapando-se entre
folhas, galhos e palmas, morrer na densa multidão de arbustos, cujo verde
intenso e fresco nunca esmorecia com os ardores do Estio. Primeiro a folhagem
seca dos gigantes, que cobria o chão, putrefazendo-se em irmandade com troncos
mortos e esfarelados, dos quais já brotavam folhitas como orelhas de coelho.
Alastravam, depois, as largas palmas de tajás e de outra plantaria, de tudo
quanto vinha nascendo e ocultava a terra onde as árvores sepultavam as raízes.
Crescia a mata até à altura de dois homens, posto um sobre o outro, e só então
os olhos podiam encontrar algum espaço em branco, riscado, ainda assim, pelos
coleios dos cipós que iam de tronco a tronco, dando ponte a capijubas e demais
macacaria pequena, que não quisesse saltar. De lá para cima abriam-se as
umbelas seculares e constituíam série interminável os seus portentosos cabos. E
era aí que a luz dava um ar da sua graça, branqueando e tornando luzidio o
pescoço de algumas árvores mais altas e restituindo, pela transparência, às asas
de milhares de borboletas, as suas verdadeiras cores de arco-íris fantástico.
De longe a
longe, uma palmeira muito esguia e clara subia para olhar a selva por cima do
ondeado em que terminava todo o arvoredo …
E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico,
feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam no murmúrio suavíssimo
da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em extâse.
Somente a colectividade imperava ali, o indivíduo
vegetal despersonalizava-se e era amesquinhado pelos vizinhos.
Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado
vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada.
Estava de sentinela, silencioso, encapotado, a vedar-lhe todos os passos, a
fechar-lhe todos os caminhos, a subjugá-lo no cativeiro. Era a grande muralha
verde e era a guarda avançada dos arbustos que vinham crescer em redor da
cacimba e, degolados pelo terçado de Firmino, brotavam de novo, numa teima
absurda e alucinante. A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e
só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera,
dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quantos anos - mas um dia!
... A ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que
se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente.
Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam,
ilusoriamente, ter vencido com a sua actividade, o seu sacrifício e a sua
ambição.
A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o
primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o
homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu
destino àquele despotismo (…) dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros
fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
Nada a
assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e
o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e
as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.
A embriaguez periódica era a única evasão do espírito,
o único facho na longa noite da masmorra
verde.
O rio começara a encher. Era um dilúvio anual que
vinha do peru, da Bolívia, dos contrafortes dos andes, veios que borbulhavam,
blocos de gelo que se derretiam, escoando-se da terra alta, regougando nas
cachoeiras e destroçando, de passagem, tudo quanto se lhes opunha. Dir-se-ia
que o pacífico galgara a cordilheira e viera esparramar-se, em fúria ciclópica,
do lado de cá. Minava, abria novos caminhos, contorcia-se nas enseadas,
engrossava com as chuvas e ia sempre, sem descanso, a caminho dos pontos
baixos. Caído nas esplanadas, perdia em violência o que ganhava em imponência.
Já não era enxurrada, singra aqui, torce ali, correndo pelos declives e
cantando nos despenhadeiros. Era um volume pesado, barro líquido que marchava
em grandes amplitudes, levando na face lisa, que já não tinha murmúrios nem
rugidos de cataratas, todos os destroços que fizera. Parecia, assim, ter saído
dum mundo reduzido a escombros. Os cursos subiam logo, tragando praias
estivais, salvando altos barrancos e fazendo das ilhas verdes náufragos tristes
e amarrados.
Subiam
mais, subiam sempre, engolindo raizedos nus, galhuças ribeirinhas e
estendendo-se por baixo das barracas dos indígenas. A terra encharcava, então.
O manto aluvial, descendente do bíblico, invadia lentamente, soturnamente, a
selva arrepiada. Era pela boca dos igarapés, pelas gretas das margens, sobe,
sobe, avança, transborda, mil línguas que se bipartiam aqui para se unirem de
novo além, numa surda persistência de extermínio. Hoje, um palmo, um metro,
amanhã, um quilómetro depois e, por fim, léguas sem conta - toda a gleba
traspassadinha, como se a selva não fosse mais do que floresta submarina,
trazida por artes mágicas à superfície de nunca visto oceano.
A água
morta dos igapós, presa na brenha durante o verão, ressuscitava, movimentava-se
novamente, perdendo a sua cor de limo negro ao contacto com a outra, que vinha
ligar-se a ela e expandir-se por toda a parte.
Os lagos
deixavam de possuir contornos, não mais ourelas nem grande monóculo reluzente,
por onde a terra via o céu. Era tudo água suja, mar tranquilo, calvo ao centro
e semi-cobrindo, por extensões imensas, enormes árvores que adquiriam
duplicidade de anfíbio.
E até os
tremedais, que tinham secado no estio e haviam sido apenas podridão, se
transformavam agora em campos de excursões para os peixes que exigiam variedade
cenográfica.(…) Vivia-se em cima de água, que se via pelas frinchas do soalho,
fincado sobre espeques, e os caboclos que no verão amarravam a canoa a
quinhentos metros de distância, lá ao fundo da ribanceira, tinham-na agora
junto à porta. E chovia, chovia.
Não se adaptava. Sentia-se sempre
provisório, desejoso de partir e desesperava-se ao verificar que ainda há pouco
chegara (...) Era outro o meio, outra a terra e outros os seres (...) Era um
mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica!
As imensidades nevadas e as areias dos desertos
haviam já florido em muitos jardins literários. Desconhecia-se, porém, o drama
do ceará.
Resistia sem queixa, como se o amor-próprio houvesse
de tirar, da rude lição, uma íntima desforra.
(…) gente humilde, facilmente resignável (…)
Que animal feroz crescia, assim, dentro do seu próprio
cérebro, para lhe alucinar a razão?
A vida dava, às vezes, ainda mais nojo do que a ideia
de apodrecermos depois de mortos.
Não havia certamente limite algum para as baixezas a
que um ser humano podia descer, se o escravizavam e privavam de tudo quanto era
essencial à vida.
Era certo que os homens são bons ou maus conforme a
posição em que se encontram perante nós e nós perante eles; e falso o
indivíduo-bloco, o indivíduo sem nenhuma contradição, sempre, sempre igual no
seu procedimento.
(…) é um desejo
que tenho de justiça para com a vida, a humanidade está longe ainda da elevação
colectiva que eu sonho para ela. Há-de lá chegar, decerto, talvez pela
evolução, não sei. Mas evolução é coisa tão lenta e a vida de cada um tão
pequena. Às vezes, penso que a sede de justiça que há acabará por marchar à
frente...
(…) Podia-se já quebrar, sem perigo, o escudo do
respeito que as situações privilegiadas impõem.
Como podia ser, como podia ser que as vítimas saboreassem
também o papel de algoz? De que sórdida matéria era feita a alma de alguns
homens, que gozavam bem da alheia, mesmo quando era igual à deles?
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