segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ferreira de Castro- A Selva


Ferreira de Castro- A Selva

(…) a amazónia um ímã na terra brasileira e para ela convergiam copiosas ambições dos quatro  pontos cardeais, porque a riqueza se apresentava de fácil posse, desde que a audácia se antepusesse aos escrúpulos.

O caboclo não conhecia as ambições que agitavam os outros homens (…) . A mata era sua. A terra enorme pertencia-lhe, senão de direito, por moral, por ancestralidade, da foz dos grandes rios às cabeceiras longínquas. Mas ele não a cultivava e quase desconhecia o sentimento da posse. Generoso na sua pobreza, magnífico na humildade, entregava esse solo fecundo, pletórico de riquezas, à voracidade dos estranhos - e deixava-se ficar pachorrento e sempre paupérrimo, a ver decorrer, indiferentemente, o friso dos séculos.


Possuíam alma essas gentes rudes e inexpressivas, que atravancavam o mundo com a sua ignorância, que tiravam à vida colectiva a beleza e a elevação que ela podia ter?

Só as selecções e as castas, com direitos hereditários, tesouro das famílias privilegiadas, longamente evoluídas, poderiam levar o povo a um mais alto estádio. Mas tudo isso só se faria com autoridade inquebrantável - um rei e os seus ministros a mandarem e todos os demais a obedecer. António Peneda, esgarrou!

(…) enervado, com lágrimas nos olhos a gritarem a sua impotência.

Árvore que pretendera desgrenhar a cabeceira mais acima da das irmãs, fora seguida por tão copiosa multidão de lianas e parasitas, que dentro em pouco o seu desejo se tornara vaidade inútil.

(…) estendiam, em homenagem à fome, os míseros pratos.

(…) a solidariedade egoísta e secreta dos viajantes de comboio, ao verem irromper no seu compartimento novos passageiros.

(…) tanto como aquele que cerceava a liberdade, indignava-o a alma submissa dos que acatavam, silenciosa e passivamente, a ordem iníqua.

Dum lado e outro, a selva. Até esse instante Alberto vira apenas as suas linhas marginais; surgia, agora, o coração.
    Surgia com um aglomerado exuberante, arbitrário e louco, de troncos e hastes, ramaria pegada e multiforme, por onde serpeava, em curvas imprevistas, todo um mundo de lianas e parasitas verdes, que faziam de alguns trechos uma rede intransponível. Não havia caule que subisse limpo de tentáculos a expor a crista ao sol; a luz descia muito dificilmente e vinha, esfarrapando-se entre folhas, galhos e palmas, morrer na densa multidão de arbustos, cujo verde intenso e fresco nunca esmorecia com os ardores do Estio. Primeiro a folhagem seca dos gigantes, que cobria o chão, putrefazendo-se em irmandade com troncos mortos e esfarelados, dos quais já brotavam folhitas como orelhas de coelho. Alastravam, depois, as largas palmas de tajás e de outra plantaria, de tudo quanto vinha nascendo e ocultava a terra onde as árvores sepultavam as raízes. Crescia a mata até à altura de dois homens, posto um sobre o outro, e só então os olhos podiam encontrar algum espaço em branco, riscado, ainda assim, pelos coleios dos cipós que iam de tronco a tronco, dando ponte a capijubas e demais macacaria pequena, que não quisesse saltar. De lá para cima abriam-se as umbelas seculares e constituíam série interminável os seus portentosos cabos. E era aí que a luz dava um ar da sua graça, branqueando e tornando luzidio o pescoço de algumas árvores mais altas e restituindo, pela transparência, às asas de milhares de borboletas, as suas verdadeiras cores de arco-íris fantástico.
    De longe a longe, uma palmeira muito esguia e clara subia para olhar a selva por cima do ondeado em que terminava todo o arvoredo …



E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam no murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em extâse.

Somente a colectividade imperava ali, o indivíduo vegetal despersonalizava-se e era amesquinhado pelos vizinhos.

Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada. Estava de sentinela, silencioso, encapotado, a vedar-lhe todos os passos, a fechar-lhe todos os caminhos, a subjugá-lo no cativeiro. Era a grande muralha verde e era a guarda avançada dos arbustos que vinham crescer em redor da cacimba e, degolados pelo terçado de Firmino, brotavam de novo, numa teima absurda e alucinante. A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quantos anos - mas um dia! ... A ameaça andava no ar que se respirava, na terra que se pisava, na água que se bebia, porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente. Os homens eram títeres manejados por aquela força oculta, que eles julgavam, ilusoriamente, ter vencido com a sua actividade, o seu sacrifício e a sua ambição.

