Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu
cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adoptar diferente método: a primeira é que eu não
sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi
outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.
Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo:
diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
O amor da glória era a coisa mais verdadeiramente
humana que há no homem, e, consequentemente, a sua mais genuína feição.
Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um
argueiro, antes uma trave no olho
O menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade
presente; há nela uma gota da baba de Caim.
Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata;
é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.
Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto
que vem.
Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a
inveja que baba, e a enxada e a pena, húmidas de suor, e a ambição, a fome, a
vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um
chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que
ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas
vestes de arlequim, em arredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas
cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor
bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das
coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho
de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto
precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera
da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda,
e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se,
como uma ilusão
Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos
interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a
disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que
faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os
outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame,
que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um
vício hediondo.
Não se ama duas vezes a mesma mulher.
A adulação das mulheres não é a mesma coisa que a dos
homens. Esta orça pela servilidade; a outra confunde-se com a afeição. As
formas graciosamente curvas, a palavra doce, a mesma fraqueza física dão à
acção lisonjeira da mulher uma cor local, um aspecto legítimo. Não importa a
idade do adulado; a mulher há-de ter sempre para ele uns ares de mãe ou de
irmã- ou ainda de enfermeira…
Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes
cair das nuvens que de um terceiro andar.
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos
réis; nada menos.
Em pontos de aventura amorosa, achei homens que
sorriam, ou negavam a custo de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que
as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo
uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher entrega-se por amor, ou
seja o amor paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas,
por exemplo, ou polinésias, lapónias, cafres, e pode ser que outras raças
civilizadas; mas o homem,-falo do homem de uma sociedade culta e elegante,-o homem
conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso a mulher, quando ama
outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com
arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa
da infracção e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo
passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto,- essa boa fatuidade,
que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou
não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para
uso dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos
homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita
vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos
olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra,
empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha
descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo "Não há cachorrinho tão
adestrado, que ao fim lhe não ouçamos o latir”.
Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei
da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela
fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a
consciência.
Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos.
Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa
boca para rir, também não deixa olhos para chorar...
Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a
inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande função do
género humano, todos os sentimentos belicosos são os mais adequados à sua
felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude.
Suporta-se com paciência a cólica do próximo. Matamos
o tempo; o tempo nos enterra. Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.
Trata de saborear a vida; e fica sabendo, que a pior
filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de
lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca;
acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la.
— Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é
sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar
certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é,
uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado
indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer
cessar o incómodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o
organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o
ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque
ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é
certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato,
aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho,
explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação
continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do
remédio oportuno. Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça,
algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição
mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos
olhos de um filósofo.
— Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há
para que perdure a memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em
relação ao obsequiador. Quisera que me explicasses este ponto.
— Não se explica o que é de sua natureza
evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A
persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza
mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento de uma boa
ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas acções; em
segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura,
superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente
agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no
seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas, chamou a atenção para a
complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar
essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum
indício especial de satisfação. Por que é que uma mulher bonita olha
muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá
certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou
absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a miúdo, quando
se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma
consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma simples
irradiação de Humanitas, o benefício e seus
efeitos são fenómenos perfeitamente admiráveis.
Nem o remorso é outra coisa mais do que o
trejeito de uma consciência que se vê hedionda.
E, aliás, gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente
civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a
arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a
tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes
que a podridão anónima os alcança a eles mesmos.
Cada homem é uma errata pensante, cada estação da vida é uma edição, que
corrige a anterior, e que será corrigida também, até à edição definitiva, que o
editor dá de graça aos vermes.
As botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque fazendo
doer os pés, desgraçado, desmortifica-os depois e aí tens a felicidade barata…
Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenómenos, porque só aguça a
fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão
porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos digo que toda a
sabedoria humana não vale um par de botas.
O essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no
centro do organismo universal.
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