A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo (…) dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
     Nada a assemelhava às últimas florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura; assustava com o seu segredo, com o seu mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso anseio de fuga.

A embriaguez periódica era a única evasão do espírito, o único facho na longa noite da masmorra verde.
O rio começara a encher. Era um dilúvio anual que vinha do peru, da Bolívia, dos contrafortes dos andes, veios que borbulhavam, blocos de gelo que se derretiam, escoando-se da terra alta, regougando nas cachoeiras e destroçando, de passagem, tudo quanto se lhes opunha. Dir-se-ia que o pacífico galgara a cordilheira e viera esparramar-se, em fúria ciclópica, do lado de cá. Minava, abria novos caminhos, contorcia-se nas enseadas, engrossava com as chuvas e ia sempre, sem descanso, a caminho dos pontos baixos. Caído nas esplanadas, perdia em violência o que ganhava em imponência. Já não era enxurrada, singra aqui, torce ali, correndo pelos declives e cantando nos despenhadeiros. Era um volume pesado, barro líquido que marchava em grandes amplitudes, levando na face lisa, que já não tinha murmúrios nem rugidos de cataratas, todos os destroços que fizera. Parecia, assim, ter saído dum mundo reduzido a escombros. Os cursos subiam logo, tragando praias estivais, salvando altos barrancos e fazendo das ilhas verdes náufragos tristes e amarrados.
    Subiam mais, subiam sempre, engolindo raizedos nus, galhuças ribeirinhas e estendendo-se por baixo das barracas dos indígenas. A terra encharcava, então. O manto aluvial, descendente do bíblico, invadia lentamente, soturnamente, a selva arrepiada. Era pela boca dos igarapés, pelas gretas das margens, sobe, sobe, avança, transborda, mil línguas que se bipartiam aqui para se unirem de novo além, numa surda persistência de extermínio. Hoje, um palmo, um metro, amanhã, um quilómetro depois e, por fim, léguas sem conta - toda a gleba traspassadinha, como se a selva não fosse mais do que floresta submarina, trazida por artes mágicas à superfície de nunca visto oceano.
   A água morta dos igapós, presa na brenha durante o verão, ressuscitava, movimentava-se novamente, perdendo a sua cor de limo negro ao contacto com a outra, que vinha ligar-se a ela e expandir-se por toda a parte.               
   Os lagos deixavam de possuir contornos, não mais ourelas nem grande monóculo reluzente, por onde a terra via o céu. Era tudo água suja, mar tranquilo, calvo ao centro e semi-cobrindo, por extensões imensas, enormes árvores que adquiriam duplicidade de anfíbio.
    E até os tremedais, que tinham secado no estio e haviam sido apenas podridão, se transformavam agora em campos de excursões para os peixes que exigiam variedade cenográfica.(…) Vivia-se em cima de água, que se via pelas frinchas do soalho, fincado sobre espeques, e os caboclos que no verão amarravam a canoa a quinhentos metros de distância, lá ao fundo da ribanceira, tinham-na agora junto à porta. E chovia, chovia.

Não se adaptava. Sentia-se sempre provisório, desejoso de partir e desesperava-se ao verificar que ainda há pouco chegara (...) Era outro o meio, outra a terra e outros os seres (...) Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica!

As imensidades nevadas e as areias dos desertos haviam já florido em muitos jardins literários. Desconhecia-se, porém, o drama do ceará.

Resistia sem queixa, como se o amor-próprio houvesse de tirar, da rude lição, uma íntima desforra.

(…) gente humilde, facilmente resignável (…)

Que animal feroz crescia, assim, dentro do seu próprio cérebro, para lhe alucinar a razão?

A vida dava, às vezes, ainda mais nojo do que a ideia de apodrecermos depois de mortos.

Não havia certamente limite algum para as baixezas a que um ser humano podia descer, se o escravizavam e privavam de tudo quanto era essencial à vida.

Era certo que os homens são bons ou maus conforme a posição em que se encontram perante nós e nós perante eles; e falso o indivíduo-bloco, o indivíduo sem nenhuma contradição, sempre, sempre igual no seu procedimento.

(…)  é um desejo que tenho de justiça para com a vida, a humanidade está longe ainda da elevação colectiva que eu sonho para ela. Há-de lá chegar, decerto, talvez pela evolução, não sei. Mas evolução é coisa tão lenta e a vida de cada um tão pequena. Às vezes, penso que a sede de justiça que há acabará por marchar à frente...

(…) Podia-se já quebrar, sem perigo, o escudo do respeito que as situações privilegiadas impõem.

Como podia ser, como podia ser que as vítimas saboreassem também o papel de algoz? De que sórdida matéria era feita a alma de alguns homens, que gozavam bem da alheia, mesmo quando era igual à deles?


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